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terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

Iolanda

                                                          Foto: Wikimedia Commons 

Por: Antonio Mata 

 

A correria era para ver quem chegava primeiro na estação. Júlio, mais velho e com as pernas longas, sempre levava vantagem. E não havia lambuja. Se gabava de chegar na frente toda as vezes. O segundo colocado, costumeiramente, era Olavo, com Marinês em terceiro, e Iolanda, impreterivelmente em último, a mais nova e a mais lenta dos quatro irmãos.

— A Maria Fumaça tá chegando, tá chegando! Gritava Iolanda, com a voz aguda, do alto dos seus dez anos, enquanto descia a rua na direção da estação.

— Tá bom Iolanda, ela toca apito pra todo mundo. Né só pra você não. Todo mundo já ouviu, até o papai. Agora ele já sabe que a gente tá qui. Marinês, só para variar, estava aborrecida com a irmã desatenta.

O olhar fulminante dos demais irmãos não deixava dúvidas de que Iolanda havia delatado a todos. Era tudo muito simples, a chegada da locomotiva, vinda de Três Rios, ansiosamente esperada, com  lumaréu, fumaceira, os sons e os movimentos, que por si só, já formavam um espetáculo à parte. Ainda mais para quem estivesse nos seus anos de infância.

Era irresistível, não havia como deixar passar aquela cena. Avançava fumegante sobre os trilhos, o gigante de ferro e aço, pintado principalmente de preto.

O aparente mal gosto, tinha mais a ver com razões de produção e manutenção, do que propriamente com razões de estética. As rodas enormes seguiam pesadamente, até o gigante parar na estação, envolta em vapor, fumaça e fuligem.

Empurrados pela curiosidade queriam assistir toda a movimentação junto ao trem, até o momento da partida. Tudo sem prestar atenção ao perigo.

A estação de Porto Novo por pouco não entrava em festa. E não era só na estação. Quem não tinha autorização para ficar na plataforma da estação, onde não cabia todo mundo, ficava nos arredores, assistindo.

Um grupo de felizardos iria realmente viajar. Estes sim, em breve estariam desfrutando de seu breve status de passageiros, bem uns dez. Isto para cada centena de apreciadores, que nunca poriam os pés dentro de uma “Balduína”, o outro nome da Maria fumaça.

As mulheres em seus melhores vestidos e os homens dentro daqueles ternos brancos, tudo muito bem engomado. Só não rimava com a fuligem do lugar, que sujava tudo. Eram os sacrifícios da moda.

Pessoas; mercadorias; miudezas; o malote dos correios e telégrafos; histórias; fofocas; as novidades das demais cidades. A Maria Fumaça era tudo de bom, pois fazia o contato com a capital, a partir de Honório Gurgel, Paraíba do Sul, Três Rios, até Porto Novo do Cunha. Era o cordão umbilical do lugar.

Júlio tinha de pensar rápido, se quisesse realmente desarmar a bomba criada pela irmã, ainda a pouco. E era bom que desse certo, de tal forma que pudesse depois, alegar que teriam ficado apenas próximos da estação esperando a locomotiva passar. Quando ela finalmente chegou, então foram todos embora.

O velho Agenor não gostava de ver os filhos no meio da bagunça que faziam na estação. Achava perigoso demais, e achava confiança demais para aquele bando de moleques. Estava na plataforma a serviço.

Era carregador, esperando para retirar a mercadoria dos vagões de carga. Um bico que havia conseguido na cidade nos dias de movimento do trem.

Na realidade era lavrador, sua principal ocupação. Isto no melhor estilo de 1937. Mãos cheias de calos, analfabeto e pés descalços, mascando fumo e cuspindo no chão. Um caipira de poucos amigos, pouca conversa e um monte de filhos. Aqueles ali, era só uma parte. Havia mais quatro em casa, todos menores.

Enésia, era a outra parte responsável por aquela prole. Neta de portugueses pobres, que chegaram por aqui, ainda ao tempo do império, era tão analfabeta quanto Agenor, um novato que havia conhecido quando começou a trabalhar nas fazendas da região.

A lavoura era também o ofício comum dos dois, e de incontáveis mineiros com perfis muito próximos.

Na estação, Júlio já arquitetara o seu plano, e dava ciência aos demais irmãos.

— Todo mundo vai ter que fazer tudo junto, se não quiser tomar lambada de cipó. Quando papai se aproximar da entrada da estação procurando a gente, todo mundo corre para o lado da estação, e aguarda.— Todos entendiam a preocupação do Júlio, já que qualquer coisa, qualquer deslize era motivo para uma surra. E prosseguiu.

— Então vou ver se ele voltou e entrou na estação, se ele não entrou, a gente sobe na estação pelo lado e espera. Quando ele aparecer retornando, volta todo mundo pelo mesmo lugar. Ele então vai ficar ocupado descarregando o trem.

— Ai Júlio, isso vai dar certo? Perguntava Marinês preocupada.

— Se não der certo Marinês, você já sabe o que vai acontecer.

Certo ou errado, o fato é que o plano funcionou, e puderam ficar assistindo a chegada, a parada, a descida dos passageiros, a descarga, e o embarque daqueles dez que iriam viajar.

Ao final, com a partida da locomotiva, que consideravam o último espetáculo, deixaram o local, ganhando o caminho de volta para casa. Estavam extasiados e satisfeitos, afinal era o grande evento da cidade, e haviam participado de tudo, menos pôr os pés lá dentro. E o mais importante, é que tinha dado tudo certo. Na realidade, foi quase tudo.

Próximo à plataforma, do lado oposto de onde as crianças estavam, Agenor e outros dois braçais, descarregavam as mercadorias do dia. Caixotes diversos, além de sacos de trigo e arroz, eram empilhados em carroças para serem conduzidos ao armazém local.

Zé Raimundo, um mulato que trabalhava na descarga, não por maldade, mas por simples mexerico, comentava com Agenor.

— Você é que é feliz Agenor, trouxe inté a filharada pra assistir o trem chegar. Eu queria trazer os meus mais velhos, mas aí Maria não deixa. Era só pra fazer um agrado para os meninos.

— Eu trouxe inté o quê? Indagou Agenor, colocando o saco de trigo em cima da carroça.

— Tuas crianças Agenor. Não estavam apreciando o trem, ali do outro lado da estação?

— Eram quantos Zé? Indagou novamente Agenor, com cara de quem vira bicho por qualquer bobagem.

— Uai, quatro. Não são quatro, os teus mais velhos?

Zé não ouviu nenhuma resposta, só via Agenor descarregando o trem, até concluir o serviço. Foram avisados para pegar o pagamento pelo serviço executado somente na manhã seguinte, então seguiram para suas casas.

 

O Acidente

Na casa todos os filhos maiores trabalhavam. Aprende-se cedo, lá pelos nove anos. Os meninos costumeiramente observavam o pai, enquanto as meninas acompanhavam as lições da mãe, até o momento em que passavam a cumprir suas obrigações com maior autonomia.

Tão provocado quanto inesperado, como um acidente gosta de ser, este então, não foi diferente. A pequena Iolanda, por mero gosto de sua mãe, exibia seus cabelos longos e negros. Nos afazeres de cozinha também. É por isso que todo acidente, possui antecedentes.

Chegara o dia da menina cuidar da cozinha e do grande fogão de lenha. Como de costume, a primeira tarefa da manhã era preparar o café. Para tal, colocou a lenha para queimar, e a panela de ferro fundido, com água para ferver, a ser transferida  da panela para o bule. Ao se virar com a água fervente nas mãos, seus cabelos tocaram no fogo.

A labareda subiu rapidamente. Iolanda gritava, procurando se desfazer da água fervente para se ater aos cabelos em chamas. Se desfez rápido da panela, mas não sabia o que fazer com as chamas, por isso corria dando tapas nos cabelos, no afã de apagar o fogo.

Foi Olavo quem primeiro se aproximou tendo nas mãos um cobertor, envolvendo a cabeça de Iolanda, e extinguindo as chamas. O fogo não chegou a atingir o couro cabeludo, mas os ombros, pescoço e parte das costas ficaram feridas.

Enésia tão logo se inteirou do ocorrido, foi rapidamente providenciar ervas para macerar e fazer um unguento para queimadura.

Agenor, ao observar o estado da filha, assumiu sua postura habitual diante dos fatos, diante da vida, e dos filhos.

— Vai tratar de prestar atenção no serviço Iolanda. Essa gritaria toda, só para fazer um bule de café. E prosseguiu.

— Nunca viu um fogão? Nunca viu lenha na sua frente? Devia de tomar uma coça, pra aprendê prestá mais atenção nas coisa.

— Foi um acidente pai, o fogo chegou no cabelo dela. Dizia Olavo, procurando esclarecer as coisas.

— Você cala tua boca Olavo, que quando for pra você falar eu pergunto. E eu ainda não te perguntei nada.

— Para com isso Agenor, a menina é muito pequena ainda. Você não presta atenção não? Ela ainda tá aprendendo. Dizia Enésia em defesa da filha.

— Vem filha, vem colocar um unguento nessa queimadura.

— Pois é bom tratar de aprender rápido. Vociferou ainda, Agenor.

De horizontes curtos e limitações evidentes, Agenor parecia inspirado por um animal de parelhas. Só era capaz de enxergar o que estivesse diante dos olhos. Assim suas opiniões eram curtas, grosseiras e definitivas. Tal e qual seus horizontes. Se algo estava errado, era porque não se fez certo. Se algo estava certo, não se fez mais que a obrigação.

 

O Castigo

Quando chegou, vindo do serviço de descarregamento realizado na pequena estação ferroviária, o suor já havia secado no corpo. Fato este normal, mas que não foi o suficiente para secar as ideias que tinha em mente.

Agenor encontrou todos os oito filhos em casa. Calmamente, como quem premedita as ações, mandou Enésia chamar os quatro mais velhos.

Com os quatro enfileirados em sua frente, e ele sentado em um banco de madeira na frente de casa, com uma voz pastosa perguntou a todos:

— Onde vocês estavam, hoje pela manhã? Pensei ter escutado a voz da Iolanda.

Ninguém se atreveu a responder, até porque já haviam combinado a fala de Júlio. Então foi Júlio que se manifestou, dizendo a seu pai.

— Nós fomos até a beira da estrada para ver a chegada do trem pai. Quando o trem parou na estação, voltamos para casa.

— E como foi que eu ouvia a Elza?

— É que ela grita muito alto, fica contente com o apito do trem.

— Ah, agora entendi. Ainda bem que você contou tudo, não é Júlio?

Com um meio sorriso amarelo, Júlio concordou. Tanto melhor, parecia estar indo tudo bem. Só que Agenor mostrou que não era bem assim como Júlio pensava.

— Júlio, o Zé Raimundo viu vocês quatro junto da estação, no meio daquele monte de gente.

Agora não daria mais para mentir. Quanto mais histórias inventasse, pior seria o resultado final. O garoto desistiu e assumiu sua culpa.

— A gente ficou na estação sim pai, mas foi só para ver o trem chegar e descarregar, quando todo mundo saiu, a gente saiu também. Foi só isso.

Agenor olhava para o garoto com sua cara de mal humor, e depois encarava os demais. Um tipo de bicho havia se apossado de Agenor. Era tudo o que as crianças mais temiam.

Com calma, sem nenhuma pressa, levantou-se e foi lentamente até dentro de casa, onde demorou-se por alguns instantes. As crianças não se atreviam a sair do lugar.

Pegou do prego na parede, e retornou ao local trazendo uma tala de couro cru, endurecida com o tempo, presa a um cabo de madeira. Já estavam em casa, o cipó já não seria mais necessário.

O corretivo iria começar em breve.

— Põe as duas mão na parede vocês tudo.

A aflição tomou conta de Júlio, Olavo, Marinês e da pequena Iolanda.

Aquela tala de couro cru iria estalar na bunda e nas pernas de todo mundo. Foram quarenta lambadas regiamente distribuídas, até completar dez para cada um.

— Coitadinhas das crianças Agenor, já chega! Não vê o que está fazendo não? Dizia Enésia, em defesa de seus filhos.

Não via, não falava, não pensava, nem sentia. Agenor era fiel às práticas do seu tempo. Autoridade imposta pela força e pelo temor, falsamente concebida como respeito. Na realidade era cínico e sádico, ainda que não fizesse a menor ideia de que diabo isso significasse. Muita gente ainda age assim..., pensa.

Dirigiu-se mais uma vez para dentro de casa, no seu passo cadenciado de costume, como quem cumpre o seu ritual, o seu protocolo. Retornou com pequeno saco contendo sal. Ninguém se atrevia a sair do lugar. Imune aos gritos de Enésia, atirou sal no corpos de seus filhos, segundo ele, para lembrar.

O choro das crianças castigadas, se misturava com o de Enésia e dos outros quatro mais novos. Agenor estava mais uma vez  satisfeito, havia mostrado, do mais velho ao mais novo, quem é que mandava.

Quando se afastou, Enésia correu e tratou de lavar o sal no corpo das crianças, passando em seguida, um unguento à base de ervas, maceradas às pressas para aplicar nos ferimentos dos quatro, dessa vez um cicatrizante, e outro para aliviar a dor. Todos aguardavam em silêncio.

 

O Roçado

No dia seguinte Agenor esperava a mulher e os quatro mais velhos na roça. Era o tempo da meia, um acordo oferecido ao fazendeiro, dono da propriedade, que recebia pelo uso da terra metade do produto da lavoura.

Era preciso ter mais braços para trabalhar na roça, se quisesse obter alguma coisa mais satisfatória naquele acordo, uma vez que todos os custos ficavam com Agenor e sua família.

Milho e mandioca faziam a maior parte do cultivo. Trabalhando juntos, era o mesmo que ter quatro adultos no roçado, pensava Agenor. O trabalho era rude e pesado, mas, dessa forma teria uma chance melhor de obter mais alguns réis em cada colheita.

Era uma espécie de prisão e uma forma errada de se pensar, se considerar as limitações de Agenor, mas não era a única. Os ventos da mudança teimavam em soprar, mesmo em Porto Novo do Cunha. Acabaria levando muita gente com ele.

Ainda assim, dava tempo para a família produzir o seu próprio folclore. Júlio era comprido e magrelo, o que lhe deixava com um aspecto desajeitado.

Certa vez, Agenor atento à magreza do filho, lhe expôs uma solução, ou melhor, uma simpatia. Sugeriu ao filho que toda vez, após o seu almoço, ao invés da caneca habitual, utilizasse o prato para pôr água, e beber a água dessa forma, diretamente no prato que acabara de usar.

Verdade, mentira, crendice, ou mera fanfarronice de Agenor, o fato é que em pouco tempo o garoto engordou e tomou corpo. Também é bem verdade que a fome, depois de passar o dia no cabo da enxada, ajudou bastante.

Assim era a vida da pequena Iolanda e de seus irmãos. De sol a sol, revezando-se entre o roçado, a vida de se plantar e de se colher, e a escola sempre às escondidas, para não desagradar o velho Agenor.

É que Enésia, preocupada com a sorte dos filhos, naquela vida sem horizontes, mandava que os mais velhos escondessem as bolsas da escola nos fundos do roçado, por detrás do milharal. Tão logo Agenor se afastasse, liberava os quatro para irem para a escola, enquanto ela mesma permanecia trabalhando no campo.

Quando de retorno, teriam que deixar as coisas da escola no mesmo lugar, para poderem levar no dia seguinte. Ler uma cartilha em casa, ou fazer uma pequena tarefa ou exercício, nem pensar. Motivaria um monte explicações a dar, a preocupação em não delatar a própria mãe, além de surra na certa. A verdade é que aquilo durou o que tinha para durar.

Talvez Anésia acreditasse que já tinha gente burra demais dentro de casa. Na verdade, é que foi dessa forma precária, uma verdadeira afronta aos olhos de Agenor, e que por pouco não apanhou junto com os filhos, que Anésia pôde oferecer pelo menos um ou dois anos de escola para cada um de seus filhos.

O tempo avançava com cada um dos pequenos, chegando a sua vez de assumir o seu lugar no cabo da enxada, tão logo pudessem segurar uma. A vez de Iolanda já havia chegado a algum tempo.

Aos doze anos de Iolanda, Anésia preferiu que a filha se tornasse serviçal, em uma casa de família na cidade. Em um lugar onde o dinheiro é pouco e quase não circula, por pouco que fosse, era uma forma de se obter algum dinheiro.

Não foi uma nem duas vezes em que Elza trabalhou basicamente por comida, não que passasse fome, é que não queriam lhe pagar em dinheiro. Isso, até encontrar alguém que de fato lhe oferecesse algumas moedas.

 

Novos Tempos

Aquilo que um dia ficaria conhecido como êxodo rural, já havia começado, e alcançou as terras de Porto Novo. Júlio e Olavo se meteram em um trem, que nem era Maria fumaça.

As velhas locomotivas a vapor, já não seguiam mais para a capital. Pela primeira vez em suas vidas estavam a bordo, e seguiam para o Rio de Janeiro.

A cidade, a capital, era um lugar para onde, de repente, todo mundo queria ir. Foi um amigo de Júlio que voltara a Porto Novo contando que precisavam muito de serventes; pintores; pedreiros; faxineiros e carregadores. A história correu mais que cobra cega em festa de São João. João dos cabritos, o amigo de Júlio, foi quem pagou as passagens dele e do irmão, com a promessa de reposição.

O mundo havia entrado em processo de urbanização, logo Iolanda, aos 16 anos faria o mesmo, seguindo os passos de Marinês. Todos queriam ir para as grandes cidades, para a promessa de superação da vida de misérias, e o sonho de algo melhor para animar seus dias.

Interessante, e muito, é que ninguém guardou rancor de Agenor. Apenas entendiam que a hora de partir havia chegado. E foi assim que, finalmente Anésia foi para o Rio de Janeiro, a pedido de Iolanda e Marinês. Não guardavam rancor do pai, mas também não queriam que continuasse vivendo em Porto Novo, e com Agenor. Na realidade, ela mesma já não queria mais. Os dois filhos mais novos restantes foram com ela.

Cinco anos depois, veio a notícia do falecimento do velho Agenor. Iolanda retornou a Minas Gerais no intuito de assistir a seu sepultamento. Quando chegou, na companhia de duas de suas irmãs, isto já havia acontecido.

Junto de sua sepultura, todas oraram pelo velho. Já no dia seguinte, sem mais o que fazer, todas retornaram para o Rio de Janeiro.

Foi ainda no Rio de Janeiro que Iolanda, mais uma vez trabalhando como empregada doméstica, conheceu um certo pernambucano, o porteiro do prédio onde trabalhava, que a pediu em casamento. Com o casamento vieram os cinco filhos e o conforto relativo da vida urbana.

Iolanda retomou as lições de escola, a partir das cartilhas de seus filhos. Foi quando surgiu um programa de tv, conduzido por uma atriz chamada Bibi Ferreira. Ela, na companhia de uma sombra conhecida como “mão amiga”, ensinava as primeiras letras, e a formar palavras e frases simples.

Acompanhava estas aulas, sempre às tardes, com bastante frequência. Foi assim que realmente pôde se dedicar, e se livrou de mais uma das sombras de seu pai, e de Porto Novo do Cunha, o analfabetismo.

Muita coisa aconteceu, enquanto todos adotavam aquela forma urbana de se viver. Para uns foi bom e importante, para outros nem tanto. A história das favelas, desabamentos, enchentes e do subemprego, nos falam sobre isso. Ainda antes do banditismo, narcotráfico e milícias assumirem o seu papel  naquilo que o futuro traria.

A cidade que Iolanda conheceu e lhe encheu os olhos um dia, hoje já não existe mais.

De todo modo, no fundo da alma de incontáveis mulheres, pode  muito bem, ainda existir uma garotinha morena de cabelos esvoaçantes, vestido de algodão e os pezinhos descalços no chão. Ela corre pela rua abaixo sacudindo os braços finos e gritando pela Maria fumaça, a mesma que continua fumegante na lucidez de sua memória.

Todos já se foram, inclusive seu marido pernambucano. Centenária, é assim que a chamam. É só uma espécie de classificação. Não incorre em respeito ou  algo parecido.

Já era noite, e bem tarde. Repetira a mesma história várias vezes. Nos anos anteriores também. Ela se levanta lentamente, se apoia no andador e se dirige até o quarto, enquanto lhe acompanho. Então, se detém por um instante.

— Boa noite, meu filho.

— Boa noite, minha mãe.

                                                                     FIM

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