Por: Antonio Mata.
Lugar incomum.
Na primeira vista lhes parecia, ao menos, diferente. Prestando mais atenção, divisavam algo engenhoso. Mesmo que essa engenhosidade toda lhes ocultasse a possibilidade de melhores observações e entendimentos. Isto, sim, era muito ruim.
Esgueiraram-se em meio aos arbustos e às árvores ao redor. Sempre mantendo o silêncio e a ocultação segura. Completaram toda a volta na busca de pontos de observação. Só encontraram um único ponto de acesso.
Entenderam tratar-se de uma formação em círculo. De alguma forma, aquela gente toda vivia ali dentro. A construção era descomunal. Nunca tinham visto algo tão grande.
Não era possível enxergar de perto. Um descampado circular, de uns mil metros de raio. Foi a estimativa que fizeram. Envolvia todo o conjunto. Ainda que avançassem em terreno aberto, o que seria loucura. Encontrariam uma paliçada de 4 metros de altura. Isto, em uma corrida de uns 300 metros adiante. As estacas muito próximas dificultariam a ação de um invasor.
Pelas frestas e para além da paliçada, surgia a construção mais maciça, uns 100 metros depois. De fato, aquilo era desconhecido de sua gente, quanto a aplicação.
Já o material utilizado era barro, denunciado pelo aspecto amarelo avermelhado. Estacas faziam a sustentação, não mais de uma paliçada, mas de uma muralha. No alto dela se podia observar homens que faziam a guarda. Visíveis somente do peito para cima. Estava ficando tudo muito difícil.
Impedidos de observar mais além, ocultaram-se na mata e aguardaram o crepúsculo, de modo a observar de cima de uma árvore, sem chamar a atenção.
Chegado o momento, buscaram seu intento, vislumbrando do alto, pequena parte do que havia lá dentro. Contudo, foi possível notar que o círculo compunha uma única e enorme habitação coletiva. Muito segura e fora do alcance dos olhos alheios.
A habitação teria o teto em torno de uns oito ou nove metros, o que favorecia a circulação do ar. Não era o tipo do lugar de onde as pessoas desejassem se afastar. Havia espaço, comida, segurança e conforto.
Enquanto ainda estava claro, foi possível observar muitas crianças brincando alegremente. Em uma estimativa aproximada, concluíram que o lugar receberia de duas mil a duas mil e quinhentas pessoas.
Não foi possível ver com clareza se a construção principal possuía muitas entradas internamente, voltadas para o espaço central. Porém, foi possível identificar a colheita do milho sendo encaminhada para dentro dessa mesma construção. Assim como mandioca e farinha. Ainda assim, em uma das extremidades deste círculo central, havia espaço suficiente para plantar.
Pela proximidade com o rio, ficava claro que poderiam resistir a um sítio, bastando cavar um poço. Se é que este já não existia internamente. A habitação circular parecia ser portadora de tudo o que necessitassem para sobreviver por longo tempo.
Hubari e Betene, desceram com cautela da árvore e se afastaram da aldeia protegida, que mais parecia uma fortaleza.
Em distância segura, pararam para descansar, enquanto conversavam.
— Se Kayk pretende mesmo atacar esse lugar, terá de fazer isso com grande cuidado. O risco de dar errado parece grande. A governança de Kayk, talvez, não suporte uma derrota. Seria entendido como uma grande humilhação. — Betene prosseguiu com o comentário.
— Exatamente. As outras aldeias caíram. Com esta, não será tão fácil. Tomaram todo o cuidado para não receberem ataques com facilidade. Certamente que irão resistir. Estão preparados para isto. Kayk avançou muito, demonstrando grande coragem. Mas, perdemos muitos dos nossos também. — Hubari concordava com as palavras de Betene.
Hubari, era cunhado de Kayk e sempre o apoiara em suas decisões. A expansão do reino fora rápida. Contudo, entendia que estava na hora de se deter a marcha, enquanto reúnem forças.
Os mais jovens precisavam crescer e aprender a guerrear. Se os quisessem em grande número, nada poderia ser feito em menos de cinco cheias. Tempo mais que suficiente para se estocar alimentos, reunir armas de pedra talhada, enquanto se treinava os mais novos para o combate.
Já Betene, era seu segundo no comando de um grupo de 500 guerreiros. Haviam crescido juntos. Igualmente acreditava que querer avançar mais, poderia ser danoso para sua gente. Quando Hubari decidiu investigar pessoalmente a grande aldeia-fortaleza, imediatamente se apresentou para acompanhá-lo.
Agora, era cientificar Kayk de tudo o que puderam constatar.
A história dos povos da floresta é caprichosa e cheia de singularidades. O fato de se viver nas matas, não significa de jeito nenhum que sejam todos iguais. Não se trata apenas da língua falada. A forma como se vive, aquilo que se considera correto e sua própria visão de mundo, eram próprias.
Kayk era líder de um povo guerreiro e expansionista. O que não percebia é que o avanço sobre pequenos reinos, tornando-os vassalos, ao final das contas, acabava por enfraquecer seu povo como um todo. Intrigas, disputas internas e a sucessão de mentiras, deixavam seu rastro de contendas e desafetos.
Não obstante, há mais vida nas matas do que os homens possam imaginar. Mais interações, interesses e motivações. Os homens vivem em uma floresta viva. Entendam ou não.
Átia, a guardiã.
Se Hubari e Betene, acreditavam serem os únicos naquela operação de batedores, erraram muito feio. A poucos metros de onde estavam no início da missão, logo acima de suas cabeças, já tinham companhia. A floresta possui muitos olhos.
Silenciosa e atenta, mais que eles mesmos. Observadora, mais que eles mesmos. Paciente, contudo, vigorosa e mortal, tanto quanto eles mesmos. Fazia a guarda daquele raio de dez quilômetros a partir daquela árvore. O que deixava a fortaleza que construíram logo adiante, dentro de sua jurisdição.
No início, não escondeu de modo algum aquele desaforo. Aquela invasão bestial de seus domínios. Até andou bicando a cabeça de alguns intrusos que desmatavam parte das terras. Ainda que fosse um esforço em vão. A aldeia-fortaleza não fez a menor questão de parar de crescer.
Era fácil de notar, ao se ver as grandes áreas de cultivo próximas à área circundante do aglomerado humano. Serviriam para alimentar muita gente. Não demoraria muito para Átia compreender o fato de terem deixado um círculo descampado tão grande ao redor da aldeia-fortaleza.
Ao final, acabaram fazendo a maior clareira que ela já tinha visto. Foi quando pôde perceber algo de muito especial. Vez por outra, pacas, insetos dos grandes (voando ou não), morcegos sugadores de sangue, anfíbios próximos e iguanas, apareciam vagando na direção daquela construção estranha, ou cruzando o terreno. Lá onde os homens, mulheres e crianças ficavam.
Sem a mata para protegê-los, foram transformados em iguarias fáceis e sadias. Sem fazer esforço, pois sua árvore estava logo perto da entrada, na frente da cidadela fortificada.
Átia, uma coruja fêmea, daquelas que, em outros tempos mais adiante, chamariam seus descendentes de Rasga-mortalha, também tinha o seu quinhão de razão, mas não seria de modo algum, sua proprietária.
Bastaria prestar atenção nas coisas mais um pouco, para entender por que razão nunca haviam disparado uma daquelas setas pontiagudas na sua direção.
Não seria difícil para Átia entender que, por alguma razão, aqueles homens lá embaixo preferiam que ela caçasse seus bichinhos em paz. Ao invés de vê-los circulando dentro da aldeia. Principalmente insetos e morcegos.
Proteger e compartilhar os espaços com Átia, parecia ser a coisa mais certa para se fazer. Logo mostraria estarem certos. Bem mais do que inicialmente, poderiam imaginar.
É que homens e bichos se entendem, mesmo que um dos lados, de repente, nem preste atenção em tudo o que acontece. Apesar disso, existiam coisas que só Átia podia ver e ouvir com muita clareza. Aqueles dois ali embaixo, estavam entre elas.
Era acostumada a focalizar serelepes escondidos entre arbustos e no meio da mata. Um homem, incomparavelmente maior, não é algo que se esconda fácil. Não debaixo do bico de Atia.
O que isto poderia significar para Atia, a guardiã daquele lado da floresta, para a aldeia-fortaleza, tão minuciosamente preparada e para aqueles dois espiões, recolhendo informações e tão interessados em não aparecer?
Wuy Jugu Kayk, guerreiro e rei.
Era tempo de muita instabilidade, onde os conflitos armados se sucediam. A cidadela fortificada era a melhor prova de como se chegou a tal decisão. Em paralelo com os conflitos entre os homens, a natureza definia novos cenários.
Os mais antigos já contavam que em dado momento, começou a chover intensamente. Um aguaceiro cada vez maior. Os grandes cerrados estavam recebendo cada vez mais chuvas.
As florestas, que antes margeavam os rios, estavam se deslocando e ocupavam os espaços terra adentro. Sabiam que havia uma ligação com a chuva.
Também no início as chuvas pareciam inundar os rios e as terras próximas. Só muito tempo depois, entendeu-se que estava ocorrendo uma mudança dentro da outra. Um período de chuvas mais intensas se definia.
A elevação das águas dos rios passou a ocorrer em separado. De modo independente das chuvas e em outro período. A paisagem estava mudando ao sabor das chuvas e dos ventos. Ao redor tudo se cobria de verde. A floresta que anda, diziam os mais antigos. Aqueles que primeiro as viram chegar.
De qualquer modo, seja por força das chuvas, seja pela elevação das águas, o fato é que os sítios das cidades e aldeias próximas aos rios maiores, começaram a submergir.
O lugar afundou para não mais voltar. Como se já tivesse cumprido seu papel. O madeirame era recolhido e faziam outra em ponto mais elevado. Já antevendo que, se fosse preciso, se mudariam de novo. Prevalecia uma certa fala, segundo a qual o rio não deixa rastro. Apenas encobria tudo e levava o pouco que ficou, jusante abaixo.
Assim, muita gente teve que se afastar dos rios e se acomodar junto a rios menores. Pois não sabiam quando aquilo iria parar. Muitos desistiram de fazer grandes construções, mesmo em pau a pique.
A fragmentação da população e o abandono de aparatos defensivos mais sólidos acabou comprometendo a segurança. Manteve-se apenas as frágeis paliçadas feitas com estacas. Facilitando a ambição de possíveis invasores. O que por vez, pode ter chamado a atenção e facilitado a vida de Wuy Kayk.
Os rios, igualmente se fixavam aos poucos. Formavam-se novos canais, sendo alguns de vida muito curta. Enquanto que a floresta prosseguia, cobrindo quase tudo. Era assustador para uns, mais medrosos. Porém, encantador para outros. Os antigos diziam ainda que as grandes caças, os animais gigantes, também estavam desaparecendo.
Os animais gigantes se tornaram inábeis para viver nas matas? Foram caçados mais facilmente? A onça é um animal de tocaia e sobreviveu à progressão e adensamento das matas.
Por que o mesmo não se deu com o felino de grandes presas, que acabou por desaparecer? Não soube fugir floresta adentro? Permaneceu nos limites entre a floresta e a savana, próximo dos animais herbívoros, onde foi mais facilmente caçado?
Nas noites, à beira da fogueira, perguntavam como seria dali para frente. O mundo que conheciam parecia encolher. Enquanto que uma nova forma de se viver, mais envolta pelas florestas, avançava exigindo novos conhecimentos.
Havia nisso, um sentido de inadequação. Tanto os mais velhos como muitos dos mais jovens cresceram vendo o horizonte adiante. Essa dimensão espacial da vida fazia parte da visão de mundo até então. Contudo, aquela forma de se ver o mundo estava acabando e rapidamente. Muitos deles se sentiam verdadeiramente presos.
Foi assim, pela necessidade de se enxergar além e conhecer o que estava adiante, que diversos homens abandonaram suas lembranças do horizonte e adentraram os grandes rios em grandes canoas. O ato de se explorar, íntimo da natureza humana, estava deixando de ser por terra.
Foi neste cenário mutante e multifacetado, entre constatações, iniciativas, dúvidas e indecisões que nasceu Wuy Kayk, o rei dos Konágua. As disputas humanas pelo poder já existiam. A natureza trouxe, não um fato novo, mas diversos. Uma série de mudanças que alterava a visão de poder existente até então.
A dificuldade de alguns povos em se adaptar, significou uma relativa fragilidade, frente aos demais. O sentido de expansão e controle do território, também estava mudando. O jovem Kayk entendeu tudo isso e julgou ter chegado o seu grande momento, ao qual dedicaria os próximos trinta anos de sua vida.
Acompanhara os guerreiros de seu tempo, grupo que passou a integrar aos 15 anos, por conta de suas habilidades. e compreendia bem as táticas utilizadas, tanto em caçadas como em combate. O guerreiro costumava ter sido antes um caçador, por razões sabidas. A diferença está na natureza do alvo.
Astúcia, coragem e força eram fundamentais para que um bom caçador pudesse triunfar. Com o guerreiro não era diferente. Kayk percebeu que se quisesse triunfar na selva, que crescia cada vez mais, teria de conhecê-la a fundo.
Entendeu que seria fundamental, primeiramente, assegurar a sobrevivência de seus próprios guerreiros. Saber identificar fontes de alimentos para grupos de guerreiros.
Assegurar conhecimentos úteis aos que tivessem que permanecer períodos mais extensos em operação e distantes de qualquer tipo de apoio. Compreendeu o valor de saber localizar fontes de água.
Feito isso, atendidas as necessidades de sobrevivência, então pensar no combate. E ao fazê-lo, tirar proveito de tudo que a floresta pudesse lhe oferecer. Desde venenos até tipos de armas para o combate afastado e de emboscada. Saber transformar a floresta em um ambiente hostil para quem ataca e uma vantagem para quem defende.
Desgastando o inimigo gradativamente, o encaminharia ao palco de sua derrota, onde se encontraria enfraquecido e cercado. Os urros, gritos de guerra e brados de vitória, somente surgiriam no final. Toda a ação seria realizada em absoluto silêncio. Seus guerreiros seriam mestres na arte da ocultação e dispersão. Somente se reunindo para o golpe final.
Confiante nas qualidades mortais de seus homens conduziu a empreitada da construção e expansão de seu reino. Se a floresta crescia ao longo dos anos, ela apenas serviria para ampliar os domínios de Kayk.
Sucessivas extensões territoriais eram anexadas ao reino. Pacificamente, sempre que fosse possível. Pela invasão do terreno alheio e destruição de suas aldeias e cidades, quando fosse necessário.
Outra observação não menos importante, foi perceber logo que os deslocamentos rápidos somente seriam viáveis pelos rios e não mais por terra. A guarda e controle da foz dos rios, lhe oferecia uma vantagem adicional na dinâmica da guerra.
Assim, idealizou postos de observação. Nestes, os sinais de fumaça passaram a ter significado, alertando quanto a presenças estranhas. Muitas vezes estes postos precisavam ser elevados com estacas por conta da cobertura da floresta. Estudou a nova hidrografia que estava ainda em processo de definição e com ela, os novos canais.
Da observação da natureza, idealizou o furo e o canal artificiais, no intuito de encurtar distâncias. Primeiro no interesse da comunicação e deslocamento de suas tropas. A ideia de aproximação das aldeias não foi o propósito original e seu uso como tal, somente viria mais tarde.
Realizava-se o levantamento dos canais fluviais nas proximidades da cidade a ser invadida. Feito isto identificava-se onde se poderia colocar furos, escondidos na mata, favorecendo a surpresa e a velocidade nos ataques vindos de lados inesperados.
Estes furos e canais eram estreitos e rasos. O que facilitava a construção. Apenas o suficiente para deslizar suas canoas rapidamente, enquanto ficavam ocultos na vegetação. Assim, dois mil guerreiros armados, por vez, podiam ser mobilizados rapidamente e em silêncio.
A eficiência de seu comando aumentava. O inimigo se veria diante de guerreiros eficientes na selva e rápidos nos rios. Viram, boquiabertos, as primeiras canoas para até 60 guerreiros armados, cruzarem as águas.
Este era o aspecto principal. Wuy Kayk dependia da coragem e bravura de seus guerreiros.
Diversos povos foram conquistados dessa forma. E maiores contingentes foram treinados para dar continuidade ao seu ambicioso projeto, cada vez mais expansionista.
Em uma região de povos fragmentados e fracamente unidos a partir de laços consanguíneos. As ideias não circulavam. Outro fator que dificultava estes relacionamentos era a língua. A ausência de unidade linguística dificultava as aproximações. Um guardava grande desconfiança do outro.
O povo no território vizinho só tomava conhecimento do que estava acontecendo, quando assistiam a fuga de grupos de homens, mulheres e crianças, tentando escapar do invasor.
De início, estes fugitivos eram tratados como invasores. Isto perdurou até entenderem que apenas seriam o próximo alvo do projeto expansionista de unificação pela força. A cola social mais utilizada pela humanidade.
Este era Wuy Jugu Kayk. Este era o seu mundo, mutante, violento e selvagemente belo. A transformação climática fazia crescer as florestas pelo maior volume de chuvas.
A umidade e a temperatura da região subiam gradativamente. O frio, tão comum nos cerrados, expostos aos ventos frios e secos vindos do oceano, estava desaparecendo. Os ventos agora traziam muita chuva.
Para Kayk isto só teria importância, desde que pudesse ser utilizado como arma contra os demais. Ainda perdidos, ante às mudanças de seu mundo, o que os afastava da cultura ancestral e os enfraquecia. O guerreiro rei foi o primeiro a entender.
A cidadela circular, fortificada, em uma campina no meio da floresta, era a resposta a este clima de medo e apreensão.
Dois amigos
Construída por causa disso, motivado pelo medo e a insegurança generalizada, era de se imaginar que o pensamento vigente na cidadela, apesar da aparente tranquilidade, fosse, de tempos em tempos, dominado por tais sentimentos nocivos. As nuvens mais negras pareciam chegar.
A preocupação em manter estoques de víveres, água e armamentos em ordem era constante. A vigilância ao redor do perímetro defensivo, a partir das amuradas, algo contínuo.
Atento a toda e qualquer mudança, Apoena mantinha todos os sentidos em alerta, analisando os sinais que vinham da floresta. Assim como Wuy Kayk, sabia que não podia desprezá-la e sim, aprender com a grande e andante floresta.
— A floresta que anda ficou em silêncio, Ibiã. — Era Apoena expondo suas apreensões.
— Ela para de fazer barulho Apoena. De tempos em tempos, ela para e fica em silêncio.
— Eu sei, mas não é isso. Está fazendo um silêncio contínuo, de muito tempo. Também não é a primeira vez. Ontem aconteceu do mesmo jeito. Aí fora tem coisa.
— Vai querer averiguar?
— Quero sim. Vamos lá fora saber o que é, antes do primeiro raio de sol aparecer.
Apuena tinha profundo respeito pelos mais antigos. Estes lhes falavam das antigas e grandes cidades feitas de pedras. “Como poderia ser uma cidade construída com pedras?” Pensava Apoena. Nunca tinha visto tal coisa.
Nestas conversas com os anciãos, uns diziam que as cidades de pedra foram abandonadas, por conta da floresta que anda. As cidades acabaram engolidas pela floresta.
Outros diziam que isto só foi possível, pois as cidades teriam sido despovoadas por conta das guerras, o que facilitou com que a floresta ocultasse tudo.
Diziam saber o caminho até tais cidades e que já teriam ido até lá, na companhia de seus irmãos. Só que tal coisa perdeu propósito. Já não havia mais nada lá. Assim, nunca mais se retornou e a mata engoliu os caminhos.
Explicavam os mais antigos que tais conhecimentos se perderam ao longo dos anos e das sucessivas guerras que acabaram matando pessoas detentoras de muitos conhecimentos. Os que ficaram se viram empobrecidos pela falta de quem lhes contasse, lhes ensinasse como fazer.
Também falavam dos homens que conheciam sinais que identificavam ideias. Estes sinais eram pintados ou talhados na rocha. Apoena ainda jovem pôde ver algumas inscrições. Infelizmente, já não havia mais quem soubesse compreender o significado daqueles sinais.
Simplesmente foram emudecidos.
O fim da visão dos horizontes, aliado ao rompimento brusco e repentino com os antepassados, por conta da guerra, fez surgir um sentimento de orfandade. O desenraizamento e a depressão tiravam de muitos homens e mulheres a vontade de viver.
Os anciãos ainda falavam de um mundo que havia sido melhor e maior, mas a ganância, a sede de poder, a vontade de sobrepujar os demais fez com que tudo ruísse. Sem que pudessem perceber o veneno com o qual estavam lidando.
Entendeu Apoena que sua cidadela circular, poderia ser apenas uma sombra daquilo que um dia existiu. Queria e precisava salvá-la do holocausto da guerra que estava consumindo os povos. Passou a temer que um dia o povo Umbirá, também acabasse, sem que ninguém sequer soubesse que um dia ele existiu.
Os sentimentos e pensamentos o levavam para além de seu tempo e sussurravam em seu ouvido, coisas tão lamentáveis que Apoena fazia de conta não ouvir. No fundo, em seu íntimo tristonho, já havia entendido.
Tchuwai veio para ficar
Impensável, acreditar que poderia ficar ali, sozinha por muito tempo. Uma clareira enorme, a verdadeira campina grande, haveria de atrair concorrência. Afinal, aquela bicharada passeando na campina era tentadora.
Atia não gostou nem um pouco, mas foi obrigada a ceder a uma presença, que não lhe era hostil. Mas, que nem por isso era bem vinda. Não para Atia.
— Se você pensa que vai petiscar na minha campina, vou logo avisando que as pacas são todas minhas. — Atia gostava de deixar tudo bem às claras.
— Da minha parte, isso não é motivo de confusão. Não estou interessada nas suas pacas. — Tchuwai procurava tranquilizar as coisas e não entrar em conflito aberto com Atia. Já que ela achou aquele filão primeiro.
— Não está pensando em caçar meus iguanas, não é?
— Não, não estou interessada em seus iguanas.
— Minhas baratas? Meus morcegos? Não vá tocar em meus grilos! Nem em meus sapos ou rãs!
Tchuwai olhava para Atia sem piscar.
— Não vou fazer nada disso. Vou viver de brisa e de muito, muito vento. Mal conseguirei voar comendo tanto.
Atia, também sem piscar, encarava a intrujona. Uma ameaça real aos seus propósitos territoriais.
— Além de vento, o que mais pretende comer?
— Estava observando aquelas aves soltas. Lá embaixo, dentro daquele terreiro. Me parecem o suficiente.
— E se jogarem aquelas setas em você?
— Vou esperar escurecer.
— Está bem, pode ficar com todas elas. Não voam mesmo.
Aves de quintal, as galinhas. Recém chegadas à América. Tão novas naquelas bandas quanto aquela aldeia fortificada. De onde vieram, ninguém fazia ideia. Nem elas sabiam dizer.
— Não estou gostando de você, aqui tão perto. — Insistia Atia.
— Já disse que não vou mexer nos seus bichos.
— Mesmo assim, acho melhor você passar para o outro lado da campina. Assim ninguém briga.
— Pois bem, está então combinado!
Tchuwai dirigiu-se à extremidade oposta da cidadela, se acomodando em uma das árvores. Bastava sobrevoar o campo para divisar suas recém-chegadas galinhas. Se os habitantes lá embaixo, iriam gostar, isso é outra história.
Encontro de batedores
Ao entrar na floresta, o silêncio agora, tanto poderia ser por conta de si mesmos, como por conta de eventuais intrusos. As buscas por sinais de presença humana cobriram toda a manhã, desde o nascer do sol. Até que as indicações começaram a surgir. Apoena também sabia ler a floresta.
A terra pisada com cuidado; o esforço para apagar rastros; o zigue-zague no chão; o galho fino quebrado onde não costuma quebrar e o lado para onde quebrou.
O cheiro de fezes e urina. Mesmo que se enterre, é diferente dos excrementos de um felino. O cipó que contém água e foi cortado. Na mata, só um animal usa faca. Se um sabe esconder, o outro tem que saber encontrar.
Para além da experiência com as coisas da floresta, existe ainda o trato com as coisas do espírito. A vida pulula por entre as matas, cerrados e campinas. Os espíritos estão em todos os lugares.
Quem é o invasor? Quem é o agressor? Os espíritos do lugar não serão neutros. Os espíritos ancestrais, sempre presentes e sempre atuantes, acompanham seus descendentes. A intuição, as visões e as vozes. Os sonhos repletos de predições e avisos, serão ativados para receberem seus sinais.
De pista em pista. De sinal em sinal, Apoena e Ibiã encontraram os espiões. Estes, descobertos a menos de dois quilômetros da cidadela fortificada, se puseram em fuga. São então perseguidos mata adentro.
Esclarecedores não fogem ao combate por covardia, pois o que importa são as informações coletadas. A despeito da corrida de Apoena e Ibiã no encalço dos intrusos, não conseguem se aproximar e entrar em combate com os dois homens, que se separam tomando rumo ignorado.
Contudo estiveram próximos o suficiente para saberem que eram guerreiros de Wuy Kayk, o rei Konágua. Já não havia mais dúvidas. O inevitável estava prestes a acontecer. Retornaram e foram alertar e preparar sua gente, assim como toda a cidadela para o sítio e o confronto de morte.
Outra dupla de observadores começou a estranhar tudo.
Estava tudo tão bem.
— Essa gente fazendo volta lá embaixo só podia dar nisso. Não ia dar certo! Não ia não! — Atia estava ficando irritada com aquele jogo de esconde-esconde. Primeiro, a presença de dois desconhecidos sempre escondidos, depois a chegada de homens vindos do meio da casa em círculo.
— Ora, qual o motivo da sua amolação, vizinha? Os homens gostam de se enfrentar. É para saber quem é o mais forte.
Atia olhou com cara de poucos amigos.
— Antes de mais nada, quem chamou você aqui, desse lado da campina? Você não é do lado de lá?
— Não estou aqui, eu estou lá. — Tchuwai bateu asas e retornou para seu lado da campina.
Atia analisava a situação dos homens lá embaixo. Ao os ver correndo uns atrás dos outros, entendeu que logo, logo, poderia haver briga mais séria.
Chegou à conclusão de que não queria que perturbassem a gente da aldeia circular. Sua decisão teria papel importante no desenrolar dos embates e na presença dos antepassados, do outro lado da vida. Na verdade, Atia fora induzida por habilidoso espírito de um pajé, a participar da defesa da cidadela, atuando como pássaro de alerta e assombro. O mesmo papel que seria desempenhado por Tchuwai.
Para Atia, foi o fim da neutralidade. Os conluios silenciosos da floresta que vive e traz a vida, estavam em franco andamento. Logo, muitos perceberiam com tal intensidade e proximidade os episódios que aproximam os dois lados da vida.
Na aldeia fortificada os preparativos assumiram o caráter de urgência. O ataque poderia se dar a qualquer momento. Vasos e caçambas com água, além de mantas de algodão para serem umedecidas, foram colocados em pontos estratégicos, ao redor de toda cidadela.
Assim como escadas e cavaletes para alcançar as partes mais altas que pudessem estar em chamas. Os estoques de alimentos foram ampliados e reforçados.
Também aumentam a confecção de flechas, pedras recolhidas do rio para serem arremessadas com fundas contra os invasores e machados de pedra. Apuena e Ibiã, sempre muito atentos, acompanhavam tudo de perto.
Era apenas uma questão de tempo.
Quem chamou tanta gente?
Pensativa, Atia botou para andar de um lado para outro do galho, enquanto pensava tão alto que até na cidadela seria ouvida.
— Desde que aqueles homens surgiram na mata, bisbilhotando tudo, começou um frenesi, uma correria. Uma confusão seguida de nervosismo. A paz desse povo parece que foi embora. — Atia parou por um instante.
— Se tornarem a voltar, vou dar um aviso só. As pacas estão assustadas e só vivem escondidas. Nem calango quer aparecer na campina. Daqui a pouco vou estar vivendo só de grilos e gafanhotos. Vou piar por cima dessa gente. Apareçam de novo, que eles vão ver.
Tchuwai, alarmada, entrou a falar.
— Não é só você, não. Também não vejo mais as pacas. Nem de dia, quanto mais à noite. Vou piar pra cima dessa gente também.
— Não chamei você na conversa. Aliás, estava falando sozinha. Comigo mesma e não lhe chamei. Não me lembro de ter lhe chamado até aqui.
— Não importa. Não vou esperar que venham se meter na campina e espantar a caça mais ainda. Não se esquece que eu fico do outro lado. Lá também está ficando ruim, tanto quanto aqui. Não vou ficar esperando piorar.
— Ora vizinha, você mudou de ideia? O que me diz das galinhas? Quem mandou você caçar as pacas?
Tchuwai foi obrigada a aceitar o óbvio.
— Não pude continuar. Bastou pegar umas duas ou três galinhas e aquelas varetas pontudas começaram a aparecer por onde eu passava. Aquilo pontudo machuca sabia? Também terei de enfrentar o invasor ou morrer de fome.
Atia teve de reconhecer que Tchuwai tinha razão. Afinal, se a ideia era dar um recado severo para os invasores, antes duas corujas do que uma só. Já que não sabia o que o futuro poderia lhe trazer. A vida na campina estava sob risco.
A ilusão da agressão e da guerra.
Antes dos primeiros raios de sol, Atia e Tchuwai avistaram grande número de homens se aproximando da campina, ainda envoltos pelas sombras da floresta.
— Não vou esperar mais. Tchuwai, avise o povo da aldeia circular que o invasor chegou. Vou dar outro aviso para estes aqui do lado de cá da mata.
Rapidamente Tchuwai sobrevoa a cidadela com seu piado aterrador e repetitivo. Das crianças aos velhos e adultos, acordou a todos. Entenderam que havia algo de anormal.
Ledo engano acreditar que o pio da Rasga Mortalha tem a ver com a herança medieval dos europeus. Muito antes de colocarem os pés na América, as corujas já piavam para assustar os homens. Porém, só faziam isso na hora certa.
Na floresta, Atia sobrevoava piando em alto e bom som, desconcertando os invasores. A surpresa já havia se perdido. Todos agora sabiam o exato momento da chegada do invasor. Entretanto, não era só isso.
Hubari se aproxima de Kayk.
— Esse bicho passou por cima das cabeças dos guerreiros. Esse piado é um mau presságio Kayk. Os homens estão assustados. Considere atacar em outro dia. Dá azar insistir e perder tudo.
O rei guerreiro encara Hubari com ar de desprezo.
— Matem a coruja.
— O que foi que disse Kayk?
— Isso que você ouviu. Matem a maldita coruja.
Não pode fazer isso. Só vai piorar as coisas.
— Eu mesmo vou cuidar disso.
De frente para os homens, Kayk gritou:
— Disparem suas flechas contra essa ave estúpida! Deixem estas superstições de lado. Matem esse bicho!
Timidamente os homens buscavam Atia por entre as árvores, a despeito da pouca luz.
Nisso Tchuwai retorna de sua missão sobre a cidadela e cruza o caminho dos guerreiros piando e batendo as asas. Mais alvos no ar, mais flechas.
Barulhenta e de asas abertas, expunha sua silhueta aos arqueiros lá embaixo, à pouca distância. Resoluta e corajosa, Tchuwai prossegue cumprindo sutil intuição oferecida pelos espíritos protetores do povo Umbirá. Prosseguia piando e atormentando os guerreiros que buscavam matá-la.
Fenômeno que não acaba
A vida é um fenômeno infindável. Os espíritos sobrevivem e apenas mudam sua condição vibratória, deixando de lado os corpos físicos desprovidos de vida.
Se reúnem, segundo seus interesses, entendimentos e inclinações. Os espíritos dos antepassados do povo Umbirá, há muito se preocupavam com a expansão do reino Konágua e buscavam formas de impedir a servidão e mesmo o extermínio de sua gente, antes que fosse tarde.
Pajés e curandeiros, os médiuns das matas, e aqueles mais espiritualizados, e por isso mesmo, mais próximos do Criador, buscavam no amparo de espíritos de grande elevação, respostas às dificuldades enfrentadas pelos Umbirá no violento e ainda muito desconhecido, mundo tridimensional.
Puderam então compreender que o ciclo de guerras ainda estava longe do fim. As mortes violentas ainda se fariam necessárias, por conta da barbárie ainda reinante ente eles próprios, ainda pouco sujeitos a sentimentos mais nobres.
Diferente do que se possa imaginar, a paz é uma conquista da alma. Nasce do cultivo de novas ideias e sentimentos. Nem Umbirá, nem Konágua possuíam tal entendimento. Bastaria que um se sentisse mais forte, para atentar contra o outro povo.
Atendendo os anseios destes homens mais espiritualizados, lhes ensinaram a atrair e a trabalhar muito próximos dos animais, fosse no cerrado que se recolhia, fosse na expansão da floresta. Aprenderam a compreender a floresta que anda.
Esclarecidos e municiados com novos conhecimentos passaram a intervir, influenciar e intuir seus irmãos e animais no mundo físico. Eles próprios passaram a orientar seus pares menos esclarecidos a como intervir na vida física. Ora atrasando o inimigo, ora o assustando e criando confusão.
Aparições se sucediam, indicando a presença de olheiros e de grupos de olheiros. Flechas fluídicas eram disparadas contra os invasores, que, contudo, recebiam o impacto vibratório, se sentindo feridos e doentes. Eram as assombrações da mata.
Os Konágua contavam uns aos outros as histórias dos gritos, assobios, sons que lembravam pássaros. O repentino tropel de um bando de queixadas, mas que nunca chegavam.
Entretanto, o tropel não se detinha, para o terror dos homens. Quanto as vozes, em meio a escuridão, apavoravam o mais tenaz e corajoso dos guerreiros.
Enquanto isso, espíritos elevados, dedicados a impedir o extermínio prematuro dos Umbirá, impediam que defensores dos Konágua, do outro lado da vida, incentivassem seus guerreiros e os empurrassem com mais decisão para destruir a cidadela. Sucessivos cordões vibracionais detinham sua influência.
A floresta que anda tornou-se o domínio destas aparições e efeitos, em defesa dos Umbirá em uma de suas últimas cidadelas. As narrativas do tempo precisavam prosseguir.
Então, o mais forte
O planeio da rasga mortalha por sobre os guerreiros trazia a afirmação de tudo o que pudessem ter ouvido nos tempos que antecederam aquela empreita, de uma nova invasão.
As flechas zuniam por entre as penas de Tchuwai, até que finalmente conseguiram lhe acertar. Com uma flecha atravessada no peito, Tchuwai é arremessada ao chão.
A força do impacto a lhe perfurar o peito e a queda brusca, ajudam a lhe rasgar os órgãos internos. Foi tudo muito rápido. A valente Tchuwai foi a primeira baixa do ataque promovido por Wuy Kayk. Todavia, o povo Umbirá estava de pé, alerta e pronto para o combate. A missão havia sido cumprida.
Parte dos homens se assustaram com o feito e com o mal augúrio que ele poderia trazer para os atacantes. A rasga-mortalha incutia medo e apreensão. Os espíritos da floresta poderiam não gostar. Isso não era bom. Muito pior, era perigoso.
— Todos adiante, disparem suas flechas em quem tentar fugir! Não quero ninguém recuando! Vamos vencer mais uma vez!
Os homens se entreolharam e decidiram seguir avante, porém, sem o ímpeto e a confiança combativa de outros tempos. Os limites espirituais daquela gente estavam sendo desafiados.
Wuy Kayk, guerreiro e rei, estava se tornando cada vez mais cruel e cego. Parecia não enxergar a dimensão do quadro que ele mesmo criara.
Os guerreiros mais próximos olhavam para Hubari, esperando que dissesse alguma coisa. Que trouxesse Kayk à razão. Hubari, pensativo, permanecia em silêncio.
No limite entre a campina e a floresta, ao comando de Wuy Kayk, começa o ataque. Duas fileiras de arqueiros com flechas incendiárias são postas adiante. Mil arqueiros lançam suas flechas contra a cidadela. O ataque furtivo visa esconder a ação principal e distrair os defensores.
No interior da construção, o sistema de proteção era posto em acionamento, com centenas de vasos de barro e cabaças cheias de água, além de abafadores feitos de palha para bater nos muitos focos de incêndio.
O trabalho ficou aos cuidados dos meninos maiores e mais ágeis, orientados por um grupo de homens de mais idade, capazes de participar da defesa interna, mas não de combater diretamente.
Os meninos subiam corajosamente no madeirame da cobertura, conduzindo cabaças com água. O propósito não era salvar a cobertura de palha. Esta podia até cair e o incêndio apagado em terra. O que se pretendia era poupar o madeirame, para que a parte estrutural não se perdesse.
Sucessivamente, flechas incandescentes eram lançadas. Pelo esforço de subir e descer as equipes internas foram perdendo eficiência. Sem que, contudo, o madeirame incendiasse.
Como esperado, a palha em chamas da cobertura foi posta abaixo, sendo apagada pelas mulheres e idosos. Sobreveio o cansaço, mas a ação defensiva havia sido cumprida.
Ainda que vários meninos tenham perdido suas vidas. Fosse por conta da chuva de flechas, fosse pela queda do alto da cobertura. Vidas se perderam, entretanto, a cidadela prosseguia.
A primeira leva de guerreiros entra em formação. Cinco fileiras de 400 guerreiros cada. Mais guerreiros do que os defensores poderiam reunir. Avançam cruzando a campina que os separa da primeira paliçada. O primeiro obstáculo para os invasores.
Como esperado, se amontoam, procurando escalar a paliçada, onde são detidos por 300 arqueiros disparando em linha reta, a menos de 40 metros, na face interna da paliçada.
Na cadência de 12 flechas por minuto, disparavam 3600 flechas. Quando os arqueiros de Kayk disparavam, mediante comando, os arqueiros de defesa da cidadela saltavam para trás.
Caíam em uma trincheira de apenas 50 centímetros de largura e profundas o suficiente para proteger o corpo dos defensores. Isto, já que os atacantes só disparavam suas flechas em ângulo raso.
Uma casca de árvore completava a rápida defesa. Terminada a chuva de flechas, retornavam à posição anterior recomeçando os disparos. O intervalo de tempo em que permaneciam ocultos, era coberto por uma das surpresas da cidadela.
Uma guarnição feminina manuseava com grande eficiência o arco e a flecha, fazendo o tiro em ângulo agudo. Algo desconhecido de Kayk e de seus homens.
Disparando da área interna por sobre a habitação circular, a muralha de adobe e alcançando a paliçada, a combinação entre os grupos de arqueiros mostrou-se mortal.
Disparavam de modo que as flechas caíam na ortogonal com o solo. Atingiam a linha da paliçada, com os guerreiros de Kayk totalmente desprotegidos. Cabeças, ombros e braços expostos.
Se os arqueiros das áreas externas fustigavam os invasores, a mulheres completavam o serviço com enorme precisão. A primeira investida, o ataque furtivo, é frustrado. A segunda carga também foi rechaçada.
Somente na terceira leva, já do ataque principal, com um número maior de homens e em outra posição, os atacantes conseguiram de fato, escalar a paliçada.
Faltava ainda cruzar um foço e a muralha de adobe.
Kayk prosseguia enviando sucessivas levas de atacantes para sustentar o impacto do ataque principal, a exemplo do que fizera tantas vezes antes. Porém, algo já não estava dando certo. As defesas se mostravam poderosas.
Trabalhavam em conjunto. A população local trabalhava freneticamente para apoiar os defensores, evitando incêndios e recolhendo os feridos para dentro da cidadela.
A dificuldade em subir e sair do fosso, determinou o segundo ponto de concentração de flechas defensivas disparadas pelas mulheres. O fosso estreito, logo ficou coberto de corpos.
O avanço sobre a muralha se fez custoso, com milhares de homens se perdendo na escalada do muro. Na escalada, os invasores perdem Betene, vitimado pela chuva de flechas. Lideranças valorosas davam suas vidas na tentativa de se conduzir seus homens a alcançar a vitória.
— Hubari, faça alguma coisa ou os guerreiros serão exterminados aqui mesmo! Faça alguma coisa Hubari! — Era Yatene, que procurava desesperadamente salvar o que restava da tropa invasora, cada vez mais diminuta.
Hubari reconheceu a dimensão da preocupação nos olhos arregalados de Yatene.
— Vamos agora. — Respondeu Hubari.
— Eu vou com você. Kayk precisa parar. — Dizia Yatene.
Hubari ordenou a retirada dos atacantes para que pudessem se reunir mais uma vez. Ensanguentados e cansados, os guerreiros de Kayk se defrontavam com uma defesa implacável.
Quase não tiveram contato físico com os defensores, mas suas perdas eram enormes. Isto dava a entender, tanto a Hubari, como a Yatene, que, um dos limites do reino estava se definindo naquele trágico e difícil momento. A cidadela fortaleza poderia ser lavada em sangue, mas não estava disposta a cair.
O que se deu a seguir, selou a sorte do exército invasor.
Os homens se dirigiam até Wuy Kayk. Se aproximaram para levar suas preocupações e considerações. Antes que Hubari pudesse falar, Kayk virou-se segurando seu punhal de obsidiana.
Recebeu Hubari com uma estocada na altura da barriga, enquanto o encarava nos olhos, e o matou. Deixava claro seu pensamento a respeito do que tinham em mente discutir. Yatene assistiu tudo paralisado.
Ainda assim, balbuciou para Kayk:
— O exército vai ser destruído aqui.
Wuy Kayk destituiu Yatene e ordenou novo ataque contra a cidadela Umbirá, submetida a sucessivos incêndios.
Reunindo o restante de suas forças, Kayk conduz pessoalmente os guerreiros Konágua a um último e feroz ataque. Submetidos a perdas severas, finalmente superam a muralha e correm para a grande habitação circular, agora desprovida de proteção e feita de madeira, palha e cipós.
A queda da cidadela
Toda a construção agora arde em chamas, enquanto os últimos guerreiros e mulheres manejando seus arcos buscavam oferecer uma defesa desesperadora. Tudo ao redor está prestes a desmoronar. A luta prossegue dentro daquela fornalha.
Apoena grita aos seus:
— Corram, tirem as crianças daqui! A cidadela vai cair!
Crianças e velhos são retirados do local e se embrenham nas matas próximas, numa tentativa de escapar da morte e da escravidão. Na construção circular, a luta prossegue para que tenham tempo de fugir.
Na refrega incandescente, Apoena, cercado pelo inimigo, sucumbe ao cansaço e a dor. Sendo em seguida abatido com machados de pedra. A cidadela está prestes a ser tomada.
Do lado de fora da cidadela circular em chamas, uma das últimas arqueiras visualiza Wuy Kayk, com seu cocar e ombreiras douradas. Mira com atenção e dispara.
A flecha atinge o rei conquistador no meio da testa, tendo Kayk uma morte fulminante. O brado se torna mera consequência.
— O rei morreu! O rei morreu! Mataram Kayk!
Os guerreiros se detêm, como que por um passe de mágica e olham ao redor buscando a confirmação. O corpo de Kayk no chão era fácil de identificar sem nenhuma contestação.
Começam um recuo não comandado para fora do círculo em chamas. Quando se reuniram, surge a constatação desalentadora e trágica para o povo Konágua. Menos de mil homens estavam de pé. Foi o que restou dos 15 mil que investiram contra os Umbirá.
Dos antigos líderes, somente Yatene estava com eles.
Decide então abandonar os escombros da cidadela arrasada e deixar em paz os fugitivos. Reúne os homens e dá ordem de retirada. A campanha expansionista havia chegado ao seu melancólico fim. E com ela a história do rei guerreiro.
Ibiã, ao ver a retirada dos invasores, procura reunir sua própria gente. Não consegue avistar Apoena. Deixa o grupo por instantes e retorna às ruinas ainda flamejantes. Procurava o amigo por entre os escombros, ocultando-se dos Konágua, ainda próximos da fortificação arruinada.
Finalmente o encontra, moribundo e ensanguentado.
— Apoena, Apoena, sou eu, Ibiã.
Com dificuldade, Apoena abre os olhos cobertos de sangue e vê o amigo através dos olhos físicos, pela uma vez.
— Ibiã, tire as crianças e as mulheres daqui. Leve-as para bem longe. Conte a elas quem somos, de onde viemos e de tudo o que aconteceu. Fale das cidades de pedra que desapareceram. Fale da floresta que anda e do rio que subiu. Fale da grande luta na defesa da cidadela. Fale dos animais e de nós. Conte a eles quem somos nós, os Umbirá. Não permita que nosso povo desapareça, Ibiã. Conte a eles...
— Eu o farei Apoena. Eu o farei pelo resto dos meus dias.
Em um último suspiro, o espírito do guerreiro Apoena deixou seu corpo destruído. Os antepassados já estavam lá para recebê-lo.
Os Umbirá estiveram à beira do extermínio. Decidiram abandonar de vez o local e buscar um espaço menor e mais reservado, atendendo a Apoena, onde pudessem recomeçar. Voltam e recolhem então, uns poucos utensílios que tenham resistido ao grande incêndio.
A quantidade de mortos pelo campo é enorme. Pouco mais de 2 mil habitantes e defensores da cidadela e mais de 14 mil invasores, jazem entre as ruínas. É preciso partir, sob risco de os Konágua resolverem voltar.
Em rápida contagem no local, Ibiã identifica o que restou do povo Umbirá. Havia 33 homens, 38 jovens entre moças e rapazes, 138 mulheres, 55 velhos e 191 crianças. Ao todo 455 pessoas.
Longe dali os remanescentes dos guerreiros Konágua, indagavam de Yatene:
— O que faremos agora Yatene?
— O que faremos? Nada. — Apenas olha adiante, e prossegue.
— Não há o que se fazer. Sem guerreiros suficientes para a defesa, o reino Konágua acabou. Esta é a herança de Wuy Kayk. Vamos procurar defender nossa própria cidade. O grande reino, logo não existirá mais. Basta que descubram o que aconteceu aqui. Vão se voltar contra nós. Enfim, tudo acabou.
Vida que segue
Atia, de cima de sua árvore, pôde assistir a retirada dos orgulhosos e humilhados Konágua. Da mesma forma como, um dia, assistiu a chegada de seus espiões e batedores.
Olhava a destruição e desolação na campina com a cidadela, agora calcinada e abandonada. Nem homens, nem mulheres, nem crianças. Muito menos animais e pássaros.
Parecia que a campina tinha chegado a seu momento de perder a vontade de viver. Lembrou, agora saudosa, de Tchuwai. Lembrou de seu sobrevoo heroico, mas fatal.
Então era assim. A rasga mortalha intervém na vida dos homens. Só que isso tem um preço. E às vezes ele é alto demais.
Conformou-se e se pôs a aguardar novos dias, quando a campina receberia novos animais em seu território. Afinal, estaria em paz com a retomada da normalidade das coisas na campina.
Nos tempos de Atia ou não, mas a própria campina com seus restos calcinados de uma cidade abandonada, logo cederia espaço para a floresta que anda.
Tudo seria coberto de vegetação e soterrado sobre sucessivas camadas de argila que não paravam de descer dos contrafortes andinos. As águas traziam, a floresta cobria, o sedimento sepultava e o tempo prosseguia silencioso.
Ainda que isto não signifique propriamente uma ligação direta, contudo um indício. A definição dos espaços da floresta que anda e a absorção de uma nova cultura de sobrevivência, lentamente pode ter redesenhado o relacionamento entre os povos.
Da parte dos descendentes dos grupos fragmentados dos Umbirá, Komágua e outros tantos povos fragmentados, nativos americanos amazônicos, pode ter emergido uma época de relativa paz entre os habitantes da floresta, no futuro.
Uma indicação é o surgimento da terra preta de índio. A mesma exige assentamentos humanos antigos e, portanto, a permanência no lugar por muitos séculos e mesmo milênios, como comprovam pesquisas recentes.
O mais formidável está na decisão das populações em fazê-lo. A terra preta não surgiu ao sabor do acaso. Está inserida no contexto de sobrevivência. Somente a paz permite o desenvolvimento de tais soluções.
As narrativas de Wuy Jugu Kayk, guerreiro, rei e ganancioso. Das lutas pela conquista da cidadela, à defesa heroica de Apoena e Ibiã, liderando o povo Umbirá, não são únicas. Sequer são originais. Apenas constituem narrativas que não constam dos livros da história conhecida dos homens. As narrativas do tempo.
São milenares lições que visam o esgotamento psíquico da soberba, do orgulho criminoso e dos ódios múltiplos que tanto sofrimento provocaram e provocam espalhados como se encontram por toda a humanidade.
Do invasor e destruidor implacável do passado, submetido ao flagelo e às forças terríveis que ele mesmo despertou, poderá surgir a grande autoridade, consciente e digna, no futuro.
Então, amadurecido e consciente dos talentos dos quais sempre foi portador, se dispõe a conduzir os homens a dias melhores. É quando vislumbra o Criador e suas soberanas leis.
Aquele que, à mercê de sofrimentos sucessivos nos umbrais da vida, busca o seu ponto de inflexão. O momento onde o sentimento supera a razão.
Afinal, por quantas vezes no tempo milenar, uma voz gentil terá sussurrado no ouvido dos homens? Uma vez só?
Saulo, Saulo, por que me persegues?
FIM