Imagem: Wikimedia Commons - Fadbricio da Silva
Por: Antonio da Mata
O rio era visível, logo além de pequeno descampado. Não mais que cem metros separavam o lugar de pequeno atracadouro improvisado. Ali embarcavam umas poucas sacas de castanhas; algumas pelotas de látex, mas principalmente farinha.
O peixe, somente para o consumo local, era obtido ali mesmo pelas cercanias. Muito pouca população. Precisando, entretanto, embarcar a produção para vender na cidade.
O vilarejo reunia um punhado de casas de madeira, quando não, eram construções em pau-a-pique. Pobre de terra batida, e continuou assim, mesmo com a ação de novos habitantes que por ali se estabeleceram e oferecendo seu alento.
O fato é que com estas famílias chegando, com ideias de se estabelecer, houve quem não gostasse. A capital estava distante. Não havia quem trouxesse produtos do mundo lá fora e notícias sob a forma de jornais usados. Havia de se buscar em outra localidade, na força do remo.
Quando o gaiola passava, ainda era um grande evento. Sem nada deixar para trás, foi-se o interesse e o tempo. Apenas se via o fumacento passar.
Incomodado com o aumento do número de moradores, o homem montava guarda, circulando pela propriedade de construções toscas e envelhecidas.
O descampado que passava na frente, na medida que novas moradias surgiam, foi assumindo o papel de logradouro. Alguém a chamou de Rua da Piedade, e assim ficou.
— Essa arruaça de barulho, essa penca de gente fazendo falatório o tempo todo. Um arrasta pé sem fim. Só excomungado aqui, podendo sair pra infernizar em outro lugar, não. Fica é aqui, atormentando todo mundo. Vão caçar serviço, raça de gente moloide, vão caçar serviço!
A uns trinta metros dali, quatro pessoas passavam conversando amenidades a respeito do dia em curso. Que era mais frio, que era mais quente, que era mais morno.
Logo se afastaram dali, naquele dia de ventos frescos de uma tarde pacata, sem que ficasse vivalma pela rua. Não se ouvia mais nada, nem na terra, nem no rio.
A espingarda no ombro, com o facão na cintura, deixava antever que Romão não estava ali só por brincadeira. Os saquinhos e recipientes pendurados no cinto, faziam parte da indumentária do vigilante.
Fumo picado, um pouco de sal, uma carga de pólvora, munição? Só dava para especular, já que ninguém iria lhe perguntar nada. O carrancudo não iria responder mesmo.
Circulava, parava, andava de novo. O circuito incessante deixava notar qualquer coisa estranha. Qualquer coisa fora de lugar ou de propósito. O diacho é que não parava nunca, fosse de dia, fosse de tarde, fosse pela noite.
Afinal, guardar o quê? O que haveria de ser tão importante e de tanto valor, naquele pedaço de terra? Um hectare, por muito favor. Assim, não haveria de passar, o que era mais estranho ainda.
Guardar um pedaço de descampado, com uma casa que passava a maioria do tempo vazia. Pouca gente se apresentava para morar no lugar. Ainda que ficasse perto do rio.
Certa ocasião, o gaiola passava subindo o rio. De tão carregado que estava parecia não sair do lugar. A roda girava jogando água para o alto e o bicho parecia parado.
— Tira o cachorro! Tira o cachorro! — Gritava alguém do lado da beira. Só para atiçar os viajantes e a tripulação do gaiola.
— Preciso do cachorro! Vou descer a sua mãe!
— Desce a sua!
— Vou descer a sua primeiro!
Despeito, gozação, palhaçada. Melhor, falta do que fazer, diria o guardião. Inflamado com aquela gritaria besta, agora bem real.
Depois de muito barulho e xingamentos inúteis, meia dúzia de caboclos subia a rua, levando consigo o mesmo falatório empolgado e desprovido de propósito.
No meio daquilo, daquele burburinho, morava um sentimento de repúdio pelo superlotado barquinho fumacento que avançava na velocidade de um velho, a pé.
Faz quanto tempo? Já fazia muito tempo que o gaiola passava ali, sempre cheio e sempre moloide. E que por isso nunca parava. Era só mágoa por apenas poder ver o gaiola passar sem nunca parar.
Um único barco por mês, na linha de Lábrea, cruzava o Purus. Sem marcas, sem placas, sem rastro, sem nada. Os caboclos gritando na beira do rio, estes também já se foram.
Cruzavam na frente da propriedade, cuja casa continuava vazia. Com carranca maior e mais feia que o habitual, ele mira. Mira, sim, ainda que sem necessidade. É que o alvo estava a uns três metros, logo à frente.
Ao puxar o gatilho, fez-se a fumaceira da pólvora queimada à pederneira e o projétil de chumbo dispara, sem erro, rumo à cabeça do infeliz.
— Ahiii! Ahiii! Ahiii! — As mãos na cabeça, denunciando que algo de muito errado estava acontecendo.
— Maurício, Maurício! O que foi, o que foi? O que tem na sua cabeça?
Maurício, de uns dezesseis anos, agachou-se no chão com as mãos na cabeça.
— Dói muito! Dói muito!
— Atacou uma dor de cabeça nele. Ficar aqui não vai resolver nada. Vamos até vovó Laura. Ela faz uma maceração, um chá, alguma coisa para dar pra ele.
— O que será que aconteceu com ele? Muito esquisito.
— Acho que soltou alguma coisa. Na cabeça dele, às vezes solta.
— Como é que solta?
— É de tanto andar, correr, fazer um monte de coisas. Tem hora que solta alguma coisa.
— O que é que solta?
— Não sei. Não dá pra ver. Só sei que soltou.
Ah, Isso tem cura?
— Tem sim, vovó Laura sabe curar.
Em um recanto, com galinhas soltas no quintal, a habitação simples, de um cômodo só. Ervas em cestos, pós moídos na pedra. Folhas secando ao sol, enquanto a chaleira no fogão de lenha preparava mais uma infusão.
Vovó Laura era por demais conhecida. A referência primeira para todas as dores e males que pudessem assombrar o vilarejo da ribeira. A benzedeira e curandeira do lugar.
Dirigiu os olhos fundos aos rapazolas com ar de interrogação.
— Ocês tava atiçando o povo do gaiola, não tava? Fala duma vez. Tava ou não tava? — Sem mais da metade dos dentes, assobiava por entre as aberturas, enquanto falava. Era só prestar atenção que dava para entender.
— A gente tava só brincando vovó. É verdade, ninguém fez nada de errado, não. Eles falam mal da gente. A gente fala mal deles também. É só isso.
— E o tal do guardião? Vai dizer que esqueceu?
Os rapazes se entreolharam, atrás de uma resposta.
— Vovó, todo mundo que mora ali, acaba indo embora. Minha tia falou que é lugar de macumba. É mal-assombrado.
— Mal-assombrado ou não, macumba ou não. A verdade é que seu amigo levou um tiro de sal.
— Um tiro de sal?
— Sim, meu fio, um tiro de sal. Vai fazer algazarra perto da casa do guardião que você também toma um tiro de sal. Aí você também vem aqui, pra dizer que a cabeça tá doendo.
— E agora? Será que ele vai ficar bom?
— Vai sim. Toma o chá que eu fiz e leva ele pra casa pra descansar. É só isso. — Parou um instante.
— Mais uma coisa. Quando passar pela casa do guardião, vê se ocês tudo cala a boca.
Não longe dali alguém contava vitória. Afinal, deu um baita de um susto nos moleques barulhentos.
— Volta de novo, faz bagunça aqui de novo. Comigo é no sal. O próximo é na bunda. Deu a ordem, deu a ordem, se deu a ordem, então é ordem, deu a ordem, deu a ordem. — Falava sem parar de uma tal ordem há muito recebida.
— Guarda, guarda Romão. A botija de ouro guarda. Eu enterrei aí, bem aí nesse lugar. Guarda ela guarda tudo. Se chegar alguém, come no terçado, dá tiro, põe pra fora. Guarda tudo.
Para que um espírito por demais perturbado possa dar as ordens, tudo de que precisa, é de outro perturbado que aceite obedecer. A mente guarda tudo.