Por: Antonio Mata
Estava tudo até calmo demais para ser verdade. Estranho, já que essa calmaria é costume estar presente. Foi quando aquilo apareceu e se fez notar pela primeira vez.
Uns nem entenderam, outros, um susto só. Aquilo não estava certo. Ficava mexendo com a lógica das coisas. Pescadores encarariam com naturalidade, não fosse tomada em conta a distância. Isso sim, impressionava.
Aliás, Elias estava apenas distraído, apreciando a paisagem debruçado sobre o parapeito da embarcação, quando o bicho lentamente apareceu a poucos metros, exibindo a sua nadadeira dorsal. Aquela que até uma criança reconheceria.
— Esse pai d’égua tá fazendo o que aqui? Já passou de Óbidos faz é tempo sô! Raimundo, corre aqui, vem ver Raimundo!
O outro homem se aproximou para ver o motivo daquela gritaria.
— Era pra você correr Raimundo, o bicho foi embora!
— Que bicho que foi embora?
— Um cação gigante. O bicho era muito grande. Se tivesse dado uma trombada no barco, você ia entender mais fácil!
O Bragança, com 18 metros de comprimento e 4,5 de largura, sacudiria com a pancada, forçando a atenção de todos a bordo. Ainda que não tenha acontecido dessa forma, Elias era marinheiro acostumado com a lida na foz do Amazonas. Sabia o que era um cação e sabia que aquele era descomunal.
As especulações se misturaram nas conversas. Algumas de fato querendo entender o avistamento de Elias e suas possíveis implicações. Algo parecia fora do lugar.
Com cinco minutos de falatório, a zombaria, mentirada de pescador e toda sorte de gozações já havia chegado. Elias teria avistado um ser pré-histórico, grande, cheio de dentes e de chifres. Melhor rir e nem contestar. Quem sabe, mais tarde o bicho não aparece de novo.
— Óbidos já ficou para trás. Da foz até aqui deve dar pelo menos uns 800 km rio acima, ou quase. O bicho gigante está totalmente fora do lugar e de tamanho. Resta saber por quê.
Salvador, piloto do barco, conduzindo 36 pessoas até Parintins, desconfiava da autenticidade da observação de Elias.
— Tem certeza de que você não viu apenas um pirarara? Corre uma história de que existem pirararas gigantes nesse rio.
— Eu sei e não duvido. Aqui e ali alguém pesca um bagre gigante. Não é assim tão incomum. — Elias silenciou por um instante.
— Mas com a nadadeira dorsal bem alta e em forma de vela triangular? Esse foi o bicho que vi. Aliás, era o que dava para ver com clareza no meio dessa água barrenta. Ficou para fora, aí pude ver. Mas afinal de contas, o bicho pode estar apenas perdido. Só isso explicaria estar tão longe do mar. O que seria mais danoso para ele do que para nós.
— Então tá certo. Tomara que fique só nisso e nem dê trabalho. Pra não estragar a festa de ninguém. Esse povo aí atrás só pensa em chegar logo. Ainda faltam uns 100 km. São mais umas poucas horas, a gente chega lá.
O Bragança subia lentamente o rio, com seus passageiros retomando às conversas habituais. Esticados nas redes olhando a paisagem ao ritmo cadenciado do motor.
Não se passaram dez minutos quando um estrondo se deu na popa, a parte traseira da embarcação. Um barulho oco, parecendo uma colisão. O barco tremeu, o que chamou a atenção de todos.
— Betinho, vai ver o que é isso aí atrás! — O tripulante abre uma das passagens que desce ao porão.
Encontra um pequeno filete d’água. No entanto, fácil de se cuidar, podendo ser remendado com facilidade preenchendo a fresta. Já em um porto, receberia atenção mais especializada.
— O barco pode ter batido em um tronco. A pancada fez uma abertura muito pequena. Acho que dá para fazer um pequeno reparo e prosseguir.
Salvador para o barco momentaneamente. Desce para ver o resultado do sinistro e constata a pequena avaria. O que viu não parecia uma batida. Contudo, era muito restrito, sem significar maior risco. Bastaria acionar a bomba d’água.
— Não foi um tronco que fez isso, não parece nem um pouco. Veja se faz o reparo logo Betinho. Vou manter o curso até a cidade e desembarcar todo mundo.
Salvador retorna ao leme, acelera o motor e retoma a viagem. Agora só pensa em chegar. Quando acontece algo que você já sabe do que se trata e o que fazer, isso é uma coisa.
Mas, quando acontece algo que não consta da história dos seus registros de trabalho e de vida, aí muda tudo. A danada da pulga não sai de trás da orelha. Assim prosseguiu Salvador, entre a necessidade de chegar logo e suas próprias incertezas.
Mais cinco ou seis minutos desde que retomara o curso. Elias corre até a cabina de Salvador e aponta para a sua esquerda.
— Olha só aquilo, olha só aquilo!
Salvador olha por sobre os ombros no sol quente de fim de tarde e brilhando por sobre a água branca que esconde tudo. Menos aquela nadadeira dorsal escura e enorme. Uma espécie de torpedo vivo vagando e procurando, sabe Deus o quê.
De repente o bicho se vira na direção do Bragança. Salvador pode ver a nadadeira dorsal se transformar em um único e escuro traço, logo à sua esquerda.
Elias grita.
— Ele vem pra cá!
— Não grita no meu ouvido! Ele vem sim. E ainda tem mais.
— A avaria lá atrás não foi um tronco flutuando. Aquilo era buraco de mordida. Ele estava mordendo o barco e vai fazer isso de novo.
Incontinente, agora é Salvador quem grita.
— Coletes, coloquem seus coletes, rápido! Coloquem rápido!
Foi Betinho quem completou.
— Gente, isso não é brincadeira! Tem um cação enorme querendo morder o barco! Coloquem seus coletes!
Os passageiros ainda se mostravam atônitos com a notícia repentina e em altos brados. Desde quando se morde um barco de 18 metros? Os cérebros estavam ainda tentando processar.
Até que Betinho torna a repetir, já urrando feito bicho.
— Coloquem seus coletes! É urgente! O barco pode afundar a qualquer momento! Rápido com isso gente!
O grito de Betinho quebrou o torpor daquela gente que então corria para encontrar e colocar os coletes salva-vidas, com a ajuda da tripulação. Menos de um minuto, só isso. Este foi o tempo disponível. O torpedo vivo já estava a caminho de se chocar com o Bragança mais uma vez.
Homens e mulheres mal tiveram tempo de ter o colete nas mãos, quando, a mais de 50 km/h o torpedo vivo se chocou novamente com a popa do Bragança.
Uma bocarra de 1,2 metro de largura se abriu desferindo uma mordida de mais de 3 toneladas abaixo da linha d’água. Dessa vez a embarcação, em tábuas de tatajuba, não suportou.
O Bragança foi sacudido meio metro para cima, meio metro para baixo, bruscamente. As pessoas a bordo gritavam, enquanto o convés sumia de seus pés para depois voltar com força, derrubando a todos.
Betinho, tão rápido quanto pôde, foi verificar a dimensão dos danos. Não foi preciso observar muito. Correu até Salvador.
— Comandante, está jorrando água direto! Não dá mais para bombear tudo!
Salvador entendeu perfeitamente o aviso. Atacou potência máxima no Cummins de 325 Hp. Estavam próximos de afundar e perderia o motor a qualquer momento. Guinou a proa para boreste. Procurava se aproximar da beira do rio o máximo possível, antes do afundamento.
Elias e outros passageiros acenavam para dois barcos próximos pedindo ajuda, enquanto Salvador manobrava a embarcação. Procuravam colocar de vez os coletes salva-vidas, aguardando o momento de abandonar o Bragança.
Em quatro minutos, o torpedo vivo foi mais uma vez identificado pela barbatana dorsal à mostra. Se realinhou e se preparou para desferir novo ataque contra a popa da embarcação.
Este ataque selaria de vez o destino do Bragança. Foi quando o barco adernou pela popa, enquanto Salvador dava ordem de abandonar o barco. Os passageiros, brancos de susto, saltavam nas águas barrentas do Amazonas.
O barco finalmente calou seu motor pela última vez, tendo se detido a poucos metros de profundidade e menos de 40 metros da margem. Esta era a distância que separava os náufragos da segurança em terra.
Rapidamente, só a parte superior do barco era visível. Parte do segundo piso e o mastro principal.
Temerosamente, duas outras embarcações buscavam se aproximar.
— Por que não vêm logo? Estão demorando muito! — Dizia Elias.
— É que já entenderam que podem ser atacados também. É arriscado. São todos de madeira.
Salvador deixou de lado as explicações. Lançou-se nas águas puxando passageiros pelo colete até a margem. Betinho e Elias lhes acompanharam, assim como os demais tripulantes.
A despeito do esforço, o torpedo vivo não estava satisfeito em afundar o Bragança. Contornou o barco com a sua barbatana à vista e investiu contra os náufragos.
Salvador deixava um passageiro e voltava para pegar outro. No seu terceiro socorro, foi abocanhado pelo gigante, assim como o passageiro que buscava salvar.
O caboco Salvador, viveu do rio e pelo rio se foi.
O cação gigante desistiu de abocanhar mais pessoas e se deu por satisfeito. Sua barbatana foi vista pela última vez subindo o rio e desapareceu.
As demais embarcações, que continuavam nas proximidades, ainda observando, finalmente puderam se aproximar e concluir o resgate dos sobreviventes.
Ao todo, oito pessoas pereceram nos sucessivos ataques. Pelo menos metade, abocanhadas pelo monstro. Enquanto concluíam o resgate, emitiram um aviso pelo rádio.
O monstro que havia afundado o Bragança, provavelmente estaria no caminho de Parintins. Ainda que não se interessasse pela ilha, o trecho estava abarrotado de barcos e de visitantes para o festival folclórico anual. O monstro avançaria contra os demais ou passaria bem próximo da aglomeração.
Elias, sentado próximo à murada da embarcação que o resgatara, olhava para rio enorme à sua frente. Em pouco mais de hora e meia, outra lenda das águas brancas haveria de surgir.
FIM