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terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

Frágeis, pobres e velhos.

                                                                             

                                                                                                                                                       Foto: Nick Fewings

Por: Antonio Mata

O sol já havia oferecido seus raios e em minutos seria noite. Sem o movimento dos veículos passando e sem o passo acelerado das pessoas. Um lugar de prédios de aspecto sujo e um tanto quanto abandonados; já não indicavam mais o brilho de outros tempos. Algum comércio de varejo e um terminal de ônibus sustentaram, não tem muito tempo o movimento do lugar.

Com a noite, uns poucos ainda se retiravam para seus lares. De qualquer maneira aquela área da cidade já havia perdido a capacidade de atrair novas atividades que ocupassem os espaços disponíveis. Pequenos prédios comerciais haviam cedido suas salas para servir de moradia barata. Poderia ser motivo de lamentações; mas existiam ainda alguns degraus mais abaixo.

Caía a noite e o que se tinha, para o bem ou para o mal, era o silêncio, interrompido eventualmente por algum transeunte atrasado, ou algum automóvel isolado cruzando as ruas. O pouco comércio já apagava suas luzes antecipadamente, deixando a luz a cargo dos postes de iluminação pública. Ainda assim, havia outro tipo de usuário chegando para se acomodar no lugar.

A decadência do lugar parecia estar apenas no meio do caminho. Tendo conseguido ou não alimento, obtido ou não algum dinheiro, agora era hora de se ajeitar para dormir. Aquele chão duro e sujo das calçadas e beirada do piso das lojas já podia receber outra serventia. Gente desolada e maltrapilha se ajeitavam com seus panos sujos, quem os tivesse. Alguns portavam cobertores obtidos em doações de instituições e pessoas generosas que lhes apareciam de vez em quando. Outros tantos se ajeitavam em pedaços de papelão pela falta de coisa melhor.

Chegando para mais uma noite, aqui e ali apareciam os pequenos e magros companheiros de anonimato e de indigência. Não havia o que se compartilhar para comer. A fome, a sujeira, a incerteza e o abandono era comum de todos. Mas, por razões que só Deus explica, estavam juntos e compartilhavam do mesmo cenário. Seres humanos deitados no chão com dois ou três cães ao redor.

Não são todos não, mas alguns conversavam com aqueles cães. Afinal foi o que ficou e que poderiam lhes ouvir. Não iriam mudar nada nem levar a coisa nenhuma. Não é assim? Não existem horas em que queremos apenas ser ouvidos, e sem ter nenhuma expectativa de uma resposta? O cachorro de rua, por esquecido e abandonado que seja, ele também cumpre este papel.

Ele é ouvinte na falta de outro que não quis estar ali. Chega, acomoda-se, ouve atentamente e depois deita-se no chão junto do seu dialogador. Como se reconhecesse a condição do outro, ou simplesmente por também não ter aonde ir. Agora são companheiros de agruras. A noite avança e esfria; cada um se cobre como pode. Os cães se enroscam mais um pouco procurando reter o calor do próprio corpo.

O desalento que até então era só daqueles que viviam no abandono, de repente se estendeu para outras partes, todas as cidades e todo o mundo. Deu-se de uma forma que não havia mais como escapar. Se uns ficaram tal e qual presos do lado de fora sem poder entrar, uma multidão de homens, mulheres, crianças, e toda sorte de animais, ficaram retidos dentro das casas sem permissão para sair.

Estavam todos presos, à mercê de suas próprias consciências que agora lhes cobra a atenção para com o outro que não se teve em outros tempos. Efeito do cotidiano, a hipnose coletiva que foi cultivada indefinidamente. Por aquilo que se deveria fazer, mas que não foi feito. O sentido de unidade que não se cumpriu. Insistiu-se tanto em se trancar dentro de suas casas e de suas mentes que, como um pai comovido e gentil, o Divino simplesmente aceitou e trancou a todos, indistintamente.

Os cães de rua, uns foram assim abandonados, outros já nasceram nas vielas e no meio do lixo. Aqueles animais que compartilharam as ruas deveriam estar dentro das casas também, ou pelo menos abrigados. Mas, a hipnose coletiva que cegou a todos não permitiu um entendimento melhor. O cão na sua simplicidade, acalma, tranquiliza. Afasta a depressão e ansiedade. Sempre fez isso pelas pessoas abandonadas nas ruas. Hoje os que estão protegidos em seus lares necessitam do mesmo alívio. Como somos todos frágeis, pobres e velhos.

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