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terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

Luzia

                  

                                              Foto: Wikimedia Commons 

Por: Antonio Mata 

 A casa da tia Marieta sempre teve um monte de coisas para se fazer e para se mexer. Distante, em uma chácara, as visitas não eram lá muito comuns. Gostavam de visitá-la no início de janeiro, durante as férias, quando os pais das meninas as deixavam com a tia.

As duas primas entraram em um depósito por simples brincadeira. Sônia levava uma lamparina e seguia na frente apenas para bisbilhotar. Nunca mais, nem Sônia nem Luzia, esqueceriam aquele início de noite nas férias de janeiro.

Sônia era a mais extrovertida, aquela que comandava as incursões, primeiro de reconhecimento pela propriedade, dentro de casa e fora de casa, para ver as novidades. 

Dentro de casa, poucas mudanças além da coleção de bibelôs, uma espécie de hobby de sua tia. Já fora de casa, novos inquilinos pela chegada de uma ninhada, fossem cães, gatos ou passarinhos. 

Bassês e vira-latas, ou a mistura dos dois, traziam as novidades, seguidos por angorás e o viveiro de periquitos australianos. Também a ampliação do jardim, uma nova horta, e ainda o quintal cheio de árvores frutíferas. Havia o que fazer e passar a propriedade em revista valia a pena. Mesmo que fosse para ver o antigo balanço da infância, que continuava convidativo e no mesmo lugar.

Luzia era a mais comedida, e de certa forma apenas acompanhava as sugestões da prima, só dois anos mais velha. Aos doze anos, Luzia achava que Sônia era daquele jeito por ter mais idade.

De todo modo, veriam tudo que tinha para se ver em poucas horas, sendo que no jardim e na horta, teriam a companhia da tia para lhes mostrar os detalhes. Com os animais também. Assim, o dia seguinte estaria reservado para se circular pelas redondezas.

Fim de tarde, tia Marieta já havia servido o lanche das meninas e todas descansavam na sala. Com a tia se afastando para cuidar de pequenos afazeres na cozinha, foi Sônia quem primeiro atentou para um detalhe.

— Luzia, ainda não passamos em todos os lugares. Ainda falta o barracão, o depósito onde a tia guarda um monte de coisas. E ela deixa o depósito aberto.

Luzia que já não estava muito a fim de sair de casa, retrucou.

— Acho que ela deixa aberto porque só tem coisas sem valor. Se não fosse assim deixaria trancado.

Sônia olhou para a prima com desdém.

— Você está é com medo. Lá não tem energia e já está escurecendo. Você pensa que eu não sei?

— Não estou com medo. Só acho que não vai servir para nada.

— Está com medo sim. Você tem fama de medrosa.

Era lógico que Sônia estava querendo instigar a amiga, se já não tinha em mente, dar-lhe um susto. O fato é que conseguiu. Entre adolescentes, isso tudo pega muito. Ante a insistência de Sônia, a amiga se viu sem argumento.

Luzia ainda comentou:

— Já está ficando escuro, é só olhar pela janela.

Sônia não se importou. Levantou-se calmamente, foi até a estante cheia de bibelôs e no canto direito pegou uma lamparina.

— É isso que ela usa quando precisa entrar lá. Vem comigo ou ainda está com medo?

— Eu vou com você. Não estou com medo, e lá não tem nada para se ver. Já entramos lá antes.

As duas se levantaram se dirigindo ao barracão, que não ficava distante dali. Uns vinte metros depois, de lamparina acesa em sua mão, adentraram o depósito cheio de coisas velhas. Do lado esquerdo, nos fundos, havia uma estante cheia de objetos de uso eventual, além de tralhas que as costumam pessoas guardar.

Sônia se dirigiu ao fundo do depósito, tendo o cuidado de observar se Luzia lhe acompanhava.

Com Luzia ao seu lado, Sônia levantou a lamparina, como quem procura iluminar ao seu redor.

— Está vendo, aqui não tem nada interessante. No ano passado já estivemos aqui. Está tudo do mesmo jeito.

Sônia olha para um lado e para o outro, gritando para Luzia:

— Só que era de dia!

Sai correndo com a lamparina na mão.

Luzia, pega de surpresa, se põe a correr, só que já havia ficado para trás.

Na corrida Sônia esbarra na estante velha que cambaleia e tomba por sobre Luzia que vinha logo atrás. No alto havia um garrafão de solvente, utilizado para limpeza. O garrafão se quebra ao contato com outros objetos ao redor. O solvente encharca o rosto e o vestido de Luzia. Com o susto, e presa por debaixo da estante, Luzia grita.

Sônia detém sua fuga e retorna para ver o que havia acontecido. Com a lamparina em punho ficou fácil ver Luzia presa no chão. Ato contínuo se abaixa para soltar a amiga. O que ela não viu foi o solvente inflamável espalhado no chão e sobre o corpo de Luzia.

O que se seguiu foi estarrecedor.

Primeiro o piso, depois o corpo de Luzia, a estante, e finalmente todo o barracão. Tudo se transformou em um crematório.

Tia Marieta chega logo a seguir, atraída pelos gritos de Luzia. O incêndio no barracão já havia iniciado. Sônia, petrificada, apenas assiste as labaredas envolvendo tudo, sem reação. É arrastada para fora pelas mãos de sua tia.

Assistem as chamas envolverem todo o barracão, enquanto vizinhos próximos acorrem ao local. O que está feito, está feito.

 

Vida que segue

— Viviane levanta logo, hoje é dia de aula minha filha.

Viviane sempre achou insuportável o retorno à escola, todas as segundas-feiras. Reclamava do cansaço, que não dormia direito, da indisposição e daquele monte de gente chata que haviam reunido justamente em sua turma.

— Aquela escola é um saco, e eu já disse isso para você. Quero ir para outra escola.

— Quer, mas não vai, é perto de casa e não vou comprar farda e lista de material duas vezes. Dizia sua mãe.

— Você não acredita nas coisas que eu digo.

— Acredito sim minha filha, só que é preciso separar os excessos.

Viviane se vira para a mãe com cara de poucos amigos e dispara.

— Mesmo quando digo que tem alguém me acompanhando? Na rua, até aqui em casa, até dentro do meu quarto? Só não aparece dentro da escola. Nem ela gosta de lá.

— Pois é, este é um dos excessos. Eu também já tive amiguinhas quando era criança que brincavam comigo no quarto. Só que depois foram embora. Logo, já sabemos que isso não é nada.

— Logo, já sabemos que não é disso que estou falando. Não é mamãe? Tá querendo fugir do assunto, igual como quando eu pedia para ficar no seu quarto, porque não queria ficar sozinha e você não deixava.

Levantou-se deixando sua mãe para trás. 

Lugar comum dizer que a outra não está vendo nada, ou que não tem nada acontecendo. É apenas a imaginação fértil dos mais novos. No entanto, para além da concepção ingênua, quando não medrosa dos adultos, a visão de espíritos próximos, principalmente por parte das crianças, é fenômeno bastante comum, podendo se estender pela adolescência e mesmo pela vida adulta.

As reclamações de desconforto e mal estar da parte de Viviane prosseguiram. Foi por sugestão de uma amiga que Ana Flávia, mãe de Viviane buscou um grupo espírita, onde pôde expor o quadro vivenciado pela filha.

Após a exposição feita por sua mãe, foi recomendado que a menina participasse de um grupo de evangelização infanto-juvenil, onde poderia, de uma forma mais adequada, conhecer episódios relativos aos ensinamentos cristãos, enquanto através da reunião mediúnica, atividade regular e restrita, conduzida por pessoas qualificadas, buscariam evocar a presença do espírito que acompanhava Viviane.

No momento devido, durante o encontro do grupo mediúnico, o espírito de uma menina de doze anos ofereceu comunicação. Era Luzia. Contou de sua experiência e de como foi cooptada por espíritos inferiores que fomentaram em sua mente o ódio e o rancor contra a amiga, acusada de ser a responsável pelo ocorrido. 

Foi assim que se iniciou o acompanhamento feito por Luzia, junto a Viviane. Que em outra vida era Sônia, a prima e amiga de Luzia.

Com a ajuda de espíritos amigos e de sua mentora espiritual, na realidade sua avó de outros tempos, Luzia compreendeu que tudo não passara de um trágico acidente, fruto de uma brincadeira, porém sem o propósito que se deu. 

Na realidade, espíritos inferiores tramavam contra Luzia, instigando sua amiga para se dirigir ao local do sinistro. Sônia não fazia ideia do que estava acontecendo, pois também era vítima de uma manipulação. 

Tal processo deveria criar sobre ela o sentimento de culpa que cultivou por muitos anos em sua vida e que muito a prejudicou. Muito da angústia que Viviane sentia em sua nova vida, ainda era por conta das reminiscências do ocorrido na vida anterior.

Desfeitos os laços nocivos, Luzia hoje é uma linda menina de doze anos, aguardando pelo seu retorno à vida no corpo físico. Quem irá providenciar tal possibilidade será Viviane, em data futura, já que concordou em receber Luzia como sua filha. No fundo, sempre foram grandes amigas.

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