Por: Antonio Mata
O arranjo, por rudimentar que fosse, teria dado conta dos propósitos. Senão, ao menos parecia ter servido para alguma coisa. Estava dependurada no interior da construção, reservada para os dias sagrados do lugar.
Foi-lhe útil e ajudou a pequena população a se manter coesa em sua ilha. Daí ter sido colocado na casa mais sagrada do lugar. Para que lembrassem do auxílio recebido.
Recebeu de seu pai e passaria para seu filho. Porém, pelas incongruências da vida, não se deu bem assim. Situação muito comum onde, por um simples capricho, as ideias se perdem.
Instalada em um canto, perguntava de si a razão que levara alguém a colocar aquilo, que lembrava uma cortina, um adorno. Aliás, mal pensado, pois não separava coisa alguma. Também, se fosse para adornar, deveria estar em outro lugar, mas não ali. Já que não era sequer bonito. As cores não combinavam.
Dispunha de umas poucas memórias, dos tempos da infância. Além de umas poucas falas que pudessem guiá-lo. De uma época quando era ainda criança. Tudo muito rarefeito pelo tempo.
Apoã, seu pai, dizia que recebera dos antepassados, desde muito tempo, e ele seria o próximo a recebê-lo, aprender a utilizar e a cuidar dele. Acreditava cuidar, já que não havia muito o que fazer. Estava sempre lá no mesmo lugar. Quanto a utilizar...
Voltou para fora se dirigindo à jusante da ilha. Olhou, olhou, olhou de novo. Retornou e prestou atenção ao conjunto de cordas estendidas e em seus nós, onde contas em cerâmica pintada demarcavam determinados pontos. Aqueles que pareciam não combinar. Só sabia que precisava sair dali e olhar para o rio. Qual a razão de fazê-lo, não entendia.
Tratou de deixar de lado as observações e foi cuidar de outros afazeres. Acreditava que seu pai provavelmente não tivera tempo para lhe passar o completo significado sagrado daquela espécie de cortina mal colocada. Falecera ainda jovem em uma caçada, onde ocorreu um encontro inesperado com um jacaré-açu.
A dificuldade surgiu, pois Mbai, com idade avançada, já havia deixado o grupo, retornando ao mundo dos ancestrais anos antes. Não compartilhara seu conhecimento com outro que não fosse seu filho. Isto, então, se mostrou perigoso. Mbai e Apoã já não estavam mais com eles. Assim, a aplicação, a forma de se saber da serventia daquela coisa, uma fila de cordas e nós, se perdeu.
O tal dispositivo foi posto de lado, a despeito dos sonhos oferecidos aos anciãos para que insistissem junto a Tauã, para que não abandonasse o conjunto de cordas e procurasse entender como funcionava. Tudo em vão.
Outros tempos, outras histórias e necessidades. Outros povos também. Gente diferente com hábitos diferentes. O jacaré-açu que atacou Apoã, fazia parte do cenário da vida. Havia chegado a hora de partir. Bem depois, tudo seria diferente.
De início veio a aguardente, oferecida como uma bebida, um presente. Logo após, também as doenças. Não demorou muito e o pouco que havia começou a desintegrar.
Tauã perdeu o interesse pela casa sagrada e acabou abandonando a ilha acompanhando o último punhado de retirantes. Já não pensava mais na sequência de cordas estendidas ou em seus nós coloridos. Deixou tudo para os antepassados.
A fragmentação acelerada dos povos nativos ensejou o fechamento dos livros das culturas orais. Sem ter quem faça este repasse, de uma geração para outra, o aprendizado se perde. Assim, os índios retornavam a uma condição mais primitiva. Bem diferente do que fora no passado.
Mbai, avô de Tauã, recebera um instrumento que há mais de 600 anos fazia medições. Os portugueses alcançaram a ilha no início do século XVII. Portanto, existiam medições desde o século XI. Com a morte da população, vitimada por doenças, a ilha acabou abandonada. Por não despertar interesse nem dos nativos, nem dos portugueses.
Toda a aldeia, assim como a casa sagrada se desmancharam, sendo coberta pela mata. O instrumento de medições se decompôs com a aldeia. O conhecimento adquirido por inspiração, se perdeu.
Aquele dispositivo, observado em diagonal, indicava gráficos com as épocas de cheias e secas intensas. Com uma pedra e uma corda com demarcações, era lançada em um ponto conhecido. Então, determinava-se a profundidade no ponto e assim, o nível do rio em determinada época.
A partir dali, passaram a registrar os extremos do rio. Dessa forma sabiam quando a próxima enchente seria muito grande e assim podiam se resguardar com alimentos secos, já que a ilha ficava inundada e o pescado desaparecia.
Posteriormente, passaram a preencher a ilha com mais terra, de modo a aumentar a superfície não alagada. Contudo, era preciso fazer periodicamente a reposição da terra.
Em uma região de chuvas intensas, a terra descia o rio. Criava rebaixamentos, sendo necessário fazer a reposição. O conhecimento dos ciclos do rio ajudava a estabelecer quando isto seria necessário de se fazer.
Os antepassados conheciam hidrologia e uma forma própria e incipiente de fazer medições e registros. Não seriam totalmente ágrafos. De uma forma sutil, sabiam fazer os registros da história da vida, na sucessão dos tempos. A sua vida diretamente ligada à vida do rio.