Menu

terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

Fragmentos

                                                              

                                                                                                                                 Foto: Ônibu Brasil, Kelvin Dinelli

Por: Antonio Mata

 

Fazia algum tempo que estava ali de pé, divisando as coisas com o olhar. Nas plataformas, cheias de gente que aguardava a ordem de embarque, misturavam-se os sons dos motores com as falas de despachantes, passageiros e motoristas. Essa mistura criava um burburinho quase permanente.

Aquela manhã, muito nublada, de nuvens carregadas, fazia com que a iluminação permanecesse acesa, como se ainda fosse noite. Prosseguia calado, absorto no seu exercício de olhar ao léu, enquanto o tempo passava.

As pessoas vão se ajeitando, mais ou menos em fila, enquanto entregam sua bagagem. Não era seu caso, conduzindo apenas uma pequena mochila.

Tudo pronto, vem a permissão de embarque, logo se acomodando. Uns dez minutos depois, ele a vê pela primeira vez. Todos já haviam embarcado, sendo a última pessoa a entrar no ônibus. Com um ligeiro sorriso confere o número da poltrona e senta-se a seu lado.

Os cabelos castanhos, bem curtos, os olhos igualmente castanhos e claros. Aquele jeito magro e longilíneo, que alguém poderia dizer ser típico de modelos. Rosto de mulher bonita.

Lá pelas tantas a viagem vai se tornando chata. Depois daquela sequência enorme de casarios e prédios residenciais, sem que se veja uma praça, um parque, um único lugar de lazer, chega a vez das paisagens de beira de estrada, entremeadas pelas áreas remanescentes da Mata Atlântica, cruzando os mares de morros. Até ficar tudo repetitivo de novo. Acha por bem iniciar uma conversa.

— Você vai para São Paulo?

— Isso mesmo.

— Então, fico no caminho. Desço em São José. Mesmo assim, estou só de passagem. Na verdade, devo seguir para o norte logo.

— Também estou indo apenas para ver minha família. Depois sigo para o interior, a trabalho.

— Pois é. As pessoas antes se dirigiam a São Paulo e Rio. Agora o movimento se faz ao contrário.

Lá fora prosseguem as mesmas paisagens, pelas quais já se perdeu o interesse.

— Fazem o contrário. Acho que agora, é esse o meu caso. — Dizia ela, sem maior interesse.

— É mesmo. Vim aqui buscar alguns documentos, depois prossigo para Belém do Pará.

— E eu achando que estava indo para longe. Depois de ver minha família, sigo para Santa Rita do Pardo, no Mato Grosso do Sul.

— É o caminho contrário. Sigo para Belém, também a trabalho. Sou analista de TI, e por aqui já está ficando difícil. Como surgiu essa proposta boa, vou até lá. É longe de casa, mas não posso perder.

— Claro, quando eu chegar, você ainda estará viajando. Sou veterinária. Quem dera pudesse dizer que estou indo para trabalhar em um aras. Seria legal, seria bonito. Mas, não é não. É com gado mesmo, e gado de corte (risos). Pois é, são as necessidades da vida.

— Sim, as tais necessidades. Onde fica Santa Rita?

— A leste do estado, a uns cem quilômetros da divisa com São Paulo. Depois do rio Paraná, uma divisa natural.

— Ainda vai rodar um bocado.

— Vou sim, acho que uns 500 quilômetros, ou mais. Procuro ter uma atitude otimista. Já pude conhecer lugares interessantes que eu nem sabia que existiam. Tive o meu tempo de ser muito ligada em praias, mas também, essa fase já passou. Sinto vontade de ver outras coisas, outros lugares e outras gentes.

A jovem veterinária de olhos claros prendia a sua atenção. A ponto de lamentar estarem se dirigindo a lugares tão afastados. Quem sabe, fosse boa coisa conhecer a moça. Melhor esquecer.

Ele tinha boa conversa e ela era mais afeta aos detalhes. Ela pôde reparar nos cabelos curtos e negros. O sorriso discreto e a gesticulação moderada. Também resolveu parar com aquilo e deixar a fantasia de lado. Logo, logo, cada um teria de assumir seu rumo.

Chegam em São José. Estende a mão para a moça que em breve estaria cuidando do seu gado de corte.

— Como é mesmo seu nome?

— É Laura.

— Laura, bonito nome. Me chamo Fernando. Obrigado pela companhia e pela conversa Laura. Quem sabe a gente não se vê de novo, não é?

— Quem sabe. Obrigada pela conversa Fernando, e boa sorte.

— A você também. Felicidades lá em Santa Rita.

Desceu do ônibus e aguardava junto à calçada por alguns instantes. A ponto de vê-la, acenando de dentro de ônibus. O veículo se afastou lentamente, e ainda ficou ali, de pé. Pensando em que exatamente, talvez nem ele soubesse, ou apenas lamentasse.

São como que fragmentos. Certas lembranças, certas passagens sobre as quais não tivemos e não temos a menor ingerência. É aquilo que está ali e isso é tudo. Já se vão uns catorze anos. Cada um foi cuidar da própria vida. Com o tempo, acabou se estabelecendo em Belém. Nunca mais ouviu falar de Santa Rita, e nunca mais soube dela.

Go Back

Comment

Blog Search

Comments