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terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

Não foi por fazer rir

                                                             

                                                                                                                                             Foto: William Fitzgibbon

Por: Antonio Mata

Por volta das sete horas da manhã já estavam montando e preparando todo o equipamento. A lona precisava subir logo, os mastros lado a lado, já estavam fincados.

Faltava estender toda a cobertura, montar a arquibancada, picadeiro e áreas de apoio. Ao anoitecer tudo tinha de estar pronto para a primeira seção de espetáculo do circo. Não foi do dia para a noite, não. Amargaram doze anos de resultados pífios, e muita insatisfação no seio da equipe.

Diversos artistas e pessoal de apoio, abandonaram o circo em favor de atividades mais seguras, na hora de se receber pelo trabalho prestado. A exemplo de tantos outros antes deste, estiveram na iminência de fechar tudo. A falência rondava com frequência o circo mambembe.

Até que, não por encanto, mas com muito trabalho, e já com a sua lona, o circo do sertão finalmente acertou a mão, e encontrou o caminho do sucesso.

É claro que ninguém ficou rico, mas deixaram de ser tão pobres. Afinal, as contas da companhia estavam sendo pagas no tempo certo, e o que era inusitado, ficava sempre um dinheiro substancial em caixa.

Lona nova; atrações novas; divulgação e preços acessíveis ao público, levaram muitos a sair da frente da televisão, pelo menos uma vez por ano.

Artistas do trapézio, apoiados em efeitos de luz, era algo pouco conhecido e muito bem recebido nas apresentações.

Malabaristas, atiradores de facas, cuspidores de fogo, sincronizados com luzes e sons estéreo, tirando proveito das variações entre o ambiente claro e o escuro, valorizavam mais as ações desenvolvidas no picadeiro.

Já os tradicionais, dentre os saltimbancos, com a pequena retreta tocando passagens e sons conhecidíssimos, abria o número. Depois então, adentravam na escuridão para os efeitos de som e luz, porém ao seu próprio jeito.

A plateia entendeu e prestigiou o trabalho. O burlesco; o inesperado; o engraçado; fechavam o espetáculo. Os palhaços estavam de volta.

Bem, era ainda meio grosseiro. Mexia com coisas pouco usuais, aquilo que as pessoas não se permitem fazer livremente. Peidos; arrotos; gritos; sons indecifráveis; paradas momentâneas para se contar uma piada seguidas de correrias pelo picadeiro, por conta de alguém que tenha se julgado ofendido.

Não havia uma roda reinventada ali. Aquilo tudo já fazia parte dos espetáculos de circo. É que sincronizado com luzes e sons, e com as falas certas, e movimentos certos, fazia até o ridículo parecer engraçado. Ponto para a criatividade popular. É disso que o circo vive.

As três seções da noite obtiveram bilheterias ótimas. A ponto de se ter de tomar muito cuidado, pois os pagamentos eram feitos em dinheiro vivo, e o caixa precisava ser aliviado, e o dinheiro recolhido para local seguro. Ezequiel, o primeiro palhaço, acompanhava tudo de perto. Bom na pobreza, melhor na riqueza, dinheiro tem quem cuida dele. Entre uma seção e outra não deixava de fazer as verificações parciais, anotar tudo e recolher o valor ao cofre.

Ao sair da bilheteria e se preparar para nova apresentação, viu algo pouco comum em se tratando de um circo, pelo menos daquele. Arnoldo, o segundo palhaço, o seu parceiro de 12 anos de picadeiro, o escada, o armador das brincadeiras. Arnoldo estava lá na frente do circo, com as pessoas ao redor, enquanto era entrevistado pelo repórter de uma emissora de televisão local.

Falante e extrovertido, Arnoldo se saiu bem em sua primeira entrevista, em que basicamente enalteceu a participação dos colegas de circo para que o espetáculo se fizesse satisfatório, ante as expectativas do público.

 Era assim, na realidade Arnoldo era o palhaço querido de todos, comunicativo e bem relacionado com a trupe. Tal habilidade foi muito útil, nos tempos do dinheiro curto, quando a equipe ficava a ponto de se esfacelar por falta de pagamento. Com honestidade, mas com muita persistência, conseguia resolver conflitos que o seu parceiro, na realidade taciturno e ruim para fechar acordos, não conseguia levar adiante.

 O que se deu foi um tanto quanto evidente. Arnoldo tinha a preferência da trupe, quando se fazia necessário resolver algum problema, em detrimento do taciturno Ezequiel.

É lógico que alguém precisava cuidar da boca do cofre. Mas nem sempre isto é sinônimo de prestígio. Ainda que tal comportamento fosse a salva guarda dos tempos mais difíceis, gastando o mínimo possível, de um dinheiro por si só minguado. Honestidade não faz mal a ninguém. Bem que o talento benfazejo de Ezequiel podia ter sido lembrado e enaltecido, afinal na vida tudo passa, e a crise, os anos de dureza, também passaram.

O primeiro palhaço, e sócio no circo tinha facilidade para conceber novas brincadeiras, novas tiradas que dariam origem a novas anedotas,  e com elas, novos números. Era o homem do insight, da lâmpada que acende. Só havia um problema, aquilo que fustigava a alma de Ezequiel e o fazia se sentir um bronco, um tosco, e que de fato tinha seu dedo de verdade.

Ezequiel não sabia transformar sua ideia em uma sequência engraçada para teatro. Era preciso construir uma história curta, com as pontes ligando os elementos da história.

Tudo de forma visível para que a plateia pudesse entender e acompanhar a brincadeira, e ser conduzido ao momento da gargalhada. Tal é a natureza do número dos palhaços.

Era preciso um bom redator para colocar no papel as fases do número, e de um ator escada, para representar todos os passos diante da plateia, até o momento em que entrega o resultado pronto para o primeiro palhaço fazer o fechamento. Ezequiel precisava e dependia da vivacidade e do talento de Arnoldo, o segundo palhaço, e seu sócio.

Estava tudo certo, sem haver nada fora do lugar. É assim que  trabalhava a sinergia da dupla, onde cada um oferecia o seu melhor. Arnoldo não sabia dar a partida, capturar as ideias novas. Já Ezequiel conseguia. Só não sabia desenvolver o número e torná-lo palatável para uma plateia de circo. Já o palhaço escada e redator, sabia.

Nada condenava propriamente o comportamento de Ezequiel, além do fato de ser um sujeito meio azedo, porém entre outros tantos azedumes que existem por aí. Já no recôndito da alma dos homens, nem sempre as coisas se dão do jeito que se imagina, ou se espera.

Dois anos de sucesso se passaram. Os tempos de se contar tostões já pertenciam ao passado. A vida realmente mudou para toda a companhia, desde salários melhores até equipamentos, guarda-roupa e instalações melhores.

Ezequiel era um cão de guarda, cuidando das despesas e guardando as receitas. Era evidente de que, sem dúvida, fora um dos promotores do sucesso. A companhia possuía um administrador confiável.

Arnoldo despontava como o porta-voz, o responsável pela comunicação social da companhia, o autor dos scripts, e o ator escada. A dupla de palhaços fez o circo crescer apoiados em trabalho persistente e talento, dentro e fora do picadeiro.

Estela, uma das duas integrantes das duplas de trapezistas, era a mulher mais bonita da companhia de circo. Não que houvesse um particular interesse da sua parte pelos palhaços, fosse qual fosse. Só que a maré virou, e Arnoldo despontava como um artista de sucesso, tanto no picadeiro, como na vida do grupo. Esta sua capacidade de conduzir a trupe, começava a prender a atenção da jovem e morena Estela. Arnoldo se viu com um cacife que antes, nunca havia lhe ocorrido.

A aproximação dos dois artistas foi se tornando evidente. De início se tratava de meras conversas envolvendo assuntos voltados para o trabalho no circo. Porém, o algo mais foi se estabelecendo com facilidade, o suficiente para assumirem o seu caso com naturalidade.

Outros olhos, igualmente prestavam atenção nos longos cabelos negros, e no corpo jovem e bem torneado de Estela. O trapézio exige força e treinamento físico constante. O corpo da moça respondia, como que submetido à melhor das academias.

Encurralado em sua mente enegrecida, a inveja, o rancor por acreditar ter perdido algo que nunca tivera de fato, pois Estela nunca se interessara por ele. A frustração por se julgar rebaixado, criaram na mente de Ezequiel uma mistura tão pútrida, quanto explosiva. Os processos obsessivos ganhavam forma lentamente, envenenando o primeiro palhaço contra o antigo e honesto amigo.

Onde fora uma única presença espiritual nefasta e constante, com suas ideias sórdidas, habilmente sugeridas e inculcadas na mente doentia, e inclinada a tais pensamentos, o equivocado Ezequiel.  A partir daquele momento, o que existia era algo mais perigoso.

Denso e bruto por sobre o palhaço, e que o deprimia imensamente, havia uma dúzia de entidades praticantes do deboche e que se satisfaziam em transformar os homens em tolos e infelizes fantoches.

Sem nada terem a ver, pró ou contra Ezequiel, pois sequer o palhaço conheciam. Apenas queriam zombar de suas fraquezas.

Tinham elegido o pobre homem, como a bola da vez. Queriam, debochar, queriam rir, humilhar e finalmente destruir o ator, o empresário, o palhaço. Tudo no nível mental, no nível da invigilância dos pensamentos, que têm a capacidade de se tornarem negativos e perigosos, sem que o autor pensante o perceba.

Cuidando de seus afazeres à frente das contas da companhia, Ezequiel notou o aumento repentino nas despesas do amigo Arnoldo. Considerava aquilo uma extravagância, um desperdício, um descaso para com a companhia.

Em minutos Arnoldo chegou para conversar sobre questões do dia a dia, quando foi surpreendido por Ezequiel. Na realidade Ezequiel já estava dominado e envolvido em seu processo obsessivo.

— Vem cá rapaz, quem você pensa que é gastando desse jeito? Está pensando que agora tem dinheiro dando em árvore, está?

— Que é isso Ezequiel? Você sabe que eu não sou esse tipo de pessoa, está me estranhando só agora?

— Você está misturando as coisas, e não está prestando atenção Arnoldo. O circo tem a preferência e não se pode desperdiçar dinheiro.— Vociferou Ezequiel.

— Uai, misturando, como? Peraí, esqueceu que somos sócios? Logo existe o circo, existe você e existe a mim.— Estou certo ou errado? A minha parte posso gastar como eu quiser.

— Como você quiser? Você perdeu o juízo?!

Ezequiel via defeitos em raciocínios evidentes demais. Preservado os recursos da empresa, é lógico que o restante da receita pertence aos sócios. Este é o perigo dos processos obsessivos. Eles adulteram a natureza dos pensamentos da pessoa, sem que esta perceba a incoerência que está abraçando.

— Não é da sua conta Ezequiel, já que o dinheiro é meu. E já que você se meteu com o que não é da sua conta, é só para saber que eu comprei um anel de brilhantes para a Estela. Foi isso que eu fiz. Pensou que eu estava fazendo alguma bobagem?

— Seu idiota, é claro que você fez bobagem! Onde já se viu dar uma joia de verdade para aquela fedelha!

— Lave a sua boca Ezequiel, e com bastante sabão quando falar da Estela. Esse assunto não é da sua conta.

— É mesmo? Então você acha que eu vou ficar aqui trabalhando para você, enquanto você torra dinheiro com aquela ordinária, que a tempos fica se esfregando naqueles trapezistas? Deixe de ser idiota. Estou lhe fazendo um favor!

Foi demais para o sócio.

Arnoldo saltou por cima da mesa, na direção de Ezequiel, sentado em uma cadeira que foi ao chão, lhe desferindo socos seguidas vezes.

— Retire o que você disse, retire! Gritava Arnoldo com Ezequiel dominado sobre o chão.

Cansado de apanhar, Ezequiel desistiu.

— Eu retiro, eu retiro!

Arnoldo se levantou e se afastou para o canto da sala, de cabeça baixa, de costas com as mãos na parede. Estava transtornado com tão perturbador encontro, de velhos companheiros de lutas difíceis na conquista de um mesmo ideal.

— Como você pôde mudar tanto Ezequiel?

Não ouve resposta alguma. Nos cinco ou seis segundos que se seguiram, o que se ouviu foram dois disparos. Feitos à queima roupa, e pelas costas.

Um dos balaços varou o coração do palhaço escada. A construção de quatorze anos ruíra com todos os seus degraus de trabalho e esforços. Arnoldo estava morto.

Acordado pelos estampidos da tragédia que ele próprio havia fomentado, Ezequiel deixou a sala às carreiras e enlouquecido, enquanto outros membros da equipe acorriam ao local, sem se dar conta do que havia acontecido.

O que viram foi o corpo ensanguentado e sem vida de Arnoldo no chão, e a papelada de Ezequiel sobre a mesa. Especulações à parte, vários dos presentes sabiam do envolvimento do palhaço e da trapezista. Ela mesma os havia contado sobre o anel de brilhantes, acompanhado do pedido de casamento.

Os sentimentos invejosos de Ezequiel para com o casal, para os presentes, não passava de mera possibilidade, pois não contara a ninguém. O que prevalecia era a visão do homem taciturno e  tosco, que não soube respeitar a felicidade do outro, brigando não por causa de Estela, mas por causa de dinheiro. Que no final das contas pertencia a Arnoldo.

O desinteresse por aquela figura apagada foi se transformando em sentimento de vingança, em ódio, que alcançava a todos. Entendiam, e com muita clareza, que as estruturas do circo haviam se abalado, até despencar a lona. Todos dependiam daquela dupla.

Cerca de meia dúzia dos mais perturbados, partiram no encalço do primeiro palhaço. Queriam lhe aplicar uma lição, antes de entregá-lo à polícia. Uns conduziam porretes e barras de ferro, pelo menos dois portavam armas de fogo. A diferença entre a captura e o assassinato diminuía rapidamente, no meio daquela turba. Foram mais de duas horas, até encontrarem o palhaço perturbado e enlouquecido.

Já era noite.

Em um terreno baldio, Ezequiel foi encontrado por detrás de um monte de entulho. Localizado, levantou os braços com o revolver na mão direita.

— Eu ia me entregar, eu juro que eu ia me entregar!

— E porque não se entregou palhaço desgraçado! Está satisfeito agora? Hein, está satisfeito?

Cercaram o louco Ezequiel contra o monte de entulho, que permanecia com a arma na mão, voltada para o alto.

— Aquele corpo que ficou lá no chão era do meu amigo! Era do meu amigo! Gritava Ezequiel.

— Larga essa arma palhaço!

— Era meu amigo!

— Larga palhaço!

Ezequiel fez menção de largar a arma, baixando o braço na direção dos demais. O gesto, submetido à tensão e selvageria do momento, foi interpretado como uma reação. O homem estaria prestes a atirar.

Nove disparos romperam a noite, encontrando o palhaço cinco metros à frente.

Recebeu três balaços; foram quatro; foram cinco; ou todos os nove? Que diferença faz? O palhaço estava estirado junto ao entulho. Logo o grupo de justiceiros desapareceu.

O mundo do circo, de Estela e de outros tantos, simplesmente implodiu, ante a tragédia, às mortes e às fugas.

Incapacitados de prosseguir com o espetáculo por conta de tantas ausências, e ante o trauma junto à população da pequena cidade, o restante da trupe, tristemente dispersou, e o brilho do picadeiro se perdeu. Hoje é mera lembrança triste, nas mentes daqueles que lá estavam, e que viveram para contar a história.

                                         

                                             FIM

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