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                                                                                                                      ​Foto: Neil Morrel

Por: Antonio Mata

O caminho não era novo, ali mesmo e ao derredor, já havia sido percorrido aos montes. Exigia novas trilhas, meandros, afastamentos e redobrada atenção. Se aproximava lentamente, meio assustado e silencioso. Olhava em torno, atento aos cheiros e aos filhos do lugar por mais que o conhecesse.

As mudanças, nos sons, no movimento, um cheiro diferente, mesmo cheiro de sangue. Um silêncio arrependido. Por menor que seja o sinal, nada pode ser desconsiderado.

As folhas mais tenras, os arbustos mais verdes, estão mais acessíveis nas proximidades do rio. Precisa se ajeitar, meio que às escondidas. Se é que se pode esconder um bicho tão grande. Só consegue assim ingerir uns 100 quilos de alimentos, principalmente folhas. O problema, e praticamente uma armadilha, era ter de fazer isso todos os dias. Encher a barriga e desaparecer era uma necessidade permanente em sua vida.

Aquelas plagas estavam ficando visitantes demais, frequentadas demais. O danado do gosto pelas folhas acabava lhe trazendo de volta, ainda que queria se afastar.

Acabava notando que não fazia aquilo sozinho. O que não deixa de ser uma espécie de disputa. Não propriamente e apenas por comida, mas por outra coisa que estava se tornando mais constante e cada vez mais urgente. Segurança, a necessidade e o sossego para se comer em paz.

Era tão urgente que modificava comportamentos. Quando chegou, um megatherium já estava agarrado com sua árvore favorita, e era a mais frondosa. Aquelas de folhas macias e em volume. Só não vale a pena confundida por causa disso, nem mexer com quem está quieto. Melhor achar outra.

Instintivamente, avançando para o lado oposto ao megatério. Algo como uns 500 ou 600 metros. Assim passa a ter o bicho grande entre ele próprio, e o lado onde os comedores de carne, com seus objetos perfurantes, costumavam aparecer. Mesmo sabendo que é por si só, não era garantia de muita coisa. Já tinha visto os comedores de carne cercarem animais por todos os lados. Porém sabia que era mais fácil aparecerem por aquelas bandas de lá.

Por mais que tivesse controlado a atenção, nunca desistiu do seu desejo íntimo de viver em paz, sem se medir com a vida de nenhum dos demais. Simplesmente não tinha interesse.

Vez por outra, aqui e ali, passou por restos de carcaças. Outro sinal requer cuidado e distância. Pedaços de carcaça, espalhadas e limpas até os ossos, indicavam disputas acirradas entre os comedores de carne. E isto era perturbador. Cada um queria o seu pedaço.

Os bandos de homens não costumavam deixar sobras pelo caminho, transportando tudo, até os ossos. Isto, se não fossem tolerantes pelo smilodon. Este sim, poderia reivindicar o seu pedaço, e acabar se servindo antes dos homens.

Saía levando seu melhor pedaço dali, e o que se encontrava depois era apenas resto, sobra de pedaços de ossos de uma caçada que não precisou fazer. Era mesmo o jeitão dele. Como um mamute não disputava carne com ninguém, ficava fora e longe da confusão dos comedores de carne.

Um perigo real e iminente, assim era o smilodon. Quando estava por perto, todo cuidado era pouco. Tinhoso, não se importava de investir contra animais grandes. Mesmo que não tivesse como comer tanta carne. Para ele não importava.

Um bicho de tocaia, ruim de se perceber. Era sorrateiro e muito rápido. Deixava no ar uma lamentável indagação a todos os comedores de folhas, “Quem vai lhe pegar primeiro, o smilodon ou os homens, sempre em busca de carne fresca”? Estava se sentindo profundamente só. Nada de paraíso na Terra. Viver mais um dia. Isto era tudo o que se tinha.

Chegava a acreditar que toda a sua manada já havia sido caçada.

Um pensamento lhe tomou de assalto. Quando não houver mais nenhum comedor de folhas e pasto, os homens vão caçar o smilodon, ou serão emboscados por ele? Quem vencer irá dominar tudo.

Tirou da cabeça aquele pensamento patético. Afinal, que diferença faria? Já estaria morto mesmo. Seria caçador contra caçador. Eles então que se entendessem.

Foi em questão de dias que encontrou o megatherium, ou o que sobrou dele, sentiuvel pela cabeça, ainda temporariamente intacta. Trabalho do smilodon. Gosta das partes mais macias. Isto enquanto outros carniceiros não apareciam.

Deu lógica, e algo quase inevitável. Há tempos que vagava sozinho por aquelas terras em busca de comida. A mandada de outras épocas simplesmente havia desaparecido. Até a última fêmea. Até o último filhote. Até onde podia enxergar e caminhar, não havia mais nenhum.

A mandada terminou seus dias caçada que foi pelos homens, comedores de carne. Quando o grupo foi ficando diminuto, foi ficando cada vez mais fácil ser emboscado pelos Smilodon, sempre em busca de carne fresca. Estes próprios, cada vez mais famintos. Cada vez mais disposto a atacar os próprios homens comedores de carne. O megatherium desapareceu. Já não via mais gliptodontes naquela região. Nem sua couraça gigante pôde salvá-lo.

Talvez tivesse apenas sorte. Uma sorte de um mastodonte solitário. Esta sorte passou. Foi embora no dia em que permitiu a beira do rio. Havia se fartado de água e voltava para a segurança mínima de suas árvores e arbustos.

Subitamente, senti uma dor extrema no dorso. Como uma forte picada. Ao buscar se locomover senti, mais uma vez, intensa dor. Fosse o que fosse, tinha sido fincado em seu corpo de cima para baixo. Isso debilitava seus movimentos.

Sentia o troço balançar, como um galho solto. Cada vez que sacudia era mais um abalo, o choque e a dor inevitável. Smilodons não fazem aquilo. Teria sido jogado no chão, no entanto estava de pé e ainda caminhava. Aquele pedaço de pau em suas costas só tinha uma explicação. Homens comedores de carne. Eles finalmente chegaram para lhe buscar.

Chamava instintivamente pelos demais, que já não o escutam. Grita o seu lamento de quem já sabe ser difícil escapar com a vida. Correr dali impossível. Apenas caminhe e torcer para que desistam.

Com dor ou sem ela, teria que se afastar dali, o mais rápido possível. Afastar-se sem a cobertura das árvores seria temerário demais. Prosseguiria na mata margeando o rio. Talvez conseguisse despistá-los. No fundo já sabia que tudo chegava ao fim. Só não queria se entregar sem luta.

Prosseguiu em sua fuga lenta e atordoada. De repente, o que de poderia pior ter caído. Um tombo. Pior, sentiu seu corpo avançar de repente, para em seguida tombar na direção de um fosso. Uma armadilha para um momento tão infeliz.

Uma sorte foi lançada. De dentro do fosso escavado tão bem, um mastodonte lanoso oferece seus últimos e desesperados urros. Um monte de cabeças humanas aparece para verificar se a armadilha cumpriu o seu papel.

Um dos homens mira na cabeça do animal e dispara sua lança. A cabeça do mastodonte é perfurada na altura do rosto. Invade sua cabeça e toca o cérebro do grande animal, tudo acabado.

Uma vez cientificados da morte do bicho de proporções enormes, saltam dentro do fosso. Começaram a retalha-lo. Todavia, são obrigados a se afastar, enquanto um asqueroso Smilodon parecia ter ficado apenas observando, curioso pelo que haveriam de retirar de dentro daquele buraco.

São obrigados a abandonar um grande pedaço para o Smilodon, enquanto recuavam levando outra parte do animal semi esquartejado. Metade ainda estava dentro do fosso e, por apetitoso que fosse, assim ficaria para sempre.

Nem os homens tiveram coragem de voltar para pegar o restante, não com o felino por perto. Nem o felino foi tolo o suficiente para querer descer no fosso e completar o banquete.

Pedaços de ossos fossilizados com sinais de perfuração, foram encontrados nas imediações do fosso. Indicavam que houve algum predador disputando a carne ou algo assim.

As marcas transversais encontradas, por vez, não deixaram dúvidas quanto aos propósitos e esforços no sentido de repartir a carne em pedaços menores, por parte de seres humanos.

Levaria algum tempo para que os paleontólogos reconstruíssem todo o cenário. A parte da carcaça, em um nível mais baixo em relação ao restante, porém, com marcas humanas, ajudaria a esclarecer o episódio distante.

Foi na borda da região, no atual estado do Acre, em terrenos recentes que, aos poucos, foram encontrados os restos do mastodonte fossilizado. Uma parte da cabeça ajudou a ajudar-lo e estimar sua idade, assim como quando viveu. Tinha em torno de doze anos e fora abatido entre dez mil e nove mil e quinhentos anos passados. O último mastodonte amazônico. E isto foi tudo.

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