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Gigantes

                                                                         Foto: public domain pictures

Por: Antonio Mata

 

Tinha a cabeça repleta de conflitos, dores e desilusões. Sua fé não lhe trazia as certezas e a paz que um dia imaginara para si e para sua gente. Viu a compaixão sucumbir ao temor e este se transformar em ódio. Aquele que cega, se apossa e mata.

A safra do trigo havia sido a melhor possível. Alimento para todos e a certeza de um ano de fartura. A criação de animais também crescia. Bois e cabras não faltavam. Por vez a regularidade das chuvas proporcionou muitas pastagens para o gado, as cabras e ovelhas, além da boa safra.

Era Raymo, o líder de pequeno agrupamento de agricultores e criadores de animais. Viviam na divisa entre o nomadismo, pela necessidade de se acompanhar a criação, a coleta, a caça e a vida de agricultores em pequeno vilarejo, erigido com tijolos e palha, ainda que a maioria dos seus ainda preferissem as tendas arejadas de seus ancestrais. Se tal situação poderia significar uma cisão, isto ainda não estava visível.

Assim, ainda não existia uma cidade, mas um punhado de construções toscas que nem todos aceitavam. Consideravam-nas desconfortáveis e pouco práticas, impedindo o deslocamento livre. Era mais exatamente um arraial.

Somados os dois grupos, teriam pouco mais de duas mil pessoas. Só a quarta parte aceitava a vida no vilarejo. Inegavelmente eram estes que mais tinham afinidade com as coisas da lavoura.

Tempo bom, de fartura, porém Raymo prosseguia apreensivo com o desenrolar de certos acontecimentos que não queriam deixá-lo. Não estava sozinho em suas apreensões. Os anciãos, não mais que meia dúzia de pessoas, se reuniam com frequência. Confiavam em seu líder, assim como compartilhavam das mesmas apreensões. Algo estava no ar e estava crescendo.

Naquela noite, os anciãos ao redor da fogueira, na companhia de Raymo, confabulavam.

— Ontem, contei pelo menos 42 deles. Felizmente estão meio espalhados. Uns nos campos, arando a terra. Existem aqueles que pastoreiam o gado, outros as cabras e as ovelhas. Outros ainda trabalham na caça. Assim, estão espalhados pelos campos. — Dizia Gonnar, um dos anciãos.

— O ocorrido no campo foi apenas uma mostra antes que tudo cresça e percamos o controle sobre os acontecimentos. — Era Efraim, entre acenos de concordância e aceitação.

— O que acha Raymo? Precisa decidir o que fazer. — Indagava o velho Gonnar.

O grupo se referia a uma briga ocorrida durante o preparo da terra. O fato envolvia Alaim, um homem de seis côvados. Metera-se com um dos demais por achar que estava sendo enganado na divisão dos cestos de trigo. Entendia que por ser maior, sua família deveria receber mais que os outros.

— Pois eu lhes digo que deveriam morrer agora, antes que seja tarde. — Reforçava Gonnar.

O conflito esquentou quando os demais homens de grande estatura se reuniram com Alaim, alegando que ele tinha razão. Afinal enfrentavam o mesmo problema. Logo eram sete gigantes cercando dois homens que se opunham. Foi esta cena que se somou a outra e mais outra. Logo os anciãos notaram o risco que todos estavam correndo. Era este o pensamento vigente.

Então, era isto que importunava Raymo e lhe tirava o sono. Era homem forte e capaz. Sua liderança não era contestada, nem pelos gigantes. Raymo entendia as preocupações dos anciãos. Também sabia o que lhes ocorria em suas mentes. Sem maiores impedimentos, aceitariam matar os gigantes se isto lhes trouxesse o habitual sossego, e a certeza de uma velhice pacífica e pacata.

O caçador galgado à condição de chefe do grupo, era por sinal muito bom caçador, entretanto não era um guerreiro. Não enxergava a vida pela ótica da espada e das batalhas. Vira seu povo crescer por sobre aquelas terras e estaria disposto a morrer por sua gente. Porém, esta não era a questão. Queriam eliminar integrantes daquele mesmo povo, que haviam crescido entre eles, filhos de sua própria gente. Raymo era um homem de conciliação.

Entre os gigantes estava Baltar. Com 5,5 côvados de altura (3,63 metros) Baltar vinha de uma família de amigos da família de Raymo. Por vez, o líder caçador sabia que da mesma forma, em outras famílias existia o mesmo dilema. A mesma dificuldade para simplesmente condenar aqueles com os quais haviam crescido e criado relações de amizade e camaradagem. A serpente da desunião e do conflito rondava o arraial. Aguardava o momento crítico para saltar e inocular seu veneno.

Os tempos avançavam preguiçosamente e a população local cruza os 2600 integrantes. O número de gigantes também cresceu, agora atingindo o total de 53 homens.

O clima da região havia sofrido uma reviravolta, das incontáveis ocasiões em que mudanças extremas trouxeram grandes dificuldades para todos. Estava na cultura oral dos mais antigos, aqueles que viveram estes cenários de fome.

Conhecia-se muito pouco do mundo onde se vivia. Ninguém, além de um punhado de velhos, havia percorrido mais de 10 dias de viagem para além do arraial. Mesmo o principal rio da região, e cuja nascente era conhecida, esta não ficava a mais de três dias. Haviam aprendido com os mais antigos que viviam nos melhores campos das redondezas. Seu nomadismo não incorria mais que cinco dias, e isto lhes era o suficiente.

Assim, o que quer que acontecesse com o clima, traria implicações imediatas, por conta do isolamento em que viviam. De todo modo, migrar sempre seria uma forma de se afastar de condições extremas. Ainda mais para um povo meio sedentário, mas também meio nômade. Um risco real? Adentrar sem o saber, em terras estrangeiras. Tudo dependeria do clima.

A estiagem extrema chegou provocando tudo que ela é capaz de trazer. O escasseamento de grãos, a eliminação da maior parte dos rebanhos, a quase extinção da caça e o desaparecimento da coleta, antes que simplesmente morressem de fome. Comia-se carne salgada, enquanto houvesse, depois estabeleceu-se cotas de grãos. Em breve estariam reduzindo e racionando mais ainda as cotas, sem que as chuvas dessem mostras de retornar.

Apesar de todo flagelo, o rio local ainda oferecia pequeno fio de água, o suficiente para manter a população. Esta já sofria com a morte das crianças e idosos sob o calor intenso e a pouca de comida.

Aliada nociva de um conflito que já estava presente no arraial, a fome oferecia toda sorte de argumentos de discórdia e contendas. Até que finalmente ela chegou, tão asquerosa quanto a serpente a qual se juntou.

— Não é possível que Raymo não esteja vendo isto. Estes gigantes comem mais que todos os outros. Comem muito, enquanto isso nossos homens enfraquecem de fome! — Afirmava um dos anciãos.

— Não se trata de uma questão meramente de distribuição. O que está em jogo é a sobrevivência da ordem, da lei e de nosso próprio povo. Poderão simplesmente cair nas mãos dos gigantes e se tornarem seus servos e não seus irmãos. Eu conheço essa gigantada toda, desde o início. Por isso, sempre fui contra! — Sentenciava outro.

— Pois não vejo as coisas dessa forma. É bem verdade que sempre oferecemos boa comida aos gigantes. Mas também sempre foi verdade que oferecíamos o mesmo a toda a nossa gente! Não discriminávamos ninguém! Por que isso agora? — Bradava um terceiro, em defesa do alvorecer da racionalidade contra a selvageria.

Simplesmente não havia consenso. A serpente, aliada a fome, em breve mostrariam a que vieram. E o que são capazes de fazer sempre que se apresentam.

Os nômades, que compunham a maioria, finalmente haviam resolvido deixar o local e arriscar a pele na busca de paragens melhores, com ou sem fome. Raymo decidiu acompanhar o grupo. Se obtivessem sucesso, comunicaria aos demais.

Um dia após a partida de Raymo, conduzindo os nômades, certo grupo de homens buscava escavar um poço para obter mais água, pois o filete remanescente já havia se tornado insuficiente. Foi quando tudo aconteceu, repentina e violentamente.

O pouco alimento disponível havia sido encaminhado ao grupo, trazido que foi pelas mulheres. Vendo as mulheres chegando com o alimento, na realidade uma espécie de papa, dois correram até elas e se apossaram dos vasilhames, virando-os sobre as bocas famintas. Eram então dois gigantes e seis outros homens, a compor aquele grupo de trabalho.

Ao ver aquela cena, um dos homens de súbito, sacou de sua faca e atacou o primeiro gigante esfomeado logo à sua frente, cortando-o na altura das costelas. O gigante ferido levantou a vasilha de barro e a espatifou na cabeça do agressor.

Com o homem ao chão, passou a esmurrá-lo sucessivamente, até que seu rosto foi transformado em uma massa de sangue. Os demais se armaram de paus e pedras e atacaram os dois gigantes, estabelecendo o começo da matança. Ao final, os dois gigantes estavam mortos, ao preço de um trabalhador ferido e cinco mortos.

As mulheres saíram em disparada na direção do Arraial para avisar aos demais. Quando trinta homens chegaram ao local, tudo já havia ocorrido. Um único escavador estava de pé e todo ensanguentado pela refrega.

Um mensageiro foi enviado a Raymo, alcançando-o no dia seguinte. Naquele dia Raymo entendeu que todos os gigantes seriam sentenciados à morte. O número de trabalhadores mortos para poder detê-los seria utilizado como prova.

A notícia corre por todo o arraial. Alguns gigantes haviam saído em grupos de caça para ver se encontravam alguma coisa. Mesmo Raymo sendo contrário a medidas violentas, tramaram contra os caçadores por serem um grupo acostumado no manuseio de armas. Era tudo muito simples, encontrar os grupos de caçadores e eliminar os gigantes enquanto estavam afastados dos demais e, portanto, vulneráveis. A olhos vistos a situação fugia ao controle.

O primeiro grupo de caçadores foi interceptado no dia seguinte, onde seis gigantes foram tocaiados, flechados e finalmente mortos com lanças e clavas. O segundo grupo, com mais seis gigantes teve a mesma sorte. No total quatorze gigantes haviam sido assassinados, entre eles Baltar. Os atacantes, valendo-se do elemento surpresa, somente perderam quatro homens. Antes que a revolta acalmasse, este número ainda iria crescer.

Trinta e nove gigantes formavam um pelotão duro de vencer, sem a perda de muitos homens naquele embate fratricida, pois logo as mortes dos gigantes caçadores seriam descobertas. Os fatos que se seguiram não constam de nenhum registro. Nem por isso poderiam ter sido menos nefastos.

O grupo remanescente de gigantes não estava reunido. No desenrolar daquela situação, Raymo deixara o arraial na companhia da maioria nômade. Por terem se afastado, não sabiam do massacre ocorrido na escavação do poço. Apenas Raymo havia sido cientificado pelo mensageiro, tendo escondido tal informação dos integrantes do grupo de nômades.

O bando que participara das tocaias, cerca de uma centena de homens, juntou-se aos 16 caçadores remanescentes. Se poriam em marcha por um dia e alcançariam o arraial. Lá encontrariam ainda 14 gigantes. Sabiam de antemão que haveria nova matança e fizeram suas escolhas.

No arraial não foi difícil arregimentar outra centena de homens, pois o medo disseminado no arraial era grande. Antes do anoitecer do terceiro dia, investiram contra os gigantes. Quando o combate cessou, os 14 gigantes estavam mortos, não sem antes devastar as fileiras de homenzinhos que os atacavam.

Dos 212 homens que participaram da luta no arraial, somente 11 sobreviveram. Os sucessivos embates já haviam custado a vida de 280 pessoas, entre gigantes, homens, mulheres e crianças, desde o início. A morte de mulheres e crianças durante a luta, só serviu para aumentar a oposição aos gigantes, que agora era unânime.

O arraial já não possuía mais gigantes. Foi ledo engano, por um momento supor, que a paz estaria de volta ao vilarejo nascente. Na realidade o menor dos dois grupos humanos perdera muitos homens capazes de lutar, quando da eliminação dos gigantes. Restando apenas, outros duzentos homens famintos, para defender idosos, mulheres e crianças igualmente famintas.

Acompanhando Raymo na caravana, ainda havia 25 gigantes de pé. Entre eles, seus últimos gigantes caçadores. Mais uma vez a sorte do grupo como um todo estava nas mãos de Raymo, mesmo tendo partido com os nômades.

Se os gigantes remanescentes se voltassem contra eles, por conta dos sucessivos massacres, o arraial dessa vez estaria sob verdadeiro risco de extinção. Rapidamente enviaram novo mensageiro a Raymo avisando que haviam vencido 26 gigantes e que, contudo, haviam perdido mais de duzentos homens.

Na noite do terceiro dia, Raymo tinha muito o que pensar. Antes do anoitecer, havia confabulado com os gigantes no sentido de mantê-los calmos e reunidos na caravana em marcha. Queria dar tempo até que tudo esfriasse. Ainda que isto pudesse significar um risco assumido. No seu íntimo, estava temeroso do que pudesse estar acontecendo, nas imediações e dentro do próprio arraial.

Um aspecto dificultava as conversações e o estabelecimento de um mínimo de confiança mútua. Ogue acreditava que Raymo não havia comunicado completamente a mensagem recebida, e por isso desconfiava das palavras do líder. Já imaginava que houvesse mais alguma coisa.

Contudo, ignorava a luta quando da escavação do poço. Diferentemente de Raymo, que fora informado e procurava afastar o perigo. Havia decidido afastar a caravana do arraial, o máximo que pudesse.

Outra questão que corria em paralelo. Baltar era irmão de Ogue. Baltar por vez havia morrido nas tocaias, e o gigante Ogue ainda não sabia que o irmão estava morto.

Entrementes, havia escurecido e Ogue não tirava da cabeça que algo poderia estar sendo escondido por Raymo. Deixou cair a madrugada, reuniu-se aos 24 gigantes remanescentes e partiram silenciosamente, de retorno ao arraial.

No amanhecer do quarto dia interceptaram o mensageiro enviado pelo arraial. Nas mãos dos gigantes, este confessou o comunicado a Raymo, dando ciência do combate e as mortes do dia anterior. Ogue sentiu-se atraiçoado. Em passo acelerado conduziu seus gigantes ao arraial. Agora, Ogue queria destruí-lo.

Ao saber do retorno dos gigantes durante a madrugada, Raymo já não tinha mais nenhuma escolha. Era capital que retornasse ao arraial e interceptasse os gigantes, antes de sua chegada. Raymo ignorava que haviam capturado o mensageiro e que já se afastavam em passo acelerado. Reuniu 350 guerreiros e puseram-se a caminho. Os demais homens, mulheres e crianças, prosseguiriam na busca de terras melhores.

Como os gigantes desapareceram? O que havia de desafiador em conviver com estes seres? Eventualmente, encontram seus restos mortais. Ossadas de algum sepultamento. E se não houve sepultamento. Naqueles dias de conflito e morte, gigantes e homens comuns foram sepultados em uma vala coletiva. Foi o sentido de igualdade que puderam obter.

Ao se aproximarem do arraial, Raymo e seus guerreiros puderam identificar os rolos de fumaça das casas e tendas em chamas. Ao chegar no local, o espetáculo era deprimente. O povoado havia sido arrasado ante ao enfrentamento brutal entre os defensores enfraquecidos, lutando por suas famílias e os gigantes igualmente cansados da marcha. Uns quarenta sobreviventes deixaram de ser escravizados ou assassinados, quando o punhado de gigantes restantes puderam avistar o grupo de guerreiros chegando. Apenas oito gigantes estavam de pé. Entre eles estava Ogue.

Raymo empreendeu uma caçada de três semanas, até encurralar Ogue e seu bando. Terminava selvagemente o ciclo de lutas entre homens e gigantes. Mais de 600 pessoas haviam perecido desde o início da luta. Raymo vivenciou a diferença tênue entre a compaixão e o ódio. Havia se transformado e suas ideias de paz sucumbiram com a morte dos gigantes. Estes já não existiam mais.

Ficou junto aos sobreviventes, com mais 30 homens e enviou os demais de volta ao grupo principal de nômades. O tempo se incumbiria de cicatrizar as feridas, além de trazer as chuvas de volta. O campo frutificou mais uma vez. Os nômades retornaram trazendo pequenos rebanhos, e novamente se juntaram ao que sobrara do arraial.

Os anos avançaram e o passado acabou sepultado sob a poeira dos tempos, lembrado apenas nas histórias contadas de uma geração para outra. Outras populações, novas tribos, surgiram na região e o medo agora, já não era mais dos gigantes, mas de outros homens.

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