Foto: Linnaea Mallette
Por: Antonio Mata
A família de lavradores tirava o sustento da terra às custas de muito suor e trabalho. Os quatro filhos foram afastados das brincadeiras da infância pela necessidade extrema de se obter mais braços para o trabalho. Realidade comum, onde o alimento só se obtém no cabo da enxada de sol a sol.
Era o mais novo dentre os irmãos. Também o único a se interessar pela carreira militar, tendo ingressado como soldado de infantaria, promovido a cabo quatro anos depois.
Vida que segue no aprendizado das armas leves da infantaria, não possuía maiores pendores intelectuais que pudessem ajudá-lo em concursos internos para uma situação melhor de carreira.
Prestava serviço regular em unidade no interior do país. De folga na cidade na companhia de alguns amigos assistiu a prisão de elementos nocivos, como eram chamados. Não deu maior atenção ao fato, muito pouco se importando.
No espaço de poucos meses após, veio a ordem de deslocamento do batalhão para os grandes centros urbanos da região. Com o tempo seriam informados que estavam ali para fazer a segurança do lugar, impedindo o trânsito de entrada ou saída no perímetro urbano.
Foi em patrulha que tornou a observar uma maior quantidade de pessoas sendo detidas e embarcadas em caminhões. Um companheiro comentava:
— Entrou nesses caminhões, não volta tão cedo, se é que um dia irá voltar. Seguem para os campos de reeducação. É lá que irão descobrir no que foi que se meteram. Só que muito tarde.
Chon ouvia o companheiro, e ainda que entendesse, por conta do próprio treinamento e doutrina recebidos, que devia lealdade às autoridades, intimamente, considerava um excesso ter de prender tanta gente. Começava a perceber que aquelas pessoas estavam prestes a desaparecer.
Achou melhor permanecer em silêncio e não voltou a se interessar pelo assunto. Afinal, aquilo não era da sua conta. Tinha suas próprias ordens a cumprir, precisando conduzir sua patrulha, comandando mais seis soldados.
Na manhã seguinte, toda a sua companhia foi convocada a partir em missão. Fariam buscas em um prédio de apartamentos, onde todos os moradores teriam suas residências vasculhadas.
Buscavam pessoas, homens e mulheres, a partir de uma lista de nomes e algumas fotografias para efeito de reconhecimento. Na ocasião pôde assistir a prisão de 37 pessoas, incluindo aí uma família de cinco pessoas, onde o filho mais novo tinha 11 anos.
Aquele episódio ficou marcado na mente de Chon. De volta para o local onde estavam acantonados, cometeu um erro. Chegou a comentar junto aos próprios amigos da companhia, as suas reservas quanto a validade das últimas prisões. Principalmente toda a família, incluindo crianças. Acreditava ter sido um excesso.
Na manhã seguinte foi interpelado pelo comandante de sua companhia que o ordenou a deixar seu fuzil e equipamentos e acompanhar dois outros soldados, os quais ele não conhecia. Deixaram o local e se viu a caminho da estrada, onde foi conduzido a uma fileira de caminhões.
Ao subir no veículo, não foi difícil entender do que se tratava. Pelo menos vintes pessoas, entre homens e mulheres já estavam no veículo, que logo se pôs em movimento. Chon havia sido preso, sem ver seu comandante, sem ser ouvido e sem ter agredido nenhuma autoridade, civil ou militar.
Os caminhões são conduzidos a uma espécie de centro de triagem, onde todos foram postos descalços e teve de entregar sua jaqueta com as divisas de sua graduação. Os homens então, foram reunidos e encaminhados a um veículo fechado, onde cerca de 50 homens tiveram de fazer uma viagem de pelo menos cinco horas, de pé, devido a falta de espaço no veículo.
Imprensados em tão pouco espaço e quente, muito quente. Logo o cheiro de urina começou a exalar se misturando ao cheiro de suor que já era nauseabundo. Chon, procurava em sua mente o que teria realmente motivado aquela situação, pois não havia comentado grande coisa.
Não citara nomes e muito menos desacatara fosse quem fosse. Ainda não via grande coisa no que havia dito, na sua opinião expressando simples compaixão por aquelas pessoas. Em meio ao calor e mal cheiro, não encontrava respostas e sua própria mente, estava como que anestesiada, mal se importando com os solavancos do caminhão, atestando o fim da estrada de asfalto e o início de uma estrada de terra batida. Detalhe que lhe passou despercebido.
Ocupava sua mente relembrando sua breve história familiar, cuidando da pequena lavoura. Os legumes frescos que sua mãe tanto gostava, e a sopa, que no inverno era costumeiramente rala, pelo pouco que havia para se colocar nela.
Foi assistindo filmes de desenhos animados, quando criança, na sala de projeção improvisada da vila, que conheceu, entre um desenho e outro, filmes de propaganda e divulgação do exército nacional. Identificou-se com aquelas fardas, as marchas, práticas de tiro e todo o resto. Decidiu que era o tipo de atividade que queria para a sua vida.
Seu pai, homem simples e amistoso, sempre disposto a uma boa conversa, onde se falava das amenidades do lugar. Aceitava sem reclamar, quando funcionários do governo compareciam para recolher a maior parte de sua colheita. Era por isso que, a despeito do trabalho e da produção alcançada, nunca tinham o suficiente para uma alimentação mais adequada.
Uma vida simples de gente simples, da qual agora sentia falta, e lamentava por ter desejado substituí-la pelas fardas e marchas que apreciava tanto quando criança.
A pequena habitação, toscamente construída e de pouco conforto, assumia o ar de lugar generoso e seguro, ante às incertezas que agora enchiam sua mente, enquanto o veículo prosseguia.
Apenas lembranças na busca de aquietar uma mente cansada. Fosse onde fosse, agora só pensava em chegar. Já não demoraria tanto. O caminhão alcançou o seu destino por volta das 15 horas, de uma tarde particularmente quente e seca.
Postos para fora, foram enfileirados próximos ao local onde passariam por nova triagem. Hen Chon, procurando se localizar ante aquela situação, aproximou-se do homem responsável por recebê-los, lhe dirigindo a palavra:
— Sou Hen Chon, sou cabo da infantaria do exército...
Antes que concluísse sua fala, recebeu uma coronhada que o fez estatelar-se no chão, meio desacordado.
— Você..., de pé.
Chon se levantou com a boca sangrando e dois dentes quebrados. O homem gritava em seu ouvido.
— Aqui você não é mais nada! Esqueça sua vida lá fora, e nunca mais me dirija a palavra, sem que eu lhe ordene! Eu disse nunca mais! Você entendeu?
— Sim senhor.
Não era só a pequena lavoura de seus pais que havia ficado para trás. Seus sonhos de envergar uma farda e fazer carreira militar haviam se dissipado, tal e qual denso nevoeiro sob a luz e o calor da manhã. Os tempos de indigência haviam chegado.
Respondeu a rápido questionário, recebeu uma muda de roupa encardida, a ordem de trocar-se e de se dirigir a um barracão, junto aos demais.
Chon, agora era um preso em reeducação, um preso comum. Se era verdade o que eventualmente ouvia, havia porta de entrada, não existia porta de saída. Chon entrou, sem querer estar lá. Como sair, se não há saída? Havia se tornado apenas mais um preso enfiado em uma roupa suja em alguma prisão desconhecida do país e do mundo, onde eventuais amigos e parentes jamais o encontrariam.
Pôde observar cerca de pelo menos cinco barracões postos em linha. Certamente que haveria outros. O lugar parecia dividido em setores de tal forma que deveriam existir outros grupos de presos. O interior de aparência miserável. Filas de catres em madeira nua, oferecendo muito calor nos dias quentes e muto frio no inverno.
O cenário, tristemente comum, terra inóspita cercada por muros e arame farpado, torres de vigia e cercas elétricas. Poderia ser de qualquer ditadura, de qualquer lugar, instalada em qualquer parte do mundo.
A comida sempre pouca, a água imprópria, a insalubridade dos alojamentos úmidos, a disciplina voltada para a humilhação e diminuição do ser. A parte mais penosa, os campos de trabalho.
Recolher blocos de pedra, fracioná-los com picaretas. Quanto mais fino, mais trabalho e mais extenuante. Era o trabalho que impunha o maior grau de sacrifício. Carregar os caminhões e recomeçar tudo, dezenas, centenas de intermináveis vezes.
Desnutridos e exaustos, os homens simplesmente adoeciam e morriam. Foi observando a retirada de corpos, embrulhados em lona, ou no que estivesse mais à mão, que soube por onde era o caminho da porta de saída.
Foi após quanto tempo? Dois anos, três anos? Muniu-se de coragem e tentaria a fuga dali. Para onde? Não importava, só pensava em sair primeiro.
Desviou-se da equipe de serviço na pedreira, buscando afastar-se. Sua fuga não durou uma hora. Recapturado foi empurrado na solitária em espaço ínfimo. Buscaria a fuga mais vezes, tendo se evadido por cinco dias em uma delas. Mais que a simples fuga de um preso, estava a transformação em um exemplo de obstinação e rebeldia. Ao dias começam a mitigar.
É chamado durante a noite para um serviço nos fundos do presídio. Para além do muro e da cerca elétrica, o lugar dava para um descampado de mais de cem metros, e a seguir um bosque podia ser visto.
Abriram um portão dando acesso ao descampado. Junto com ele saíram três guardas. O chefe da guarda e homem que lhe dera a coronhada quatro anos antes, e mais um terceiro estavam lá.
O mesmo guarda que havia lhe aplicado a coronhada, avança com uma faca em uma das mãos. Se abaixa e lhe corta o tendão do pé direito. Chon cai ao chão ante o golpe covarde.
É posto de pé, então recebe suas últimas instruções.
— Você tem vinte minutos, uma bandagem e um pouco de iodo. Faça bom uso. Seu tempo já está correndo. O material é atirado ao chão na sua frente.
Chon corre em enrolar a bandagem no tornozelo e colocar o iodo. Sai capengando, buscando levantar a perna direita, que já não dava mais passos. A perna havia se tornado uma espécie de muleta viva, dolorida ao choque de cada passada e por onde o sangue jorrava por conta do esforço. Sabia que iria morrer.
Avança, abre caminho pelo descampado. Cada reentrância do terreno na escuridão é mais um choque em sua muleta viva e cheia de terminações nervosas.
Avança penosamente, enquanto conversavam sobre o almoço que seria servido no dia seguinte, e a história de que teriam sorvete, pois era o aniversário do comandante.
Ele mesmo já tinha escutado de outros guardas, aquela mesma história, do sorvete servido no dia do aniversário do comandante. Chon sabia o que viria a seguir, sabia que iria morrer.
Prossegue apoiando a muleta viva com a mão e avança. Não para nem pensa em outra coisa. Só deseja chegar ao bosque, aos arbustos. Esconder-se, ganhar tempo, ganhar minutos. Que importa agora. Sentir o cheiro do mato mais uma vez. Algo que lhe é tão próximo. O frescor do bosque no meio da noite quente. Não pode gritar, sequer grunhir. Suporta a dor e avança.
Leva oito extenuantes minutos para cobrir os cem metros do descampado. Adentra o bosque, a dor é grande, porém avança pouco se importando onde pisa, desde que avance mais um pouco. Logo a caçada vai começar.
Outros oito ou nove minutos e o tempo se acaba. Logo os paços dos guardas serão audíveis. Busca algo que pudesse usar para apoiar a perna ferida. Encontra um galho seco e o arranca, ao preço de denunciar a sua presença. Denunciar, se entregar, que diferença faz? Há uma trilha de sangue pelo caminho. Os covardes pensaram em tudo. A brincadeira precisa ser boa, e nada como deixar pistas.
Foi boa ideia? Foi uma infeliz ideia? Já não quer mais saber. Vive e se agarra a seus últimos minutos, é tudo o que possui. Tenta se esconder. Os passos dos homens já estão próximos.
Estende por mais alguns metros. Em seguida retorna por caminho diferente. Se encolhe por trás de uma árvore e espera. Não será por muito tempo. Já está próximo de desfalecer pela perda de sangue. Apenas aguarda em silêncio e dor.
Alguém avança próximo da árvore, ainda ouve os passos cadenciados. Passa por ele e prossegue sem o perceber. Era tudo o que precisava. Levanta seu galho que servia de muleta, tal e qual um cajado a defender o pastor. O golpe se faria certeiro a espatifar a cabeça do homem de silhueta gorda e conhecida, ou espatifar-se a si mesmo. Cajado de galho seco arrancado com as mãos. O que vier primeiro.
Levanta os braços e se prepara a desferir o golpe. Contudo, se detém. No segundo seguinte, ouviu-se os estampidos de quatro disparos. Três deles acertaram Hen Chon. Seu corpo cai pesadamente no terreno. Ainda vê seus algozes se aproximando.
— Ele esteve a um passo de lhe acertar com o pedaço de pau chefe. O jeito foi atirar no desgraçado. Só atiramos para poder protegê-lo chefe. Sabemos como gosta de finalizar as caçadas.
— Então vocês sabem? Sendo assim, amanhã vão esperar no portão. Não quero ninguém alegando que atirou antes de mim, apenas para me salvar. Mesmo que sejam os dois guardas mais idiotas do campo. Amanhã virei caçar sozinho.
— Sim senhor chefe. O senhor é quem manda.
Com pequena lanterna, o chefe iluminou o rosto pálido de Hen Chon, que agonizava no chão.
— Se é que lhe interessa saber, você durou quatro minutos a mais que os outros, Hen Chon. Contudo, quem conclui as caçadas aqui neste campo, sou eu. Dito isto disparou contra o peito do fugitivo, encerrando a caçada.
Chon teve a possibilidade de levar seu verdugo com ele. Porém não o fez. Por medo, pouco provável. Faltar-lhe forças, também não. Reuniria suas últimas energias naquele golpe, pois ainda não desfalecera.
Na sua condição de prisioneiro indigente esquecido de todos, Chon teve seu algoz ao alcance das mãos. Não desferiu o golpe, que poderia matá-lo, simplesmente porque não quis.
Entre a mente e os sonhos do soldado Chon, e o comportamento sanguinário dos guardas do campo, principalmente do chefe da guarda, havia toda uma gama de valores, que o distanciava. Que afastava espiritualmente o soldado profissional, capaz de se sensibilizar com o sofrimento dos demais, dos psicopatas assassinos do campo. O caráter, o dever e a honra.