Por: Antonio Mata.
Daquilo que a lembrança traz, pouco sabia de onde esteve ou onde estava. Menos ainda o que fazia ali. Sentia-se enfraquecido, como se tivesse cumprido uma longa caminhada.
Uma região muito distante e diferente. Percebia uma vaga familiaridade. Tudo muito fragmentado e incompleto, no tempo, no espaço, na memória fraca, quase nada.
Entre uma fala e outra, buscava reunir os pedaços de memória e juntar a uma peculiar visão, ou visita. Quem realmente sabe? Enfim, conseguiu reunir tudo e fazer uma narrativa.
— Mas posso dizer uma coisa. Aquilo que marcou minha alma, de um jeito que parece me visitar, quando menos espero. — Para por um instante e pensa.
— É que surgiu o frio. Isso não era assim, não daquele jeito. Aí veio o frio, intenso, como nunca se viu. Fazia muito frio, foi tudo muito rápido. Esperava passar, acabar. Mas não acabou, não.
Da memória humana que é curta, limitada e igualmente incompleta, o frio congelante não acabaria nunca mais. É assim, quando não se sabe ou não deixou, ou não se conhece vestígio. Imemorial e invisível, surge o nunca mais.
— Do lugar não lembro direito, não sei o nome. Só lembro que havia muitas casas. Eram casas em madeira e eram redondas, todas redondas. A cobertura era feita com cascas de árvores. Então, formavam um grande círculo. As casas todas iguais. Não usavam tijolos ou pedras.
Torna a deter sua fala e parece pensar. Reclama do esforço e do cansaço, por estar ali. Um lugar diferente, com gente diferente. Não queria estar ali e nem falar coisa alguma. Pedem para contar, para dizer o que lembra.
— Acho que fui lá, ou algo me fez lembrar de lá. Não sei direito. É distante, muito distante. Talvez para tornar a ver como era tudo e poder contar para alguém. Acho que é isso. Mas, acho que não tem a ver comigo. Só sei que havia muito frio e muito forte. Não esperava por tanto frio. Ninguém esperava por aquilo.
— Então é isso, é para contar o que vi lá. Pois bem, no meio do círculo, no centro, havia um espaço grande onde fizeram uma construção maior. Um grande salão ou um templo, de paredes altas, todo em madeira. A maior construção do lugar. Também todo arredondado. Deixavam um grande espaço entre essa construção e o casario. Não sei o que se fazia lá.
— Quando se completava o círculo de casas, mais além faziam outro, e outro e mais outro. Era assim que o lugar crescia. Assim, surgiam ruas circulares, separando as casas. Saindo de um ponto nestas ruas e seguindo sempre adiante, se voltava para o mesmo lugar. Acho que todo mundo acabava conhecendo todo mundo ao longo dessas ruas.
— Além disso, faziam um conjunto de ruas radiais. Ligando as casas dos círculos mais afastados ao centro. Pude ver que o último círculo de casas ainda estava incompleto.
— Pude ver homens e mulheres usando um pano em suas cabeças. As mulheres usavam um vestido que se estendia até os pés. Os homens trajavam um saiote que começava nos ombros e ia até os joelhos. Por baixo usavam calças compridas por. As crianças vestiam roupas parecidas.
— Nas proximidades da cidadela podia-se ver campos cultivados com centeio e aveia. Bosques podiam ser vistos nas imediações. Estradas de terra batida seguiam até onde a vista podia alcançar.
— É o que pude ver e aquilo que me lembro. Não sei se fui conduzido até lá, se foi um sonho ou mera lembrança de algo. Eu não sei. Não sei por que estou aqui, nem o que estou fazendo.
— Não sei como aconteceu. Meu filho me chamou para me mostrar dois sóis. No céu havia dois sóis brilhantes
— Não esqueço do frio. Mas, de jeito nenhum. Esse foi cruel conosco. Como nunca vi antes. Com dois sóis brilhando? Não entendi coisa alguma. Ninguém entendeu. Não sabíamos o que era aquilo tudo.
— Chegou repentinamente aquele frio, sem ninguém esperar. Vi as nuvens escuras no céu. Começou uma chuva forte, muito forte. Então quando parecia parar, quando minha filha me chamou para ver da soprou um vento frio horrível. Todos estavam dentro de suas casas por causa da chuva. A chuva fria se tornou congelante. Muito granizo, muita quantidade.
— Tentei abrir a porta de casa e não consegui. Havia granizo até a altura da cintura. Estava escurecendo, quando minha filha me chamou para ver pela janela. Ela estava sendo tapada com neve, até ser coberta totalmente. Dava para ouvir o barulho do vento forte que fazia lá fora.
— Achei melhor que os demais fossem dormir. Eu e meu filho mais velho ficaríamos encarregados de manter a saída da casa desimpedida. Conseguimos cavar alguns degraus. Estávamos cansados e paramos um pouco.
— Horas depois, imaginamos que fosse dia. Estava escuro e retomamos a escavação. Em dado momento já estávamos além da altura da casa e a abertura não surgia.
— Cavamos mais degraus a partir daí. Até que o cansaço foi tomando conta. Entendi que o ar estava acabando. Cedemos ao cansaço e não vi nada mais. Não havia mais luz, só a escuridão e o cansaço. Foi assim que tudo se acabou. Fomos soterrados, todos nós. Acho que nas outras casas aconteceu o mesmo.
— Foi pouco, ou foi muito? Eu não sei. Para nós, presos lá embaixo e sem conseguir sair, foi a luta até a morte. Foi o gelo eterno.
Apenas um relato de confusão mental. Desconexo, diferente e incomum. Por que razão o levaram até lá? Ou foi só um registro em sua mente. Então, comunicar para quê?
Na outra extremidade da sala, outra comunicação mediúnica dava ciência do degelo na Antártida. Com ele, o possível descobrimento de uma cidade e demais assentamentos humanos sepultados pelo gelo eterno. Ouve sinais? Quem compreendeu saiu dali?
Na mídia, davam conta da invasão das águas no litoral argentino. Um maremoto meteorológico invade e assusta as praias de Santa Catarina, no Brasil. Os relatos, gravações e registros se multiplicam. O gelo eterno dá mostras de querer passar e mostrar o que se foi. Mudanças estão em andamento. São momentâneas, vieram para ficar? As geleiras parecem não ser mais eternas.