Por: Antonio Mata.
Gentil e de boa vontade, convidou os meninos, todos irmãos, para um lanche. A surpresa ficava por conta do cachorro-quente. Prático e saboroso frequentador dos lanches da tarde.
O irmão mais velho, mal tinha completado treze anos. Daí para baixo vinha a escadinha com cinco degraus. Algo comum em outros tempos. Terminando aos sete anos.
Logo na chegada, se acomodaram na sala todos juntos. Não era nenhum evento em particular. Apenas o casal simpático gostava da presença dos irmãos e da esperada circulação e perguntas, quando começassem a se soltar.
O cheiro de molho à base de folhas de manjericão, logo invadiu as narinas. Os meninos olhavam uns para os outros com um certo olhar e um discreto sorriso revelador. Dia de coisa gostosa e não tinha mais ninguém para fazer concorrência.
Recostado no sofá, o pequeno Otaviano, de onze anos, apenas esperava o momento de se servir. É que sempre aparece um olhudo, um menino barrigudo e outros nomes que a crônica popular achou de colocar.
Lucindo, o mais velho, cochichava baixinho, salientando as recomendações já trazidas de casa. Estas deveriam ser atendidas à risca. Caso contrário, haveria consequências.
— A mãe falou para ninguém ficar bancando o esfomeado. O morto de fome, o filho de cego. Todo mundo entendeu? — Lucindo tratava de cientificar a todos.
Todos atestaram a compreensão do aviso oferecido pela mãe do grupo, a bem de todos, menos um.
— Eu já sei disso. Também já sabia que haveria o lanche. Eu ouvi quando falaram para a mamãe. — Dizia Otaviano, todo satisfeito.
— Mesmo assim, vê se não esquece de nada.
— Ele é olhudo Lucindo. Só tá esperando a hora de saltar em cima da comida. Pensa que ninguém sabe. — Luciano, de nove anos, entregava o irmão enquanto havia tempo.
Finalmente foram todos chamados a se servir com a bandeja, de cachorro-quente sendo posta no centro da mesa, além de uma jarra com suco.
Extremamente educados, pareciam saborear com calma o primeiro que chagou às mãos de cada um dos meninos. Aquilo era ótimo. Ainda estava aquecido e o molho de dona Celinha, algo de inigualável.
Valdir, marido de dona Celinha, era apreciador de gibis, revistas de histórias em quadrinhos. Chamou Lucindo para lhe mostrar suas últimas aquisições, que haviam sido postas em uma estante, a poucos passos dali.
Enquanto isso, Celinha foi cuidar de outros afazeres.
Lucindo aproveitava estas visitas para se pôr à par do mundo das histórias em quadrinhos. Era uma época em que algumas editoras estavam oferecendo quadrinhos coloridos. Diferentes dos mais antigos, sempre em preto e branco.
— Otaviano, você também não quer ver os gibis? Agora eles ficaram coloridos.
— Depois eu vejo, seu Valdir.
A novidade dos quadrinhos colou na mente dos garotos daquele tempo. Assim, Lucindo se distraiu vendo os gibis coloridos. Justamente aqueles que o seu Valdir, não emprestava. Somente os quadrinhos em preto e branco.
Enquanto atendia Lucindo, seu Valdir se dirigiu aos demais.
— Vocês fiquem à vontade. Depois, é só pegar mais lá na cozinha. Tem mais pão e molho.
Lucindo, distraído com a exibição de gibis, se descuidou dos irmãos. O vaivém para a cozinha tornou-se inevitável.
Esticando um rabo de olho, pôde ver umas caras lambrecadas de molho. Eram os meninos menores.
— Otaviano, você não tá vendo isso não? Olha a sujeira que estão fazendo.
— Eu já falei pra usar guardanapo. Deixa que eu pego.
Antes que pudesse fazê-lo, os dois mais novos passaram as mãos e os braços na boca e no rosto, poupando Otaviano de toda preocupação. Quase isso, mas as caras ficaram piores.
Otaviano tinha outras ideias em mente. Afinal, Lucindo, acompanhando seu Valdir, também tinha as suas próprias, mais interessado nos gibis.
Depois de algum tempo, Lucindo acabou cismado com aquele silêncio pouco comum. Largou a revista e foi ver o que era aquilo. As bocas cheias, as caras lambrecadas e a bandeja vazia, mostravam o óbvio.
— Heitor, quantos você comeu? — Heitor o menor, de boca cheia, só fez levantar dois dedos.
— Adriano e você? — Igualmente, Adriano levantou dois dedos.
— João e você? — João fez o mesmo, enquanto continuava comendo o seu segundo cachorro quente.
Olhou para Otaviano.
— Eu sei que você é morto de fome. Quantos você comeu? — O menino engoliu e respondeu.
— Eu comi mais Lucindo. Eu comi três.
Lucindo olhava para o irmão e soltou:
— Eu só comi um.
— Em compensação nem eu nem ninguém leu gibi algum, foi só você Lucindo. Agora não dá mais para consertar, já que você nem chamou a gente, nem para mostrar os desenhos coloridos. Quanto mais para ler.
Mesmo achando estranho aquele apupo de honestidade de Otaviano, contudo, reconhecia que realmente não se importou em mostrar as histórias para os outros irmãos.
Porém, tendo em vista o comportamento e respostas dos demais, deu-se por satisfeito. De qualquer forma, já se aproximava a hora de todos voltarem para casa.
Assim, pouco depois despediram-se do casal e agradecidos, retornaram para casa.
Superadas as indagações de praxe da parte de Eliana, mãe dos meninos, todas comodamente e positivamente respondidas, foram cuidar de outras brincadeiras por casa.
Foi lá por cerca de uma hora a uma hora e meia, que as coisas começaram a acontecer. Otaviano iniciou um circuito de idas e vindas ao banheiro, difícil de esconder e de se acreditar que estaria tudo bem.
Quando começou a reclamar da dor de barriga e da consequente diarreia, Eliane quis saber do que se tratava e o que estivera fazendo, além de se empanturrar de cachorro quente.
Foi o pequeno Heitor que apareceu na frente e lhe deu a resposta.
— Mãe ele comeu muito, mãe. Comeu mais que todo mundo. A dona Celinha ficava só olhando.
Otaviano viu o tempo fechar sobre ele. Nuvens escuras se amontoavam sobre sua cabeça. Olhava para Heitor como se este fosse o ser mais detestável da cidade.
— Otaviano, você não tem vergonha? Vão achar que vocês não têm comida dentro de casa!
Otaviano, adivinhando a surra, tão logo ficasse bom da diarreia, olhava para a mãe com cara de piedade. Em seguida, para Heitor como se fosse um cão danado, sem guia e sem coleira. Louco para atacar e morder aquele fedelho.
— Que vergonha, que vergonha! Eliane não parava de repetir.
Heitor, que não era bobo, viu seu próprio couro ameaçado, e então arriscou:
— Mãe, Otaviano comeu tanto que a dona Celinha ficou olhando pra ele de olho arregalado e boca aberta. Daquele jeito que a tia Luiza falava. De mau-olhado.
O rosto de Eliane se transfigurou.
— Você viu isso Heitor?
— Vi mãe, vi sim. Ela ficou parada ali, igual um robô.
Eliane ficou olhando para o filho Otaviano, e então exclamou:
— Não fosse pelo teu irmão, eu iria continuar pensando que você era o culpado dessa bagunça toda. Foi Celinha que colocou olho-ruim em você. É por isso que você está desse jeito. Agora está explicado. É mau-olhado!
Mau-olhado, Otaviano teria sido vitimado por mau-olhado. Mas também havia sido salvo do castigo pela mesma razão, graças ao irmão Heitor. O mesmo que, aparentemente o incriminava.
— Vou colocar pau pereira na água e você trate de beber tudo.
É horrível de amargo, mas, para quem estava na expectativa de esquentar o couro, foi um ótimo negócio. Intrigas e arranjos entre meninos. Algo que Eliane não entendeu.
Posteriormente, Lucindo perguntou de Heitor:
— Mas Heitor, o cachorro quente. Quantos o Otaviano comeu?
— Sete.