Foto: Shooting-star by Pixabay
Por: Antonio Mata
Anoitecia. Do alto da colina, a lua de quarto crescente precedia as estrelas que não tardariam a chegar naquele céu quase sem nuvens. Dava gosto de se ver.
Contava as novidades da semana. Nada de espetacular, só uma entrada para que pudessem retomar e amadurecer mais alguns propósitos, alguns projetos. Conversa que já havia se iniciado semanas antes, contudo Marília gostava de revisar tudo de novo. Aquele namoro estava ficando antigo, então se decidiram pelo casamento até o final daquele ano.
Estudavam suas possibilidades. Marcel crescera trabalhando com seu pai, no setor de autopeças, onde angariou experiência na condução de pequena empresa. Viajando a serviço de seu pai, sentiu que o comércio varejista estava mudando, e gostou do que estava vendo.
O que mais lhe chamou a atenção foi o salto de qualidade no produto, layout e decoração das lojas e diversificação da oferta. As antigas padarias estavam se tornando verdadeiras boutiques não só do pão, mas também de um bocado de coisas. Cada uma mais gostosa que a outra.
As pessoas chegavam para primeiro comer com os olhos, até então decidirem se servir. Algumas dessas lojas estavam se transformando em verdadeiros pontos de encontro. Quando não era dos mais jovens, era dos mais velhos.
A clientela não aparecia por lá à toa, ou só para pegar o pão. Passaram a frequentar a loja porque gostavam de lá. O salão agora era espaçoso, com mesas para as refeições no local. Algumas possuíam bancos junto a um balcão, mais pelo charme do conjunto da loja, do que por necessidade.
Em ambiente climatizado, o serviço era um misto de atendimento personalizado com self service. O café da manhã havia mudado, em algumas o apelo regional era muito forte.
No horário de almoço, de acordo com a localização do ponto comercial, então não eram todas, a oferta prosseguia. Uma se transformava em soparia, a outra servia comida caseira, já uma terceira servia massas. Eram formas de diferenciação, de acordo com a clientela.
Marcel se achou naquelas lojas, que já não eram mais simples padarias. Teve seu tempo de pensar: “quando é que vou conseguir uma loja dessas?”. Já se faziam três anos. Se avizinhava o momento da execução.
Se Marcel já possuía a orientação inicial, Marília abriu caminho debaixo de muito esforço. Filha de uma comerciária de poucos haveres, foi dias, na realidade anos atendendo em um cabeleireiro. Havia obtido, pelos próprios méritos, um financiamento estudantil que cobria 75% das mensalidades.
Entretanto, faltavam os 25% de um curso de odontologia. Foi preciso muito trabalho no pequeno salão de cabelereiro, até o momento da sua colação de grau, após cinco longos anos.
Aquele diploma que aparecia na fotografia, acompanhada de um belo sorriso de comercial de pasta de dente, valia bem mais que a gramatura do pergaminho. Esforço e dedicação, era o nome da cola que aglutinou seus melhores sonhos até ali.
Marília conhecera Marcel em um baile de formatura, onde ela era convidada de uma das formandas da turma de Marcel. Já havia concluído o ensino básico quatro anos antes. De fato, aquele garoto que acabara de fazer 17 anos, não chamava a sua atenção, não. Numa análise bem honesta, aos olhos de Marília, Marcel não cheirava nem fedia.
Já Marcel, precisou da lucidez pacífica e bem-humorada de um amigo, “Marcel, faz de conta que não tem nada acontecendo e disfarça. Daqui a pouco, até o cemitério vai ficar sabendo que você está secando essa garota”.
Marcel, ainda com espinhas no rosto e enfiado em um terno pela primeira vez na vida, não lembrava nada nem ninguém que tenha sido visto em “Os homens de preto”. As calças, maiores que suas pernas, fazia com que ficasse pisando nelas o tempo todo. Como era meio franzino, isto o fazia se sentir pouco a vontade no meio de tanto pano.
Já as adolescentes, as formandas, é verdade sim. Elas tinham um jeito diferente de pensar. Em que pese algumas, por pura inexperiência, carregarem muito na maquiagem, dentro daqueles vestidos longos estavam lindas.
Gostava muito do Lauro, o nome do cara que o cutucou com os quatro pés de uma cadeira. Pego em flagrante, e de uma forma que poderia virar mico a qualquer momento, tratou de se ajeitar, pois não queria ir embora, muito pelo contrário. Queria ficar no salão, de qualquer maneira.
Taciturno, então acionou uma coisa na qual era mesmo muito bom. Andar pelos cantos, rente às paredes, meio que de lado, fora da visão dela, e com gente passando pelo meio. Ninguém presta atenção, mas o camaleão, a lagartixa e a aranha, estão todos ali. Marcel desapareceu, agora podia observar à vontade.
Desde que seja por uma boa causa, Deus abençoa os teimosos, os persistentes e os tímidos. Lá pelas tantas, ouviu uma voz bastante conhecida:
— Marcel vem cá, vem conhecer a minha amiga.— Era a Vilma, formanda como ele, que o ajudou algumas vezes nas lições de trigonometria. Como saberia pouco depois, Marília e Vilma eram de fato primas.
Marcel, puxado pela mão por Vilma, prosseguia tentando processar aquele horror de coisas que tomaram de assalto sua mente, no espaço de tão poucos passos.
Até que se viu na frente dela.
— Marília, esse é o Marcel. Ficamos na mesma turma desde o primeiro ano. Marcel, esta é Marília, minha prima e estudante de odontologia.
Não foi à toa que Vilma chamou seu amigo. Uns quatro caras já haviam tentado tirar sua prima de cima daquela cadeira, e nenhum deles conseguiu. Vilma já estava apelando, e nem negava. Até por que, ela e Marcel nem eram tão amigos assim.
Também não era frescura de sua prima. É que aquele lugar estava cheio de garotos. Formandos, irmãos de formandos e primos de formandos, porém um monte de garotos, e quase todo mundo acompanhado dos pais. Se Marcel foi vitimado por uma certa hipnose, Marília por sua vez, deu um certo azar.
Vilma, então os apresentou, e, e...
Bem, nada aconteceu.
Cumprimentou a moça, deu um ligeiro sorriso, daqueles meio sem graça. Enquanto segurava aquela mão pequena, podia observar bem de perto aquele par de olhos grandes e castanhos claros, naquela moldura de cabelos compridos, soltos e bem escuros. E isso foi tudo.
Com um vocabulário limitado demais, meneou a cabeça, deu as costas e se afastou. Uma garota que queria falar com as primas, fez o corta luz para que pudesse se afastar mais discretamente. Marília nem o viu pisando nas próprias calças.
Já havia se afastado bem uns quatro metros, quando sentiu ser seguro pelo braço. Era Vilma de novo.
— Marcel vai lá e tira ela para dançar.
— Eu?
— Não Marcel, o porteiro.
Quem tem amigos na Terra, nunca fica sozinho. Pelo sim e pelo não, Lauro já o tinha avisado, “antes que eu me esqueça, o seu caminhãozinho de areia, além de pequeno não é trucado, então, vê se olha para outra garota, e não volta para secar ela de novo”.
O pedido feito por Vilma soava como uma contraordem. Ela estaria falando sério, ou queria apenas ver a sua caveira? Mais uma vez o arrastava de volta, sem que pudesse processar suas dúvidas, assim tão depressa.
Há quem diga que cada um de nós tem um anjinho do bem e um anjinho do mal. Verdade ou bobagem, o que se ocorre é fruto da é falta de conhecimento da realidade espiritual, sua e dos demais. Assim, o que aconteceu é que enquanto caminhavam até onde Marília estava sentada, apagaram-se as luzes do salão, deixando apenas as luzes laterais em baixa intensidade.
Marília se levantou, pegou em sua mão e foi dançar com ele. Marcel, que não entendia coisa alguma, deixou a coisa seguir e não disse nada. Quando a música terminou, de forma muito educada, ela agradeceu. Fez menção de sentar-se novamente. Ele a acompanhou e ela retornou para onde estava.
Marcel deu-se por realizado e foi embora. Talvez se acreditasse que ele deveria encher a paciência dela mais um pouco. Mas ele não, não iria perder aquela atitude gentil daquela que estava, aos poucos, se transformando em sua musa. Não por conta de uma insistência idiota e inútil. Alguma coisa lhe dizia para não abusar da sorte. Afinal, seu caminhãozinho não era nem trucado.
Naquela semana ninguém viu mais ninguém. Não Marcel e Marília. Uma estava ocupada demais no salão e nos estudos. O outro, trabalhando com o pai e sonhando acordado.
Lá por volta de uma quinzena, depois da festa de formatura, pôde rever Laura, na rua, meio que de passagem. Conversaram amenidades rapidamente, e Marcel não conseguiria ficar quieto por muito tempo. Logo indagou.
— Havia tanta gente naquela festa. Por que foi que ela me chamou? Não achava que fosse fazer isto.
— Quer mesmo saber? Muito simples, você foi o único cara que não se mostrou pretensioso. Lá estava cheio de garotos e ela já estava querendo ir embora. Por conta do que ela disse, te peguei e te trouxe de volta. Então, foi isso.
Ponto para o jovem e despretensioso aspirante a conquistador de musas. Aspirante 1, tudo e todos, 0.
A despeito do episódio, as coisas não sofreram quase nenhuma mudança. Os dois viam-se, eventualmente em locais públicos. Eram simpáticos um ao outro, e isso era tudo. Só o tempo que tratou de fazer a sua parte, avançando mais cinco anos na vida da cidade. Assim, e por força das circunstâncias, perderam até o mínimo contato que havia.
Seu pai, que era cardíaco, precisou se afastar da loja de autopeças, fazendo com que Marcel se envolvesse mais ainda com o trabalho. Por insistência de alguns amigos, resolveu participar de um passeio, uma excursão rápida de fim de semana a um parque ecológico relativamente próximo.
Os demais chegaram em casal, só Marcel que não conseguira fazer render nenhum namorico do final de adolescência, e por isso, e ainda tendo de conduzir os negócios da família, preferiu permanecer sozinho.
Chegaram relativamente cedo ao parque e organizaram caminhadas. Na condição de recém-chegado, simplesmente acompanhava o grupo. Afinal, não era lá muito afeito a caminhadas, trilhas, ou qualquer coisa que significasse ficar andando no meio do mato, na sua opinião nada abalizada.
Satisfeito ou não, acabou participando, e até que dava uma disfarçada, só para não amolar os amigos que haviam insistido tanto na sua presença.
Horas depois, Verônica, que havia se afastado do grupo, voltava com um comentário jocoso e um certo pedido de ajuda. O lugar era bonito e convidativo, não era à toa que muitos o escolhiam para camping, passeios e excursões. Só que às vezes, acidentes acontecem.
— Gente tem uma garota aqui perto, meio mocoronga, que achou de torcer o tornozelo, portanto tratem de tomar cuidado, só para não estragar o passeio. Essa daí já estragou o dela.
Houve quem achasse graça da desgraça dos outros, houve quem lamentasse o infortúnio, porém prosseguiram com a caminhada. Minutos depois encontraram duas mulheres sentadas junto à trilha, uma delas era a que havia se acidentado.
Marcel que vinha por último, só ficou olhando aquela gente toda em volta das duas mulheres. A conversa ficou fácil de se entender. Estavam na expectativa de alguém que estivesse retornando e que pudesse ajudá-las a regressar para a cidade. O que não deveria ser muito rápido, pois era cedo ainda.
Ante às palavras das duas mulheres que estavam dispostas a aguardar o retorno do seu próprio grupo, caso não surgisse ninguém retornando, os demais prosseguiram na caminhada, menos um.
Quando a aglomeração passou, ele pôde reconhecer uma das mulheres ali presentes. Aqueles olhos grandes eram velhos conhecidos de uma adolescência que já ficara para trás.
Achavam graça.
— Que lugar para se rever, não é? Dizia Marília.
Marcel colocava a mochila no chão e se agachava diante da sua musa de outros tempos.
— Meio diferente. E aí, além do tornozelo fora do lugar, como vai você?
— Cuidando da vida, trabalhando estudando.
— Pois é...
Prestava atenção na moça que habitou seus sonhos de garoto, e achava engraçado o fato de ter levado cinco anos para poder ouvir aquela dúzia de palavras.
— É assim mesmo. serviço é o que não falta na loja de meus pais. Passo o dia lá dentro. Quase que não venho por aqui.
— É mesmo? Não sabia que gostava de fazer trilhas.
Marcel se aproxima mais um pouco, e fala baixinho, como quem conta um segredo.
— Quer mesmo saber? Acho que não gosto muito não.
Marília retribuiu a franqueza em tom de brincadeira.
— Quer mesmo saber? Acho que não gosto também não.
— Tá legal, e o que pretende fazer agora?
— A ideia era esperar algum grupo que estivesse voltando, e pedir uma carona, não quis atrapalhar o passeio de ninguém. Só o da Nilza. A propósito, esta é a Nilza, que ficou aqui de castigo comigo.
Feitas as novas apresentações, sugeriu que ela retornasse com ele mesmo para a cidade, já que pelo visto, foram os únicos a não entrar no clima do passeio. Assim, Nilza poderia retornar para os demais. Aceitaram a proposta, tendo Nilza se despedido dos dois e retornado ao grupo.
— Olha Marília, podemos sair daqui de duas maneiras, uma lenta e uma mais rápida. A lenta é encontrar uma forquilha para improvisar uma muleta. Essa não é a minha praia, mas a gente dá um jeito. A outra é você se apoiar em mim mesmo. Vai demorar um pouco, mas vamos chegar até o carro.
— Se não se importa, eu prefiro a segunda.
— Não me importo não, vamos andando.
E foi assim que puderam deixar o pé da serra, com bastante tempo para conversar. Marcel já não era mais o cara bobinho de outros tempos, mas bem que estava gostando daquilo tudo.
Não teve maior interesse pela caminhada, mas poder rever a musa de sua adolescência, voltar cedo para acidade, e na companhia da Marília, isso sim era um golpe de sorte.
Levou-a apenas a um posto médico, apenas para colocar uma bandagem e receber um injetável para dor. Passado aquele dia, tinha o argumento de querer saber como Marília estava se recuperando, tinha até seu endereço. Afinal, ela não se importava com as visitas, já que era algo que poderia ter sido até por telefone.
Daí, e aos poucos, no estilo de certos casais, a aproximação deixou de ser algo que deveria ter acontecido a cinco anos atrás. O mais provável é que ela o reprovasse. Nada que alguns anos de vida e experiência não o ajudassem. Marília enxergou em Marcel, bem mais que uma carinha bonita. O que acabou sendo recíproco, já que Marília, além de ter belos olhos, também era ótima companhia.
O relacionamento foi se definindo sem pressa, como costuma ser quando um gosta de conhecer o outro, e valoriza a sua presença. Com o tempo, se deram conta que havia uma certa rabugice em não querer participar das trilhas no pé da serra. As caminhadas acabaram se tornando excursões, que renderam brincadeiras, romance e um monte de fotografias.
Foi de encontro em encontro, de excursão em excursão para os mais diversos lugares. De projeto em projeto, que acabaram no alto daquela colina, apreciando a lua em quarto crescente e as estrelas que já se apresentavam.
O anoitecer já se fazia bonito, o ar fresco, ligeiramente frio de mês de agosto, e lá embaixo as luzes da cidade. A Terra é assim, oferecendo seus presentes diários, para todos que queiram apreciá-la.
Apenas apreciavam a chegada do magnífico tapete de estrelas. No meio do céu, da direita para a esquerda, um meteorito risca uma fina faixa prateada, ocupando a sexta parte do céu. Tão luminoso quanto repentino.
— Faz um pedido, depressa faz um pedido. Dizia Marília, abraçada com o rapaz.
— Um pedido, deixa ver. Que a nossa boutique do pão não demore muito e seja um grande sucesso. Afinal, precisaremos dela.
— Já deve ser um grande sucesso Marcel, você fala nessa padaria o tempo todo.
— Padaria, padaria? Que ultraje, quando ficar pronta você vai ver uma coisa.
— Tá bom, já entendi. Acredite, pedido feito às estelas, pedido aceito pelas estrelas.
Dali a poucos instantes, outro meteorito cruzou o céu estrelado, tão belo quanto o primeiro.
O casal achou fantástico, até porque estavam em uma posição privilegiada para observar o fenômeno. Parecia um efeito cinematográfico.
Não demorou muito tornaram a aparecer, só que agora eram quatro de uma vez só.
— Que lindo Marcel, parecem fogos no meio da noite! É muito bonito!
— É sim, e que sorte a nossa estarmos exatamente aqui. Que privilégio mesmo.
O festival prosseguia, intenso, belo e brilhante. Mais quatro cruzavam o céu cobrindo mais da metade da abóbada celeste. Um deles era maior que os outros, e foi possível ouvir um som parecido com o deslocamento de um avião a jato.
Os dois estavam maravilhados assistindo aquele inusitado e incomum espetáculo.
Foi assim, tão repentino e inusitado que tudo mudou.
Já não mais se pulverizavam no céu. Caíam no chão oferecendo grande explosão. Uma, duas, três vezes.
Ficaram perplexos assistindo aquilo, testemunhando toda a queda de meteoritos.
Lá embaixo, um quarto meteorito caiu próximo à cidade. Um quinto também. O sexto, a atingiu em cheio. O que começara como um espetáculo, era agora um verdadeiro bombardeio. Os clarões, no céu e em terra, o estrondo, parecendo uma bomba colossal explodindo.
Marcel e Marília já não sabiam mais o que pensar, quanto mais que fazer. Outros três bólidos explodiram nas imediações da cidade. O único que a acertou, foi o suficiente para provocar grande explosão e um princípio de incêndio. De celular na mão, Marília não conseguia fechar a boca.
Tão rápido quanto apareceu, aquilo cessou. A noite se fez escura e estrelada mais uma vez. A lua estava lá como sempre, e os sons assustadores silenciaram de vez.
Romperam com a hipnose inicial e correram até o carro. Haviam se hospedado naquela pequena cidade e precisavam ver o que havia acontecido. Nem que fosse somente para oferecer carona até o hospital mais próximo.
Quando chegaram, o local da queda já estava isolado. Os poucos policiais presentes faziam o que era possível de se fazer com o auxílio de moradores do lugar. Os bombeiros já haviam sido acionados, mas a guarnição estaria vindo de outra cidade.
O esforço era no sentido de iluminar o local do sinistro e procurar encontrar sobreviventes. Logo souberam que um prédio de três andares havia desabado com a força do impacto, assim como pelo menos uma dezena de residências. Três delas foram, sabidamente foram pulverizadas, a ponto de só se reconhecer pequenos pedaços de cerâmica, provavelmente dos telhados, e cacos de cimento, provavelmente do emboço, ou do assentamento dos tijolos das paredes.
A iluminação disponível estava focalizada na área do prédio que desabou. As outras casas estavam sendo atendidas por moradores das imediações, que ainda se refaziam do susto brutal. Felizmente, para eles foi a parte lhes coube. Alguns ainda estavam em estado de choque e eram colocados sobre a calçada, enquanto aguardavam o retorno da única ambulância.
No escuro, só era possível divisar um buraco, uma cratera na área onde o bólido caiu, pulverizando as casas que encontrou pelo caminho. Com lanternas de celular, fosse por quererem ajudar, ou por simples morbidez, algumas pessoas tentavam encontrar alguma coisa na área da cratera. Nada que lembrasse um corpo, ou pedaços, ou objetos, nada. Tudo havia desaparecido.
Marcel, próximo a Marília, apenas observava. Quando viu que havia um grupo de pessoas esperando remoção, se ofereceu para levá-las. Uma enfermeira aposentada, moradora das proximidades, orientava o atendimento primário aos sobreviventes da tragédia.
Pediu ao casal que conduzissem duas pessoas em estado de choque ao centro de pronto atendimento local, que permaneceu funcionando, tão logo se soube do sinistro. Vários moradores passaram a fazer o mesmo.
Os casos mais graves seriam removidos por veículos maiores, enquanto se aguardava o retorno da ambulância, que acabou fazendo diversos atendimentos durante a noite. Era o amor das coletividades em ação. No momento da dor de todos, ele surge.
Enfim, a guarnição de bombeiros chegou com mais pessoal qualificado e equipamentos, além de um cão farejador. Assumiram a condução das ações, e o foco das buscas dirigido para o prédio desabado, foi de grande valia, onde várias pessoas foram resgatadas com vida, com a ajuda dos bombeiros.
Marcel fez várias viagens transportando pessoas em choque e portadores de ferimentos mais leves. Observava o comportamento dos presentes, feridos ou não.
— É castigo de Deus, é castigo de Deus! Da incredulidade, da mentira e da devassidão humana. É sim, castigo de Deus!
Marcel não compreendia aquele entendimento. Que havia uma multidão de incrédulos, colocaria ele próprio no meio. Mas porque deveria ser castigado, se também não sabia o que estava fazendo? E muito menos o que estava acontecendo? A verdade, é que nunca ligara muito, e por isso não sabia de nada.
Aquela confusão toda, parecia ter mexido com a cabeça do jovem casal, particularmente com a de Marcel. Estava silencioso e contrito, sem entender bem por que razão. Apenas estava assim. Marília sentiu sua aflição e segurava sua mão em um gesto de carinho e solidariedade. Velhos amigos dos momentos de angústia, que pareciam se anunciar.
Desceram do carro de volta ao local da queda do meteoro. A maioria dos sobreviventes já havia sido de alguma forma atendida. Ambulâncias das cidades próximas auxiliavam na remoção para os hospitais da região. Era o amor das coletividades se ampliando.
Enquanto Marília observava os trabalhos de remoção de escombros, ainda havia muita gente no local, fosse ajudando ou apenas fofocando. Pelo visto haviam perdido o sono, a despeito do trem não ter caído na casa deles.
Talvez pelo fato de terem cortado o fornecimento de energia nas proximidades, e assim não dava nem para ligar o aquecedor, ou mesmo o ventilador, muito mesmo pelo costume de se consumir energia sem necessidade, já que a noite estava fria.
Marcel sentiu uma vontade forte de se isolar. Afastou-se do burburinho e buscou um ponto, um pouco mais afastado, somente sob a luz das estrelas. Caminhava de cabeça baixa, quando ouviu uma voz suave a chamá-lo.
— Meu filho, você pode me ajudar?
Observou, e uma pequena senhora, parecendo de idade muito avançada e a cabeça de cabelos muito brancos amarrados para trás. Se aproximou acreditando ser uma moradora precisando de auxílio. Ou, quem sabe algum parente seu.
— Olá, como posso ajudar a senhora?
— Basta me ouvir meu filho. Tudo que preciso, é que me ouça.
— Está bem, a senhora pode falar.
Ante a atenção de Marcel a anciã iniciou sua curta exposição.
— Deus é pai, sob qualquer circunstância. Se um pai não dá uma serpente ao seu filho, por que Deus haveria de lhe atirar pedras, ou mesmo meteoritos? Que os homens são incrédulos, isso você já sabe. Mas quem foi que disse que você precisa fazer o mesmo? Onde está escrito que este é o caminho?— Parou por um instante, e depois prosseguiu.
— Se queres realmente servir a Deus, abrace a causa de seu enviado Jesus, que é o Cristo. Conheça a mensagem contida no seu evangelho. Exercite a humildade, a caridade e o respeito por todos, que é o início do amor ao próximo. O tempo agora, caminha rapidamente para o final. Não se demore com indagações e questionamento inúteis. Estude, aprenda a servir, conheça uma vida com Deus. E não deixe de levar aquela moça de lindos olhos com você. Afinal, formam um belo casal. Fez bem em esperar por ela. Agora um precisa do outro, tanto quanto seus filhos precisarão de vocês dois. Não se detenha, siga em frente, no final, tudo dará certo.
Marcel ouvia com grande atenção e curiosidade. Agradeceu pelas palavras da anciã. Lembrou-se de Marília e fez menção de trazê-la até onde se encontrava a idosa. Foi até ela.
— Marília, você precisa conhecer uma pessoa, venha.
Puxou Marília pela mão e levou-a até o local, onde a poucos instantes havia conversado com aquela senhora. Ficou olhando ao redor e não a encontrava mais.
— Não é possível, estava aqui nesse instante. Eu só fui até ali lhe chamar.
— Eu vi você se abaixar. Pensei que estava olhando alguma coisa no chão, só isso.
— Tá, tá bom. Deixa pra lá. A gente conversa depois. Por falar em depois, se não há mais o que fazer aqui, o que acha de voltarmos para o hotel?— Marília concordou.
Abraçou sua musa de todos os dias, de todos os tempos, e seguiram conversando, na direção da pousada onde estavam hospedados. No dia seguinte voltariam para sua cidade de origem.
Junto seguia-os, as impressões de um grande desastre que ceifou dezenas de vidas, a possibilidade e a oferta de uma nova forma de se viver, e uma já quase certeza em seus corações. Morrer não é o fim. Este fora o recado que recebera por parte da anciã, tão gentilmente, na noite da chuva intensa de meteoritos, e da destruição terrível.
FIM