Foto: Petr Kratochvil, PublicDomainPictures.
Por: Antonio Mata
A jornada e o desengano de um povo. Causas implacáveis, destruidoras daquilo que existe em nome deste ou daquele grupo, exigem consequências implacáveis? Como apagar aquilo que se mostrou nocivo e perigoso?
Uma civilização, uma concepção de vida, poderia se expor a tal ponto? Poderia a guerra ser um instrumento de evolução? Sem a compreensão da realidade espiritual e sua articulação como mundo material, somente saberemos uma parte da história. Aquela que ficou nos livros.
Se a grande lavoura, principalmente de milho, feijão e algodão, falava da pujança daquele povo, os grandes reservatórios de água falavam dos cuidados com os caprichos do clima, muitas vezes tão inesperado quanto inclemente.
Dificuldades à parte, os 16 mil habitantes da cidade estavam bem alimentados, abrigados e vestidos. O exército local se reunia com as tropas de guerreiros das cidades próximas, afirmando assim a invencibilidade do império.
Eram os maiores, os mais capazes, portanto os melhores. Não escondiam isso de ninguém, pela forma arrogante como tratavam os vencidos e os povos submetidos ao pagamento de altas cotas de grãos. Tudo em nome dos deuses.
Os deuses, os orientadores de todas as ações. Aqueles que efetivamente mandavam. Talvez mais até que o próprio imperador. Este não dava um passo sem antes consultar o oráculo e fazer uma oferenda. Um sacrifício em honra aos deuses.
Poder, força, território, riqueza. Para atestar a grandeza de suas conquistas e inteligência, o palácio do imperador; os templos; os observatórios; os prédios da cidade de pedra; os silos repletos de grãos. Além de tudo, a submissão de todos.
Submissão ao imperador e aos deuses. Então a exigência de oferendas. Estranhamente sombrias, humanamente nefastas, contínuas e sanguinárias. Tudo isso falava da pujança e da grandeza do império. No cerne do império, o germe do seu fim.
O velho Pawy, outrora chamado, Olho de águia, amargava a perda de parte da visão. Os tempos das caçadas e dos combates, há muito haviam ficado para trás. Serviu sua gente com coragem e denodo na juventude, depois passando para a construção e manutenção das obras de preparação de grandes reservatórios.
Ações tão necessárias naquelas terras, cada vez mais secas. Lembrava das conversas daqueles que o antecederam e que falavam das grandes extensões de florestas da região.
Pawy observava tudo e buscava entender se não haveria uma ligação entre a diminuição das chuvas e a derrubada das matas da região. O aumento da população, a formação de novas cidades, a falta de poços artesianos e a diminuição das chuvas. Tais situações não existiam nos tempos antigos. Quando as florestas estavam no lugar.
Também era verdade que nos tempos antigos, os deuses não eram tão implacáveis. Não trazia consigo o relato das matanças, como aquelas que estavam acontecendo e se tornando tão comuns. Por que razão os deuses estariam interessados em destruir os demais? Então, o império só tinha inimigos?
Por que razão, com a matança crescendo, a tão esperada melhoria não acontecia? Estes pensamentos enchiam a cabeça do velho Pawy e gritavam em sua consciência.
Buscou Cara de Lobo, antigo companheiro de lutas, quando da expansão do império. Dos tempos da expansão ao noroeste, submetendo povos inteiros e anexando suas terras. Estes hoje pagam tributos sob a forma de grãos.
Expôs suas apreensões ao velho companheiro, que o ouvia com muita atenção. Ao final Cara de Lobo fez silêncio. Olhando para as matas, que agora somente surgiam pobremente e ao longe, o guerreiro de outros tempos lhe respondeu:
— Tudo o que fizemos foi para o bem do império. Nossas lutas, a anexação de terras, a captura de escravos. Tudo era feito para o crescimento do império. Parou por um instante.
— É bem verdade que agora existem dificuldades. Contudo, deveríamos culpar os deuses por isso?
— Não, não é assim que penso. Apenas acompanho as mudanças e me pergunto, quantos mais serão mortos, antes que isto acabe? Por que os deuses precisam tanto de sangue?
Agora foi a vez de Pawi pensar mais um pouco.
— Penso que matando tanta gente e destruindo tanta coisa, possa um dia trazer forças de oposição contra nós mesmos. Quando essa onda chegar o que iremos fazer? Querer matar a todos os inimigos, isto já está acontecendo.
E completou:
— Quando aqueles que nos odeiam forem os mais fortes, o que iremos fazer?
Cara de lobo espantou-se com as palavras de Pawi.
— Isto não irá acontecer! Antes que possam se levantar contra nós, estarão todos mortos! É isto que irá ocorrer Pawi. Não fraqueje agora no momento da dificuldade. Não esqueça de sua própria história. Você foi um dos melhores entre nós.
Ante ao ceticismo do amigo, Pawi tornou a falar:
— E por ter sido um dos melhores, Cara de Lobo, hoje me pergunto se fizemos a coisa mais certa. Ficamos velhos meu amigo, e nem assim o sangue parou de correr. Apenas fez aumentar por sobre tanta gente.
— Você está fraquejando Pawi.
— Se isto explicasse, ainda assim eu teria uma resposta. Apenas não é o suficiente. Basta que eu adormeça para ouvir os gritos dos vencidos.
Tornou a parar, refletindo sobre sua própria fala.
— São mulheres, crianças e velhos. Todos aqueles que nos cercam estão fadados à escravidão, à destruição e à morte. Afinal, o que é que nós estamos criando?
Cara de lobo, de face fechada, lhe advertiu:
— Tenha cuidado Pawi. Tenha cuidado, ou poderão esquecer do seu passado e lembrar que hoje, você é apenas mais um velho.
— Eu, esquecer? Mais um velho? Venha comigo Cara de Lobo.
O antigo guerreiro não se moveu.
— Vamos, venha comigo. Não vejo você perto do templo. Venha comigo que eu lhe mostro uma coisa.
Cara de Lobo seguiu o velho companheiro com os dois tomando o rumo do templo gigantesco que dominava a cidade.
Contornaram o prédio, se aproximando pela parte de trás, a menos exposta aos olhos dos curiosos, pois as celebrações se davam de frente para a antiga aldeia.
Ao se aproximarem, Pawi mostrou ao amigo a pilha de cadáveres sem sepultamento. Aquilo que lhe provocava as noites de indescritíveis tormentos.
Cara de Lobo não deu maior atenção.
— Não está compreendendo nada Pawi. O que foi que deu em você? Tudo isso faz parte. Os deuses precisam ser honrados.
Pawi desistiu daquele encontro e daquela conversa. Não iria dar em nada. Afinal, Cara de Lobo era um vencedor. Não estava disposto a abandonar sua glória em favor de um pouco mais de racionalidade. Muito menos era o único a aprovar a matança.
A vida seguiu no império sem maiores mudanças. Contudo, a falta de chuvas diminuía os estoques de grãos. A população se inquietava diante dos maus augúrios e das dificuldades impostas por uma governança que respondia às dificuldades oriundas do clima, sempre da mesma forma.
Com o imperador e sua nobreza subordinados a um grupo de feiticeiros, aqueles que de fato conduziam e tomavam as decisões, pareciam presos a um processo de autoflagelação anunciada. O grupo de críticos a esta morbidez agora só crescia.
Em dado momento, os guerreiros começaram a retornar para os limites do império e para sua capital, sem trazer o que mais apreciavam, prisioneiros. Não encontravam homens, mulheres ou crianças. Parecia que todos haviam partido.
O óbvio, aquilo que Pawi mais temia, começou a pairar sobre a população da capital. Na falta de vencidos, ofereceriam seus próprios homens, naturalmente os mais fracos, suas próprias mulheres e crianças.
Valendo-se da mentira, do misticismo e da ameaça de se defrontarem com seres demoníacos, começaram e reunir as novas vítimas para serem entregues aos deuses.
Estes teriam que se contentar com os mais fracos e com sua própria gente, já que não haviam mais guerreiros capturados. Já não havia mais inimigos. Não, entre os seres visíveis.
Foi nesta passagem da história que uma das autoridades do templo, encarregada de capturar sua própria gente para os sacrifícios. Um tal, apropriadamente chamado de Feio até no Escuro, fez uma proposta cínica, para uns, verdadeira para ele.
— Vamos aprisionar um velho guerreiro, um ancião acostumado ao combate. Será muito mais bem visto pelos deuses do que crianças e mulheres.
— Você pretende entregar um velhote? Vão rir de você. — Era Tzoal, caçoando da ideia questionável de Feio até no Escuro.
— Não se for um velhote respeitado, até pelos guerreiros mais experientes da capital.
— De quem você está falando?
— Ora, de quem mais? O velho Pawi.
Tzoal estranhou aquela ideia meio idiota, porém, já acostumado com as idiotices do seu líder, acabou não ligando muito.
— O que está esperando? Vamos buscar o velho. Até os guerreiros vão entender que sua força e coragem é obra dos deuses. Vamos logo!
Antes que chegassem à casa de Pawi, o assunto de sua prisão circulou mais depressa que o vento que antecede a tempestade. Quando Feio Até no Escuro lá chegou, acompanhado de Tzoal e mais dois homens, já encontrou a casa com meia dúzia de guerreiros à frente.
— Por ordem do chefe dos xamãs, venho buscar Pawi para ser levado ao templo, agora.
Boca torta, singularidade obtida em combate, do alto de seus quase dois metros de altura, segurando uma clava de mais de metro, inclinou-se sobre Feio até no Escuro.
— Ninguém toca em um guerreiro. Mesmo que seja um ancião.
— Tenho ordens do templo a cumprir!
— Ninguém toca em um guerreiro. Mesmo que seja um ancião.
Boca Torta retrucava e encarava o líder da guarda do templo. Este desistiu do seu intento e retornou para o lugar de onde veio.
Tzoal, zombando da mais recente idiotice de seu chefe, confessou-lhe baixinho, ao se afastarem.
— Da próxima vez, vou esperar você no templo. Se voltar na forma de picadinho, não vou nem estranhar, chefe.
Os rumores de revoltas em cidades próximas chegavam à capital, ainda que discretamente e submetidas a ameaças de morte a quem se atrevesse a falar sobre o assunto.
O império, outrora poderoso, começava a contar os seus últimos dias. As oferendas de sangue não aplacavam os deuses. Haviam se transformado em monstros bebedores de sangue humano.
A fome e a falta de água delatavam o bando de feiticeiros e expunham seus deuses desprovidos de piedade, bem o sabiam. Agora desprovidos de poder, ante um momento crítico da vida da população do império.
Nenhuma palavra de consolo, nenhuma profecia de alento, nada. Uma visão de mundo apoiada na morte e no misticismo estava prestes a ruir. O mundo onde Pawi crescera, estava por um fio.
Homens a serviço dos feiticeiros do templo, ao tentarem conduzir uma jovem para ser levada ao alto do templo piramidal, onde se realizaria um novo sacrifício, acostumados com a submissão de todos, enfrentaram um episódio que lhes era desconhecido. Foi quando se deu o basta, àquela situação.
Inesperadamente a apreensão da jovem recebeu a resistência de seus familiares e vizinhos próximos. Acabaram afugentados pelos habitantes do lugar. Gritando imprecações, afirmavam retornar para conduzir a todos os rebeldes.
Naquela mesma manhã retornaram acompanhados de três dezenas de homens armados. O que encontraram a seguir era igualmente desconhecido na capital. Guerreiros armados se postaram entre os enviados do templo e os populares logo atrás.
— Saiam da frente em nome do imperador! Saiam da gente se não quiserem enfrentar a ira dos deuses. Retirem-se daqui, se não quiserem ser os próximos a terem suas cabeças roladas do alto da pirâmide!
Brados mais angustiantes do que ferozes não ferem os ouvidos de quem está acostumado a lutar e enfrentar os inimigos de frente. Brados apoiados em mentiras são inúteis. Aqueles guerreiros já haviam compreendido o que estava se passando.
— Morte a esse bando de mentirosos! Vamos invadir o templo!
Atacaram a guarda do templo que se viu obrigada a fugir dali, não sem antes deixar vários dos seus integrantes pelo caminho, com as cabeças estouradas.
As estruturas construídas em pedra, não haviam sido projetadas para resistir a um ataque interno da forma como estavam presenciando. Ao punhado de guerreiros rebeldes, logo se uniram outros grupos. O império estava implodindo em seus alicerces.
Os feiticeiros correram para o alto da pirâmide, de onde rogavam suas últimas pragas contra a própria população lá embaixo, que apoiada pelos guerreiros, conduzia paus e pedras, subindo lentamente a extensa escadaria, concebida para levá-los a mais perto do céu, algo que nunca lhes aconteceu.
— Não se aproximem! Vocês serão arrebentados e vagarão por entre os mortos como verdadeiros zumbis! Vão se arrepender amargamente de seus atos, seus loucos!
— Não faz mal feiticeiro sanguinário. Peça ajuda aos seus deuses pois todos vocês, ainda hoje irão conosco. — Gritava de volta um dos guerreiros, enquanto a turba se aproximava do alto da pirâmide e no topo dela, da mesa sacrificial.
O ataque aos feiticeiros cercados e a seus últimos guardas foi mera consequência. Tiveram seus corações arrancados, como estabelecia seu cerimonial, a cabeça decepada e atirada do alto, escadaria abaixo.
A seguir alguém gritou: o imperador, o imperador! Vamos pegar o imperador, antes que ele fuja!
Dezenas de pessoas desceram as escadarias e se reuniram a outras centenas na correria rumo ao palácio imperial. Quando lá chegaram, a guarda imperial já havia debandado.
Adentraram os prédios do palácio em busca de seus ocupantes. O imperador, Cabeça Vazia que nem Cuia, nome em alusão à sua pouca necessidade de ter de pensar, sua família e sua nobreza. Todos fáceis de se reconhecer por conta de suas cabeças compridas. A marca registrada da nobreza, transformou-se na marca registrada dos que deveriam ser caçados ali mesmo e onde quer que estivessem.
O hábito de enfaixar a cabeça das crianças, ainda em tenra idade, identificava estes indivíduos na estratificação social. Ocupavam o topo da sociedade por direito de nascimento. Isto já não fazia mais nenhum sentido diante da turba enlouquecida.
Foram encontrados todos reunidos no fundo de um dos prédios. Postos para fora pela força das armas, foram assassinados de forma inclemente, um a um.
Os homens da família do imperador foram reunidos e conduzidos ao templo, incluindo aí, o próprio imperador Cabeça Vazia que nem Cuia, o primeiro a ser executado e ter sua cabeça, mais vazia do que nunca, atirada nos degraus da pirâmide.
Os xamãs que pensavam pelo imperador estavam todos mortos, assim como seus guardas. Sua nobreza foi dizimada e finalmente ele próprio. O fim foi rápido. Em menos de vinte e quatro horas tudo havia se acabado.
Assaltaram os estoques do palácio recolhendo a comida que ainda havia, já que tanto os nobres como os feiticeiros e seus guardas não precisavam passar fome. Tzoal não foi poupado e morreu em meio à confusão que se estabeleceu, em um lugar onde, no final das contas, com cabeça comprida ou não, desde criança, todo mundo conhecia todo mundo.
Quando a confusão abrandou deram-se conta de que não havia nenhuma liderança. Nenhum guerreiro havia assumido o comando de uma insurreição. A coisa toda simplesmente aconteceu, sob a sombra do medo e do desespero.
Foi Boca Torta quem lembrou de mandar chamar por Pawy e saber se no meio da confusão, ainda estaria vivo. Foi encontrado tranquilamente em sua casa, enquanto, entre gritos desesperados e muito sangue o império se desfazia em pó. Provando ao próprio Pawy a efemeridade dos poderes humanos e do erro de se servir a um deus de matança.
Um grupo de líderes guerreiros apresentou-se a Pawy, pelo visto o único homem sensato do lugar. O único, pelo visto, a não ter a cabeça vazia como uma cuia. Queriam alguma orientação quanto ao que fazer. O império estava condenado às ruínas e sem nenhuma autoridade existente.
Pawy ouviu os queixumes dos guerreiros e de sua gente. Afastou-se até um canto por um momento. Diante dele podia ver um de seus filhos, sua mulher e mais quatro familiares. Todos o saudaram gentilmente, viraram de costas e se dirigiram à parede de pedra, por onde desapareceram.
Pawy entendeu o gesto dos seus entes ali reunidos em espírito.
— Juntem o que puderem carregar. A comida e água que houver. Vamos embora daqui.
— Assim será feito Pawy. Reúnam o povo, vamos todos embora!
Naquele mesmo dia deixaram a capital do império. Um cortejo triste, mal alimentado e com pouca água. De antemão, Pawy sabia que muitos talvez não suportassem. Velho e abatido, talvez nem ele próprio. Só queria conduzir sua gente. Mostrar o caminho enquanto suas forças assim o permitissem.
Levou-os margeando a terra seca e o mar oceano, pela linha do litoral. Primeiro para oeste, depois para o norte, observando a foz de rios secos pelo caminho, em busca de água potável. Somente a encontrariam meses depois, já fora da península árida. Um terço de seus seguidores pereceram na jornada. De fome, sede e doenças. Entre eles o líder Pawy.
Em seu próprio conflito, pois fora um dos sustentadores do império da maldade pela maldade, Pawy encontrou sua redenção ao arrepender-se do erro brutal ao qual se expôs, sem o perceber. Na história dos homens, isto viria a acontecer mais vezes, ao longo dos séculos vindouros, relembrando as dúvidas e apreensões de Pawy. Afinal, a quem tu serves?