Foto: Marcus Lange.
Por: Antonio Mata.
Era um gato, daqueles todo preto, em uma sexta-feira; no dia 13. O mês era fevereiro, em noite de lua cheia. E o cenário era o morro. Aos três anos de idade, isto já era vida longa por conta das circunstâncias. Namorador e fujão, abusava da sorte percorrendo silenciosamente os telhados; equilibrista dos muros e de andejar taciturno pelos becos do morro.
Arisco não permitia ser tocado nem dava chance de se aproximarem. Intuitivamente, era como se soubesse do risco, caso caísse em mãos erradas. O episódio também não se deu nos dias de hoje. Era sim, um tempo de muito misticismo; muita desinformação; mas também um tempo de muita pobreza. Gato preto, de alguma forma, de um jeito que a gente desconhece, já nascia sabendo.
Letícia, moradora do morro havia encontrado o gatinho dentro de uma caixa. Havia sido deixado no pé do morro para morrer. A adolescente, por pura compaixão, assumira o risco de criar um gato preto com todo o misticismo e crendices que existem em torno do animal. Dizia, “não é Máli, é Malí”, se referindo ao nome que havia escolhido para seu bichano pretinho. Carinhosa e muito atenciosa com seu pretinho, rapidamente angariou a simpatia e a confiança do animal.
Sabia que o bichano poderia ser sequestrado e assassinado a qualquer momento, mercê de mentes atrasadas. Aquelas mentes conhecidas, por morarem nas proximidades, menos mal, pois já sabia o que esperar. Tinha mais receio daqueles que de fato não conhecia. Carne para churrasco, couro para tamborim, despacho de encruzilhada. Malí estava cercado de mentes medievais e de misticismo, e o morro era o castelo fortificado onde viviam todos eles.
“Bené, bora pegá ele. Eu fico com a carne pru espetinho e tu fica com o coro. Fechô?”, dizia Paulinho caolho. Bené concordou, naquela noite estavam dispostos a selar a sorte do pequeno Malí. Bené era um beberrão interessado em conseguir couro para um tamborim novo. Um jeito antigo e barato de se obter o instrumento. O problema é que os gatos se tornaram raros por conta das caçadas constantes.
Havia também uma cigana, assim diziam. Uma certa madame Ijuciara, uma cartomante, vidente, entre outras coisas, mas que também precisava de um gato preto para oferecer seus serviços, ou senão, para atender pedidos já agendados. Gostava de esclarecer que organizava sortilégios, ainda que os vizinhos insistissem em dizer que ela só fazia macumba. O fato é que Malí era raro e isto aguçava o interesse nele. Ijuciara estaria disposta a pagar um preço razoável pelo gato vivo, desde que alguém patrocinasse o evento, já que o comércio de animais não era propriamente o seu ramo. As fraquezas humanas, embebidas em suas falências e injúrias, hábitos covardes de um passado doentio, estavam em franco andamento.
Às vistas de quem as pratica, é entendido como normal, não há nada de mais em fazê-lo. É injusto, mas o que fazer se o agente da injúria não tem noção da injustiça, não entende como maldade? Resposta: o advento de novas ideias e sentimentos mais humanizados, porque mais tendentes ao bem.
A descoberta de uma outra forma de se pensar, para além das antigas práticas de se maltratar animais, justificadas no misticismo e na própria estupidez humana. Antes já era assim, outros tantos já faziam a mesma coisa, poderiam dizer. Novas ideias vislumbram o futuro, onde o passado já não ensina mais.
A noite avançava e Malí não desconfiava de tais situações e muito menos de que ele mesmo era o alvo. Paulinho caolho e Bené montavam guarda no beco onde o animal costumava ser visto em seus passeios noturnos, e mais fácil para cercá-lo. Agora é só ter paciência e aguardar. Madame Ijuciara tinha concebido um plano um tanto quanto parecido, pois havia incumbido alguém de aguardar na saída do beco, sem que soubessem uns dos outros. Defendiam interesses próprios.
Já no início da madrugada Mali apareceu. Aguardaram que descesse do muro e chegasse até o fundo do beco, onde uma pequena porção de carne esperava por ele. Quando Mali se distraiu comendo a carne, foi envolvido por uma rede atirada sobre ele. Debateu-se sem sucesso e seus caçadores já estavam festejando quando, em uma ação fortuita e desesperada; conseguiu se libertar.
No esforço de fugir de seus captores, Mali saltou na direção de uma cerca tendo recebido ferimentos sérios. Na continuação da fuga, escorregou tendo caído de grande altura, mas sem o avistamento de seus perseguidores, escondido no meio da noite. Na manhã seguinte, seu corpo rasgado e estendido sobre o descampado identificava a altura da queda.
O corpo já sem vida de Mali se tornou alimento de urubus que agora limpam também a desfaçatez humana. Naquela manhã não houve espetinho, não houve couro de tamborim e nem preparativo de despacho. Assim deu-se o fim da história desprezível. Só que não é assim necessariamente. Naquilo que se acredita ser o fim melancólico de uma história, é apenas o início de mais outra.
Na noite anterior, ao bater no chão e perder a vida, Mali foi socorrido por benfeitores espirituais que zelam pela segurança de animais em iminente perigo. O padecimento sob condição vil não é compromisso do animal, da feita que não pesa sobre ele o resgate de faltas passadas. Assim, Mali ao primeiro golpe que lhe tiraria a vida, foi imediatamente desligado de seu corpo; de tal forma que o que quer que tenha acontecido depois, já não mais o afetava. Resguardava-se assim o animal de sofrimentos mais intensos; e que ele não precisava enfrentar. Ao ser resgatado, já do outro lado da vida, Mali só queria saber de correr para sua casa e avisar Letícia de que estava tudo bem.
Queria que soubesse que ainda estava vivo. No intuito de acalmar o animal, seus benfeitores permitiram que se dirigisse à casa de sua tutora, brevemente. Então, ao chegar na casa de Letícia, subiu sobre a cama, olhou-a bem de perto, emitindo aquele ronronar típico dos gatos quando querem demonstrar satisfação, e se aninhou junto de sua amiga. Após certificar-se que Letícia o tinha avistado, permaneceu por mais alguns instantes. Letícia o olhava bem de perto e sorria. Sabia que agora iriam cuidar bem dele. Depois, Malí tomou o rumo na direção de seu benfeitor.
Quanto aos humanos, seus perseguidores, continuarão na cegueira espiritual, sacrificando suas próprias existências, recebendo vibrações de péssima qualidade, menosprezando o presente oferecido por Deus para ajudá-los no trânsito exigente sim, mas sempre necessário por sobre a Terra. Porém; de acordo com o seu baixo quilate espiritual. Até que resolvam despertar. A benção do Divino sempre esteve próxima, mas; cegos e perturbados, os homens não conseguem perceber.