Foto: Wikimedia Commons.
Por: Antonio da Mata
O pilau, arroz congolês refogado com legumes e molho de gengibre, já estava fumegando no caldeirão enegrecido de fuligem no canto do mocambo.
A habitação, à base de paus e bambus, preenchida com pelotas de barro, com cobertura de duas águas, feita com folhas de palmeiras. Era prática e eficiente, nas manhãs quentes e nas noites frias.
Lembrava desenho de criança. Mais do que isso, ganhou vastas extensões das Américas na rota dos escravizados que se foram. Moradia dos escravizados que ficaram. Casinha singela de tanta gente, de tantos milênios.
O aglomerado crescia com frequência, ante o aumento do número de famílias. Quando se fazia grande demais, um grupo se destacava e seguia além, criando novo aldeamento. Levavam seus bois e cabras, o dinheiro vivo. O valor nas eventuais trocas comerciais e na aquisição de outros víveres.
Quando houve um destes deslocamentos, minha família foi junto para fixar o aldeamento, próximo do rio, mas não demais. Para não receber a visita de crocodilos em busca de bezerros, cabras e até mesmo de crianças. O que aparecesse primeiro.
Todos comiam a refeição quente, enquanto isso, o sol já despontava ao longe. Logo os afazeres da aldeia se encheriam de vida, movimentos e sons recebendo seus personagens.
As histórias sobre animais e crianças abocanhadas por crocodilos eram relativamente comuns. Não aconteciam todo dia, mas não deixavam de acontecer, quando um e outro mais desavisado acabava levando uma carreira.
Como as criações ficavam afastadas da beira do rio, perder animais dessa forma era mais difícil. A menos que houvessem fugido e fossem perambular na beira do rio. O gado ficava afastado, as cabras e bodes ficavam em cercados.
Já as meninas, quando chegava o tempo de passarem a trabalhar, tinham o compromisso de trazer água do poço, enchendo os vasos de cerâmica e ajudando suas mães. Isto era bem mais seguro e próximo do que pegar água no rio. Nem por isso se dispensava a atenção com a movimentação ao redor.
Um crocodilo faminto que não conseguiu suas presas no rio ou na beira do rio, poderia vaguear pelas redondezas, como quem se aventura. Seu primeiro ataque, emergindo das sombras dos arbustos, era sempre rápido e traiçoeiro. Depois, pegando a presa ou não, teria que se refugiar nas águas mais uma vez.
As mulheres começavam o trabalho primeiro, na preparação do alimento. Contudo, eram os caçadores que, em uma rotina diferente, saíam de madrugada e às vezes passavam vários dias fora da aldeia. Isso, até poderem retornar com a maior presa de valor, o elefante. Para oferecer bastante carne e marfim, sem ter que abater o gado. Como os animais de rebanho possuíam valor de troca, precisavam ser preservados.
Com estes comprava-se até uma esposa. Algo que podia ser negociado oferecendo-se em torno de 20 cabeças de gado ao pai da noiva. Caso se quisesse uma segunda esposa, já se sabia o que fazer. A restrição estava apenas em se adquirir uma de cada vez. Ainda que o noivo mais afoito tivesse 40 bois.
A carne de caça, que incluía o elefante, não possuía esse charme, irresistível às famílias detentoras de filhas solteiras. Por vez, o grande atrativo para se abater um elefante, era o marfim. É que este era muito procurado para o comércio, as trocas para se obter o valiosíssimo do sal.
As placas de sal, chegando a pesar 90 quilos, vinham de longe. O sal-gema, de cor cinza creme, era produto valioso, pois não se encontrava no Congo.
As mulheres o utilizavam com parcimônia na preparação de alimentos. As pedras de sal eram pacientemente piladas, até se transformar em um pó homogêneo. A aquisição do sal era demorada e meio incerta, pois valia seu peso em ouro, por conta da falta e do aumento do consumo.
É tão interessante quanto bizarro, pois todos queriam sal. Assim o preço estabilizava nas alturas. Enquanto fosse possível, salgava-se a carne de elefante. Quando se obtinha muito marfim para comerciar, a carne tomava o caminho inverso e perdia valor. Comia-se, salgava-se carne e ainda assim sobrava carne.
Os mercadores caravaneiros queriam ouro em pó. Porém, o que existia de mais valioso para se trocar era o marfim. Daí a valoração dos caçadores para além da simples busca por carne. Que de simples não tinha nada, pois evitava abater o gado. Caçar elefantes era algo de muito significado, além de dignificar a coragem dos caçadores.
Por que se queria tanto o marfim? Para se trocar e estocar sal. Tirar o sal do consumo e deixá-lo guardado. O marfim, quando estocado, poderia amarelar, reduzindo seu valor. O sal não.
Assim, aí estão três coisas que se aprendia desde criança. Evitar acabar com o sal antes da hora; encontrar e reservar o marfim para negociar por sal, e evitar abater o gado para comer. O sal, o marfim e o gado eram produtos de grande valor. Cada qual na sua necessidade, no seu mérito e na sua escala.
Havia ainda os trabalhadores da lavoura; os tecelões e os pastores. Um ofício que chamava a tenção dos jovens era o trabalho com ferro. O ferreiro aquecendo a pequena fornalha, preparando pequenas quantidades de minério de cada vez. Para a produção de ferramentas e utensílios diversos. Além de pontas de lanças e outras armas de corte e arremesso.
Dos afazeres, ainda na madrugada, do amanhecer sempre belo, até o anoitecer, este era o mundo de Kambami. Filho de Leke, neto de Yellen. O mundo de seus avós, de seus pais e de todos os seus antepassados. Uma vida rica de realizações. Kambami, curioso e desejoso de conhecer mais, aos 12 anos acompanhava seu pai nas tarefas masculinas. Logo, só mais três anos, e já poderia acompanhar os caçadores.
Ofício exigente esse da caça. O conhecimento dos rastros, na terra; nos galhos partidos; no corpo esfregado nos troncos e nos paus; nas fezes; nas cores e nos hábitos dos animais; nos sons e até no silêncio. Tudo tinha significado.
Kambami não via a hora de se embrenhar nas savanas e nas matas e ser um caçador. Sabia que não era só isso. Os caçadores eram queridos e respeitados. Inspiravam admiração e respeito.
Todavia, o mundo de Kambami não se restringia a conhecer os segredos da caça e o comércio do sal com as caravanas distantes, ou os afazeres de todos os dias na aldeia. Algo fazia parte da realidade de uma forma mais perigosa e assustadora. Bem mais que os animais da região.
De forma ardilosa e cruel se abatia sobre as aldeias, liquidando rapidamente o mundo existente, impondo à força e a ferro, uma forma de viver degradante e infame.
Não sem propósito, as aldeias eram cercadas por paliçadas e às vezes por muros. Outros ainda adotavam uma espécie de casa castelo. Tudo para se obter proteção e um mínimo de segurança contra os caçadores e mercadores de escravos. Era neste momento que os Basenji, um tipo de cão selvagem, mostravam o seu valor dando o alerta, rosnando e uivando corajosamente.
Os aldeamentos, aqueles desprovidos da presença dos cães, e protegidos por paliçadas muito frágeis, eram os preferidos pelos mercadores de escravos.
Faziam a tocaia até próximo do alvorecer. Esperavam a saída e afastamento dos caçadores, quando então saltavam as paliçadas e invadiam o terreiro.
A escravidão chegava para aqueles infelizes. A paliçada já não mais protegia, mas os retinha, tal e qual animais encurralados. Capturados e postos em correntes eram conduzidos em uma viagem longa, extenuante e muitas vezes mortal.
Uns poucos fugitivos dessas caravanas de tráfico humano, de fato conseguiam escapar. A maioria, exaustos e famintos, era recapturada, quando não eram mortos pelas feras do caminho. Os poucos e raros que conseguiam retornar, falavam do pavor e da selvageria do tratamento que recebiam.
Um deles foi Azekel, tio de Kambami, irmão mais novo de Leke. Já haviam alcançado os limites, onde começa o grande deserto e estavam prestes a serem repassados para os mercadores escravistas berberes, conhecedores dos caminhos mais além onde seriam revendidos.
Azekel tinha escapado durante a noite, enquanto a sentinela dormia. Forçou as mãos por entre os grilhões, até os pulsos sangrarem. Logrou soltar-se e esgueirou-se pelas sombras como um lagarto, até poder se afastar. Três homens armados foram enviados em seu encalço.
Um homem jovem e forte valia muito sal nas trocas com os berberes, e os mercadores do sul sabiam disso. Sabia que fariam de tudo para capturá-lo vivo. Podia ser um risco, porém um ponto a favor do fugitivo.
Na fuga recolheu um espinho de cacto de uns sete ou oito centímetros. Era tudo o que dispunha como arma. Caminhou pesarosamente, até encontrar uma área coberta por arbustos elevados. Ainda era noite, mal se percebendo os vultos.
Aquietou-se e abaixado, viu seus perseguidores passando. Lentamente se aproximou do último, lhe dando uma estocada com a única arma de que dispunha.
O golpe perfurou-lhe a têmpora, até tocar no cérebro, pelo lado direito, enquanto com a mão esquerda, tapava sua boca. O homem caiu, sendo amparado lentamente por Azekel, para não fazer barulho, terminando seu ataque com um punhal.
Arrastou o corpo do homem, deixando-o no meio do caminho por onde haviam passado, minutos antes. Após tomar o punhal comprido e um bastão de seu perseguidor, retornou para a extremidade dos arbustos.
O plano lhe parecia simples, porém ambicioso e objetivo. Dando certo, valeria a sua oportunidade de fuga e a liberdade. Utilizaria o corpo sem vida como chamariz. Se os outros dois retornassem já à luz do dia, tanto melhor.
Com o sol surgindo pôde ver os demais homens retornando. Certamente, pensava, já haveriam se dado conta da perda de um dos perseguidores, e de que não havia rastro mais adiante. Logo, o fugitivo ficara para trás e era corajoso. Provavelmente um caçador e guerreiro. O pior fugitivo para se alcançar e dominar.
O homem teme o homem. Escravistas e um caçador se confrontariam mais uma vez. A chance de novas mortes era quase uma certeza. Se Azekel estava exausto, por outro lado, já sabiam não se tratar de um negrinho qualquer.
Exausto e em inferioridade, o caçador havia recuado algumas dezenas de metros, porém contornando e retornando para perto do corpo sem vida, onde ocultou-se nos arbustos. Seu estratagema estava em andamento.
Quando seus perseguidores viram suas pegadas no chão arenoso, avançaram para averiguar o rastro que parecia retornar pelo caminho de fuga.
Ao se afastarem uns quatro ou cinco metros, furtivamente Azekel surgiu por detrás, arremessando o punhal, cravando a arma nas costas de um dos homens, que tombava.
Ato contínuo, avançou tomando de volta o punhal. Antes que o último perseguidor pudesse se dar conta do ocorrido, o caçador já estava armado com o punhal e o bastão mais uma vez, estando de pé na sua frente. A luta estava igualada.
O escravista agora estava longe da caravana e sozinho. Se tentasse escapar seria abatido por Azekel. Se decidisse ficar e lutar, teria de enfrentar o guerreiro caçador que já matara seus homens. Sem melhores chances, resolveu arriscar-se na luta e de repente matar seu oponente.
O ataque surpresa, a ação repentina, perder dois homens e ainda ter o oponente disposto a enfrenta-lo inibiam o caçador de escravos. Com Azeke sempre na ofensiva, consegue atingir e cortar os ligamentos do joelho direito do caçador de escravos, que perde o equilíbrio e o controle da perna direita.
Era evidente demais. Não seria páreo adequado para um guerreiro decidido. Começou a afastar-se lentamente, então deu as costas e desabalou a correr.
Azeke sabia que estava sozinho, faminto, exausto e em território selvagem desconhecido. Não podia se dar ao luxo de permitir que o escravista retornasse para a sua equipe.
Acompanhou o homem que tentava escapar e mais uma vez lançou seu punhal. O corpo tombou com a lâmina cravada nas costas. Azeke recolheu a arma e tomou o caminho de volta. Precisava ainda lutar para retornar à sua terra. O retorno somente se cumpriria mais de duas semanas depois.
Depois de curar seus ferimentos e já descansado, Azeke se pôs a estudar tudo o que acontecera. Verificou a preparação do ataque à sua aldeia e analisou toda a fragilidade na proteção de sua gente. Mais que isso, preparou homens para a reação imediata, caso se fizesse necessário enfrentar escravistas mais uma vez.
Adquiriu os Basenji, para sinalizar a presença de estranhos e reforçou a paliçada. Na realidade preferia um muro de adobe com vigias. Contudo, precisava de muitos homens para fazê-lo.
A história de Azeke correu pelas aldeias como uma serpente enlouquecida buscando alguém para picar. Quem reconheceu o perigo tomou medidas para reforçar a segurança do aldeamento.
Na aldeia de Leke e Kambami não foi diferente. Compreendiam bem do perigo que incursões dos mercadores de escravos representavam. Azeke havia perdido vários amigos, mulher e filhos em sua aldeia. Os pais de Azeke e Leke, já idosos, também morreram na invasão, pois não aprisionavam velhos.
Kambami estava impressionado com tudo o que ouvia sobre a escravidão e as mortes que os escravistas provocavam. O que o jovem ainda não sabia é que o tempo traria para a bacia do rio Congo o maior assédio de exploração e crueldade que a África já ouvira falar até então. Era tudo só uma questão de tempo. Qualquer sentido de humanidade que pudessem possuir, logo estaria por um fio. Tudo seria comodamente e cinicamente ignorado.
Desde 1845 que a Inglaterra mandava apreender navios que transportassem escravos. O que não foi o suficiente par extinguir o tráfico, pois o mesmo persistiu por várias décadas. Entrementes, outros interesses eclodiam nas cabeças coroadas e dos exploradores europeus, na segunda metade do século XIX.
A Europa, desejosa de obter terras e fontes de matérias primas delineava lentamente, a partir de informações e levantamentos geográficos, aquilo que entraria para a história com A Partilha da África. Para o grande público, foi anunciado que existiam preocupações reais voltadas para o auxílio dos povos africanos, por demais atrasados e pagãos.
Kambami já tinha mais de 50 anos e uma vez e outra tinha visto uns poucos homens brancos, comumente subindo o rio Congo. Circulava desde longa data que os brancos tinham interesse por escravos. Assim preferia manter distância destes desconhecidos. O velho não sabia, mas se tratavam de exploradores portugueses. Já conheciam o rio Congo, a partir de sua foz, no oceano Atlântico.
Ciente das antigas desventuras de Aseke, junto aos seus, havia construído uma aldeia fortificada e afastada do rio. Chegou a pensar que sua gente havia conquistado alguma paz, pois a busca por escravos havia diminuído sensivelmente.
Em certa ocasião, um dia sem nada de mais especial, a não ser pelo fato das canoas que desciam o rio com alguém que prendeu a atenção dos homens que estavam na beira do rio. Um homem branco descia o rio com pequeno grupo de nativos.
Ao vê-los, dirigiu-se ao grupo. Desceram de suas canoas e vieram conversar. Com a ajuda de um intérprete, o visitante inesperado pede maiores informações sobre o curso do Congo, adiante, à oeste. Foi quando entenderam que o explorador procedia de longe, da banda sudeste. Anotava meticulosamente tudo que o intérprete lhe dizia.
Anotou a posição, fez medições e desenhava coisas por sobre uma folha branca e grande que cobria quatro ou cinco palmos na sua frente. A folha era marcada com símbolos, sinais e desenhos. Tudo feito com tinta preta.
Kambami achou por bem não perguntar para que servia aquilo tudo, já que o homem branco já tinha ouvido as palavras do seu intérprete. Sendo assim, ele já sabia de tudo. Qual o propósito de se desenhar tanto?
O que Kambami não compreendia é que estava diante do primeiro levantamento geográfico e cartográfico, muito primário ainda, do rio Congo e dos rios que faziam a sua ligação com o lago Tanganika, na divisa com a Tanzânia, que por vez era território britânico. Descobrira que era possível chegar ao Congo, e ao interior do continente, a partir do lago.
O homem ocupado em fazer desenhos e sinais sobre aquela folha era o galês Henry Stanley. Corria o ano de 1870. O galês prosseguiu descendo o rio, provavelmente até a foz, supunha Kambami. Os honestos desejos de paz do velho guerreiro estavam prestes a sofrer mudanças drásticas.
Tudo por causa daquele desenho sobre a folha de papel. Filtrados e transformados em um mapa, se tornaria um dos segredos mais bem guardados daqueles idos. Faria de Stanley um homem rico e ao povo do Congo, só traria dor, sofrimento e morte.
Os Europeus, ávidos por riquezas, em um primeiro momento ignoravam as iniciativas de Stanley. Até sua viagem de exploração ser divulgada. Não o mapa, era valioso demais, além de precisar de novos aperfeiçoamentos.
A partir de um acordo, em segredo, estabelecido entre Henry Stanley e o rei Leopoldo II, da Bélgica, o Congo seria explorado em nome do rei, criando-se a Associação Internacional da África, entidade que seria reconhecida pela Convenção de Berlim de 1884. Instituição encarregada de organizar a exploração e encontrar tudo o que houvesse de valor.
A Bélgica era um reino pequeno e economicamente, inexpressivo. O rei havia contratado o galês explorador a peso de muito dinheiro, sob a forma de participação na exploração, que ficaria a seu comando, respondendo somente ao rei.
Stanley retornou ao Congo em 1871, visitando todas as aldeias que havia identificado, buscando estabelecer vínculos comerciais com os nativos, oferecendo produtos industriais baratos, porém, alguns totalmente desconhecidos na região. Além de oferecer contribuições em dinheiro, para os mais reticentes. Uma ninharia na verdade, em vistas ao butim que estava sendo premeditado.
Em troca, e sem se dar conta propriamente do significado real do que estavam fazendo, deviam oferecer homens para o trabalho na exploração. Sendo as aldeias ao longo do rio dotadas de portos e pequenos trapiches para armazenar mercadorias.
A exploração se iniciou com a definição de uma rede de transporte e escoamento. O produto inicial era o mesmo apreciado nas trocas locais, o marfim. Não estavam interessados em sal. Muito menos os distantes produtores de sal eram de seu interesse.
Não foi difícil aos novos exploradores obter sal barato e trocar, com vantagens, por marfim. A busca por marfim provocou a primeira grande mobilização de homens. O incentivo à matança de elefantes não demorou muito. A exploração de ouro veio a seguir.
Enquanto isso, existia nas terras do Congo, sem nenhuma restrição natural ao desenvolvimento das plantas, uma novidade que logo faria parte do cenário econômico do Congo. Uma planta de trato difícil. Os nativos não gostavam de trabalhar com elas. Contudo o tempo traria o interesse dos belgas por elas, pois produziam o látex de borracha.
No final do século XIX, descobrem a vulcanização, fundamental para atender a indústria de automóveis que estava surgindo. O látex congolês passaria a ter grande valor. A extração apoiada em trabalhadores baratos e por estarem relativamente próximos da Europa, colocavam a propriedade do rei Leopoldo II em evidência. Não iria deixar passar a oportunidade.
É lógico que as plantas não constituíam o pesadelo do povo local. A tragédia se deu pelo estabelecimento do sistema de cotas. Quando a produção não atingia a cota prevista. Cada aldeia, com o seu grupo de trabalhadores registrado e controlado pelos belgas, era obrigada a dar conta de sua cota de produção. Por volta de 1890, o látex congolês já estava sendo explorado.
Com o tempo, os faltosos começaram a receber castigos corporais. Uma milícia, a Force Publique, estava encarregada de prender os faltosos e aplicar os castigos. O sequestro de filhos e esposas tornou-se comum.
No propósito de manter o fluxo de produção e deixar os trabalhadores do Congo de joelhos, os castigos se tornaram ostensivos a seus familiares, inclusive crianças. Foi a partir daí que proliferou a prática de decepar a mão ou o braço a título de castigo pela queda da produção. Daí para a tortura, estupro e assassinato, foi apenas um pulo.
Kambami, já muito idoso, assistiu a perseguição e tortura chegar a todas as aldeias. Não havia trégua. Os acordos promovidos foram deixados de lado. O que valia era a força de soldados armados na busca de trabalhadores para receberem sua punição. A matança tornou-se algo comum e sem recurso.
O número de amputados era tragicamente enorme e nunca foi calculado. O número de mortos, também não.
Algumas autoridades ainda buscaram chamar a atenção dos líderes europeus para a questão dos maus tratos contra o povo congolês. Incluindo aí, diplomatas. Contudo, o eco provocado por tais iniciativas, foi muito limitado.
Nas proximidades da aldeia de Kambami, um grupo de viajantes europeus, entre eles uma jovem mulher, estava no local. A mulher vê o entristecido e impotente Kambami e acena, pedindo para fotografá-lo. A mulher, acompanhada do marido, busca uma boa posição e enquadramento, registrando em fotografia, toda a desilusão expressa no rosto e nos olhos do ancião. Se despedem do ancião e vão embora.
Retornando para o barco que os conduziria mais adiante, subindo o rio, a missionária pensava a respeito do homem que tinha acabado de fotografar, e cuja visão a impressionou profundamente. Pensativa, comenta então com seu marido.
— O que poderia ter provocado tanto pesar àquele velho? Também me deixou constrangida a atitude de medo das crianças. Você notou como ficaram às escondidas? Pareciam ter medo de nós. O que mais poderá ter acontecido por aqui? — Perguntava ao marido.
— Não faço a menor ideia. É um tipo de gente diferente de nós. Talvez seja por isso. São diferentes e meio assustadiços. Enfim, vamos aguardar mais um pouco.
— Que coisa estranha. Os funcionários que nos receberam no início da viagem, me pareceram muito simpáticos. Como é a primeira aldeia onde paramos, realmente não sei.
Talvez porque fosse cedo ainda, e então John, seu marido, teria razão. De qualquer modo, o contato com novas aldeias e outros habitantes, poderiam trazer as respostas que Alice ansiava. O casal estava no Congo há muito pouco tempo.
A viagem de núpcias do casal de missionários, assumiria um inesperado caráter de urgência, jamais pensado pelos dois.
Em sua aldeia, Kambami já não fazia suas pequenas caminhadas nas proximidades. Já não trabalhava. As forças lhe faltavam. Só queria apreciar o grande rio que o acompanhara por toda vida. Queria ver o aglomerado de habitações, cada vez mais empobrecidas pelos anos de exploração, que lhe pareciam infindáveis.
Seu coração sofria ao pensar nos homens altivos, lembrados na cultura oral. Como a fuga espetacular de Azeke, daqueles que queriam escravizá-lo, e de como matou seus perseguidores. Após Azeke, já que não tinham forças em grande número para matar os mercadores escravistas, aprenderam a fortificar e a proteger suas aldeias.
O que o futuro trouxe foram seus netos e bisnetos submetidos a uma espécie de nova escravidão. Que não afasta de casa, mas traz humilhações, sacrifício, dor e até mesmo a morte. Kambami morreria poucas semanas depois de ser fotografado por Alice, aos 82 anos, sem ver a libertação de seu povo.
Já estabelecidos junto a uma das aldeias, com ares de vila, por conta de algumas benfeitorias, um episódio incomum, surreal, marcaria aquela fotógrafa por toda a sua vida.
Já pela manhã, ao abrir a porta da construção simples que servia de alojamento ao casal, viu algo que a tocou profundamente. Um nativo lhe mostrava, postos no chão, um dos pés e a mão de sua filha de seis anos, amputados, pois ele e sua aldeia não haviam conseguido cumprir a cota de látex prevista, daí o castigo.
Alice Harris ficou estarrecida, registrando em fotografia a cena macabra. A partir daquele ocorrido, dia após dia, chegava à mente de Alice, a imagem do velho Kambami. E agora a jovem fotógrafa compreendia o motivo de tanta desilusão e tristeza naquele olhar.
Assim começava uma luta que levou vários anos até que, forçado pela opinião pública, o rei Leopoldo II da Bélgica, finalmente abandonou sua propriedade.
O Estado Livre do Congo, como era chamado, foi tratado como propriedade do rei, de 1884 até 1908. Acabou sendo transferido para a Bélgica, quando então passou a ser uma colônia. Não sem antes, o rei ser recompensado com uma alta soma em dinheiro, a título de indenização por sua perda. Ao preço de hoje, algo como dois bilhões de dólares.
Leopoldo não viveria para gastar sua indenização. Morreu em dezembro de 1909, em Bruxelas na Bélgica. Espírito liberto do corpo, começou o seu padecimento, submetido a toda sorte de perseguições por parte dos homens e mulheres, congoleses assassinados, ao tempo do seu estado livre.
O que se deu com Leopoldo e seus funcionários que conduziram a exploração dos recursos naturais e humanos da região?
Em meados dos anos trinta, primeiramente Leopoldo e depois seus subordinados diretos, começaram a retornar à Terra e ao Congo Belga, a partir do ventre das mães congolesas, sob condições de extremada miséria e indigência.
Leopoldo reencarnou várias vezes no Congo. Sob a forma de uma criança negra pôde vivenciar o frio, a fome, o abandono, o abuso e a mutilação de seu corpo. Até compreender a natureza de seus crimes e poder expurgar sua indiferença e maldade.