Por: Antonio Mata
O verde esmeralda refletido ao sol era magnífico. A borrasca soprava, entremeando cristas de espumas brancas aqui e ali, completando o cenário e acentuando o verde.
Sensato seria pensar no que haveria por debaixo daquela tela de rara beleza. Uma biota própria, com sua flora e sua fauna. A saga evolutiva dos mundos.
Aqueles que avançavam, atentos ao horizonte e arredores, muito pouco pareciam se importar com a beleza, a dimensão e até mesmo o espetáculo vivo das profundezas.
Afinal, algo deveria ser importante o suficiente para justificar tal empreitada. O tempo de busca, o tamanho da embarcação, o número de homens e os valores vultosos envolvidos. Só uma grande recompensa poderia explicar.
Os olhos, acostumados pelo tempo, procuravam uma coisa só. Visualizar o objeto dessas buscas exige um pouco mais.
A palavra indica, na Terra, um réptil marinho. Ictiossauro, um ser pré-histórico de uns 15 m de comprimento que viveu há 250 milhões de anos passados. Em um período conhecido como Triássico inferior. O primeiro período da Era Mesozoica.
Mais novo, nem por isso menos perdido no tempo e no espaço evolutivo que se foi, os fósseis falam do Oftalmossauro. Um réptil com olhos de uns dez centímetros e uns 5 m de comprimento, que viveu no Jurássico. O segundo período da Era Mesozoica. Há 150 milhões de anos.
Assim, não havia ninguém procurando peixes. Tanto quanto, na Terra, até os dias de hoje, também não se busca só peixes e animais pequenos nos oceanos do mundo.
Já se pode vislumbrar a dimensão do que procuravam. O bicho detentor de tamanho valor. Um réptil de pelo menos 45 m de comprimento, 200 toneladas e pele verde escura reluzente ao sol suave do lugar.
Gordura; dentes mágicos; espinheiro dorsal transformado em muita iguaria fina e carne, muita carne. Um par de olhos gigantes disputados em leilões concorridos.
Aquela gente comia muita carne. Haveria de se imaginar que a busca, a caçada, seria por conta desse grande estoque de proteína. Contudo, dava para notar que as crendices, os gostos alimentares, além do apego por objetos caros e raros, trariam outra conotação. Com ela o aumento do valor.
Havia aos milhares, porém em grandes grupos e difíceis de capturar. A caçada aos Bohrs punha a vida em risco em nome da fama e do sucesso. Um bom arpoador era um homem respeitado nas comunidades do litoral. Ainda que tivesse uma vida um tanto quanto curta.
O céu lilás já apresentava fateixas azuis e róseas, escurecendo ao horizonte, indicando a proximidade do pôr do sol na terra onde a noite nunca chega, só se aproxima.
Tinha olhos de um metro e meio de largura. O animal era capaz de disparar poderosos jatos d’água, através de orifícios laterais, a 20 m de altura e permanecer mais de uma hora sob o mar. A despeito de tudo isso, um animal pacato, extremamente dócil e sereno. Desde que não fosse molestado.
Assustado tornava-se um assassino perigoso. Mesmo ferido, lutaria tenazmente. Transformado em torpedo vivo, desferia golpes com a cabeça no costado dos navios. Quando não, mergulhava e os atingia com o dorso.
Era capaz de arrebentar o casco dos navios caçadores. Não precisava afundá-los. Bastava danificar o casco. Isto impediria que rebocassem um Bohr de volta ao porto, trazendo sim, vários meses em reparo.
Grande, resistente e forte. Sem um arpoador de mão certeira, que o acertasse em partes vulneráveis de primeira, traria consigo a certeza de embates ferozes.
Outra coisa importante, em ataque ultrapassava facilmente os doze nós de velocidade.
Em tempos mais antigos a refrega incorria em cegar o animal perfurando seus grandes olhos. Isto facilitava sua captura. Entretanto, o capricho dos mais ricos modificou os processos da caçada. Os olhos gigantes, mantidos intactos, eram submetidos a técnicas de conservação. Estes passaram a se tornar adornos. Raros, muito raros e por isso, também muito caros.
O arpoador, que já era famoso, obtido o sucesso, tornou-se uma espécie de mito. Tal e qual um grande atleta de talento e habilidades incomuns.
Ao capturar seu terceiro Bohr, recebia uma insígnia, a ser exibida em seu quepe. Nela continha um fundo oval em azul escuro e bordas douradas, com dois arpões cruzados ao centro.
Na captura de cinco ou mais animais receberia as ondas do mar, nos dois lados do fundo oval. Fama e dinheiro, perigo e morte conviviam muito próximos.
A curvatura daquele mundo admitia visão sobre o mar de até 40km, sem se esconder atrás da linha do horizonte. A luz era leve, ainda que provocasse dias belíssimos, provinha de dois sóis, ambos distantes. Assim, o anoitecer era interrompido pelo segundo sol que logo iria brilhar.
O animal gigante, com seus olhos enormes tirava total proveito da luz do dia. Porém, ficando quase cego ao pôr do sol. Era nessa faixa estreita de tempo, daquela quase noite que se tornavam mais vulneráveis a uma aproximação. Já que sua percepção das vibrações na água era relativamente curta.
Outro espetáculo da natureza exuberante daqueles oceanos de sonho. Os olhos do réptil marinho, uma vez baixada a membrana de proteção, brilhavam intensamente na quase noite. Um amarelo ouro, fruto de retinas repletas de células luminescentes. Uma forma de compensar a diminuição parcial da luz.
Grande, podendo ser feroz quando agredido. Dócil e vulnerável pelos jatos d’água, muito visíveis de dia e pelos olhos brilhantes na quase noite. De senhor dos mares, rapidamente descia à condição de presa dos homens. Pobre Bohr.
Os seus compradores mandavam serrar a capa óssea por de trás dos grandes olhos, responsável pela sua sustentação. Então, preenchiam a superfície óssea com centenas de lampadinhas e recolocavam no lugar.
De modo tosco e banal, tentavam reproduzir um belo fenômeno da natureza. Aquele mesmo que na sua grandeza e exuberância, denunciava o animal e atraía os caçadores.
Os homens, de pele inteiramente branca, extremamente pálida, lembrava as velas feitas com resina. O que salientava seus olhos e deixava as veias em várias partes do corpo bem visíveis. Nelas corria o sangue de um azulado escuro.
Não tinham pelos no corpo, nem cabelos em suas cabeças. Não obstante, haviam pelos nas narinas para a filtragem do ar. Isto induziu a uma moda dos homens do mar.
Os pelos longos, por anos sem cortar, principalmente dos mais velhos. Eram trançados ou virados para os lados da boca, fazendo estreitos e compridos bigodes.
Os brigões eram fáceis de identificar pela falta de pedaços de suas narinas. Fruto de puxões nos bigodes. Aliás, a punição de um perdedor. Ter o seu bigode arrancado e um pedaço do nariz junto.
Isto, com o tempo ensejou regras no mar, onde aquele que arrancasse o bigode de outro marujo, recebia dez chibatadas nas costas brancas feito vela. Algo fácil de esconder, mas que todos ficavam sabendo.
Por estranho que possa parecer, os mais jovens adoravam aquele adorno e não viam a hora de cada um ostentar o seu. De volta à terra, exibiam seus bigodes de dois centímetros às moças. A indicação de que se tratava de homens do mar.
Entre eles estava Garnak.
Cor de vela, alto, forte e robusto. O sorriso claro entre os lábios arroxeados. É bem verdade que o bigode só tinha ainda uns quatro centímetros. No caso de Garnak, pouco importava.
Trazia na cabeça o quepe verde esmeralda com a insígnia dos arpões cruzados e as ondas do mar, de cima para baixo, da menor para a maior. Respeitado, já estava no mar na busca do seu sétimo Bohr. Um feito notável.
Se realizasse tal feito, seria o quarto homem vivo naquela lista seletíssima. Não só o respeito, a fama e o dinheiro também já haviam chegado. Seus nomes estavam nos jornais anunciando cada partida, cada caçada.
O maior dos trunfos, por tradição, sempre oferecidos aos arpoadores: os olhos do Bohr. Já havia vendido catorze deles em menos de dez anos. Uma pequena fortuna.
Nos palacetes dos mais abastados fixavam estes adornos. Logo abaixo na moldura, em letras douradas, colocavam, além da data da caçada o nome do caçador de uma forma singular.
Olhos de Garnak.
No porto os homens se reuniam.
— Pronto para mais uma caçada? Os olhudos não vão custar a aparecer. O mar está ótimo, se enxergando longe para buscar mais um jato d’água. Pois então, que seja um bem grande.
— Vão aparecer sim. Só quero mais um Éramis. Um olho vai ficar comigo mesmo em minha casa, iluminando a sala. O outro já me ofereceram dez mil e ainda nem vi o bicho.
Com um sorriso onde faltava alguns dentes, encimado por um nariz faltando um pedaço, o velho encrenqueiro Éramis se acusava logo. A bandana preta era só para reforçar a cara de mau. Já que o sol era sempre suave e suavam pouco.
Passava graxa preta em torno dos olhos para reforçar o contraste e pouco ligava para um nariz metálico vendido nas cidades. Nunca apareceu usando um. Achava o troço ridículo.
— Dez mil é só para começar. No leilão vai pegar treze mil moedas. — Dizia Éramis.
— Só treze mil? Para um arpoador vivo e prestes a se aposentar, sem ter cinco centímetros de bigode? Quero quinze mil, marujo.
Éramis achava graça de seu amigo bafejado pelos céus. Haviam crescido juntos em uma aldeia de pescadores. Éramis, naqueles idos, ainda não tinha bigode, mas sim um dente quebrado.
— Esquece isso Garnak. Aposto cem moedas como você volta antes do ano terminar. É claro que é a aposta de um homem pobre. Mas se chegar aos demais, ainda posso fazer quinhentos ou até mil. Você vai voltar, foi imantado pelo mar esmeralda. Bobagem achar que pode fugir dele.
Muda o mundo, as águas do mundo, a cor das águas e dos céus. Mas os homens do mar, estes são de uma estirpe só.
— Tem mais Garnak. Vai mesmo se afastar do mar sem pegar o Gigante Rajado? O que acha de uns 20 mil pelos maiores olhos dourados do planeta?
O Rajado, um gigantes Bohr de mais de 50 metros. Carregava no corpo vários arpões e cabos das tentativas de capturá-lo. Era o responsável direto pelo afundamento de três “burros”.
O burro Espuma de Maré havia zarpado há quatro dias. Não demoraria a encontrar os répteis em mar aberto. Assim eram chamados os navios caçadores de Bohrs, “burro”. Uma alusão às embarcações postas à pique nas caçadas, navio burro. Na verdade, os marujos riam de si mesmos, os verdadeiros burros.
Quanto aos navios, um insulto, pois superada a fase dos navios improvisados, adotaram embarcações rápidas. Eram veleiros compridos, de três mastros e dezoito velas.
Os mais rápidos de seu tempo. Isto, muito antes de se tornaram famosos na Rota do Chá, ou na descoberta de ouro na Austrália. Então, chamados de Clippers, em outras paragens do universo sem fim. A ganância por capturar aqueles répteis marinhos fez surgir outra possibilidade em outro cenário vivente.
Enfim o grito vindo da gávea.
— Boooohrs, Boooohrs à vista! Encontramos eles!
— Toca o burro pra cima deles, toca o burro! — Os arpoadores começaram a gritar ante a expectativa da caçada.
O esguio navio, de velas enfunadas, avançava a catorze nós para alcançar rapidamente um bando com dezenas de Bohrs. Deslocando-se o mais próximo possível para desembarcar os botes e iniciar a caçada. Mas, não era só isso.
Devia se manter a favor do vento. Assim, buscaria avançar e se aproximar diante do bando. Era o momento de baixar os botes. Em seguida era preciso se afastar.
Se a embarcação recebesse um ataque repentino precisava se deslocar rapidamente, fazer uma diagonal e procurar escapar do réptil enfurecido. Assim, haviam duas preocupações distintas. Se aproximar o suficiente, baixar os botes com os caçadores e se afastar em seguida. Havia nisso uma precisão implacável e perigosa. Quando os Bohrs estivessem bem próximos, todos os botes e o veleiro precisavam estar em posição.
Fato recorrente no universo sem fim. Os animais estão tranquilos, cuidando de suas próprias vidas. É o homem que intervém e acaba por atormentar a todos. Inclusive eles próprios.
Momento crítico de muita vulnerabilidade. Daí o apelido. Se ao deixar os botes navegassem lentamente, logo ficariam vulneráveis. Não obstante, a chegada em velocidade, cortando o caminho do bando, enervava os animais, suscitando possíveis ataques. Era evidente que os caçadores nos botes viviam extremamente expostos.
Foi no Espuma de Maré que surgiu, pela primeira vez, uma melhor e mais eficiente estratégia. Esta apoiada na experiência, nos sucessivos embates com os Bohrs.
Consistia em acompanhar o grupo de répteis, à meia e segura distância e longamente. Até que resolvessem mergulhar em grupo. Era preciso esperar seu retorno.
Calculava-se o tempo e a velocidade do mergulho de cerca de cem metros, apoiados em um dado relevante. Descobriram que os Bohrs sempre faziam curva à esquerda, de cinco a dez graus, realizando um semicírculo lento, antes de subir. Assim, era possível estimar ponto de retorno, onde o bando estaria visível novamente. Mais seguro e menos estressante para os animais.
Neste ponto estariam à superfície, porém cansados e capturando ar, pouco propensos a mergulhar de novo. Pelo visto, o capitão do Espuma de Maré e sua tripulação, não eram assim, tão burros.
Estimou o ponto de retorno à tona, colocou os botes e seus arpoadores nas proximidades, em grupos de quatro botes. Colocou-se em distância segura para evitar possíveis ataques e apenas aguardava a caçada.
Foi quando o inesperado aconteceu.
Sem nenhum aviso, um réptil marinho descomunal arremessou seu corpo verde com riscas negras no ar. Era o Gigante Rajado. Realizou um semicírculo muito mais fechado e solitário, que o deixou perigosamente próximo do Espuma de Maré.
Enquanto isso, o capitão buscava virar o navio para boreste e escapar logo dali. O Rajado iniciou a marcha em sua direção. Depois de incontáveis lutas, enlouquecera.
O Gigante Rajado, após sucessivos ataques humanos sem sucesso, havia se tornado neurótico. Já encarava uma embarcação como um inimigo. Não via mais nada além, do que outro burro. A próxima vítima no matar ou morrer do mar verde esmeralda era o Espuma de Maré.
Enquanto o Veleiro buscava virar e afastar-se, o Rajado se aproximou desferindo forte cabeçada. No entanto, a pancada pegou o costado em ângulo raso, o que aliviou o impacto. Ainda assim o casco rompeu. O veleiro, todo de madeira, de 65 metros de comprimento, possuía costado mais fino, para favorecer a leveza e obter mais velocidade.
Enquanto a tripulação se utilizava de trapos de velame para vedar a parte atingida, o Rajado desapareceu.
— Mergulhou, mergulhou, resta saber onde irá emergir.
— Está irritado. A regra do mergulho não serve mais para ele. — Dizia Nikto, o capitão do navio, meio atônito.
Nesse ínterim, Garnak abandonara a caçada ao restante dos répteis e comandava os botes. Os homens se punham a remar corajosamente, buscando se aproximar do Espuma de Maré, que diminuía de velocidade, se expondo perigosamente.
De caçadores, os minúsculos homens em seus botes, haviam se transformado em força de defesa e tentavam desesperadamente interceptar o Rajado, antes que atacasse o Espuma de Maré, mais uma vez. Estavam em uma grande enrascada.
Perdendo velocidade por conta da avaria, o Maré continuava buscando se afastar do local. O sol se punha e a quase noite chegara. Logo a seguir, um olho enorme brilhou na direção do Maré. Acompanharam visualmente, até vê-lo praticamente se transformar em um duplo traço vertical dourado.
O gigante estava de frente para o Maré e iria atacar novamente. Nikto estava impedido de escapar. Então, o capitão ordenou “à frente a todo pano”. Parecia loucura, mas o Maré estava em rota de colisão com o Rajado. O impacto frontal seria perigoso, contudo, era a parte mais rígida do navio.
Já próximo da posição do gigante, Garnak procurava intervir na trajetória do Rajado, chamando a atenção do monstro para cima dos botes e de dezenas de arpões.
Obteve algo como um resultado muito parcial. Já próximos, entre o Maré e o Rajado, apenas dois botes puderam lançar seus arpões contra o animal. Somente três atingiram seu dorso. O monstro pouco se importou com o pequeno ataque de Garnak, prosseguindo como um torpedo na direção do Maré.
A algumas dezenas de metros antes do impacto, o gigante mergulhou, emergindo rapidamente. Estava por debaixo do casco. A pancada debaixo para cima foi fatal, estourando o casco do Espuma de Maré. Transformado em mais um burro.
De início atônitos, tão logo o capitão do navio entendeu o que havia acontecido, comandou abandonar o navio. Os botes eram arriados às pressas, enquanto as águas invadiam tudo. Muita gente não conseguiu se salvar.
Então o monstro emergiu mais uma vez. Seu olho dourado luminescente era bem visível pelas equipes dos botes e de Garnak. De repente, o círculo fechou-se oferecendo mais uma vez um par de traços verticais amarelo dourado. O Gigante Rajado, enlouquecido estava a caminho.
— Abram, abram, façam-no passar pelo meio! Vamos pegá-lo! — Gritava Garnak, enquanto preparava os homens para enfrentar o monstro enfurecido.
Enrolou a ponta do cabo de seu arpão e amarrou no próprio corpo, deixando o restante desenrolado e folgado. Rajado, não incutia medo à toa. Também tinha suas surpresas, repentinas e avassaladoras.
A menos de cem metros dos botes, o réptil desviou para bombordo, saindo do centro da formação de botes oferecida por Garnak. Dirigiu-se mais à esquerda da formação. Pelo caminho, estava o próprio Garnak. Tornara-se uma luta pessoal.
Resolvera participar da brincadeira. O burro falso afundava perto dali. Agora queria os burros verdadeiros. Aqueles que insistiam em caçá-los e transformá-los em comida, gordura e troféus.
Ao passar próximo, Garnak arremessou seu arpão de modo certeiro. Mesmo assim, empurrado pela força e baldes de adrenalina, o gigante recebeu os impactos de vários arpões. Com um forte solavanco, Garnak desequilibrou-se e foi projetado dentro d’água, enquanto o Rajado arrebentava diversos botes. Quando o Gigante Rajado mergulhou, Garnak, amarrado ao arpão, desceu com ele.
Um mergulho de cem metros na escuridão do mar. Nivelou, fazendo uma curva já conhecida, só que muito mais aberta. Concluiu a manobra em semicírculo e então emergiu, cinquenta minutos depois.
A quase noite já havia passado. O segundo sol já surgia no horizonte. Os botes haviam se reunido e buscavam se aproximar do litoral improvisando velas e remando. No total, 37 homens perderam suas vidas. Entre eles Garnak, cujo corpo provavelmente ainda acompanhava o Gigante Rajado.
De um dos botes, um dos homens falava com Éramis.
— Você apostou que Garnak retornaria ao mar, após vencer esta missão. No final ele não voltou à terra e nem voltará mais ao mar. Você perdeu Éramis.
— Foi sim, eu perdi. Perdi o dinheiro, um bom navio, muitos marujos, as esperanças e um amigo. Perdi tudo.
Enquanto se afastavam na correnteza, o sol seguia alto no mundo dos mares cor de esmeralda, de céu lilás com faixas azuis e róseas. Dos animais tão assustadores quanto magníficos.
Náufrago do Espuma de Maré, um rapazola assiste as cenas finais daquela tragédia. Nunca tinha conversado com Garnak, embora o admirasse pela coragem. Lembrava das fotografias dos jornais e das conversas dos homens do mar.
Uns o achavam louco, outros uma espécie de herói, a atrair os mais novos para a aventura marítima. Só não havia neutralidade. Tanto quanto ele pouco sabia de Garnak, o mesmo estava em conversas de gente que jamais iria conhecer.
Ainda não sabia que o arpoador principal havia sido arrastado para o fundo do mar, preso no monstro que um dia quis caçar.
De dentro do bote, meio à deriva, olhava o brilho das águas verdes, no dia que começava. O primeiro sol, o início do dia, talvez por convenção. O segundo, faria o fechamento. Já que a noite nunca chegava.
Ele estava ali naquele cenário, presenciando os acontecimentos. A grandeza e o belo unido ao perigoso e ao sinistro. No tempo que é de todos. No tempo que não pertence a ninguém. Somente olhava o mar e isso era tudo.
No quarto o menino escrevia, desenhava e rabiscava coisas. Balões, locomotivas, viagens e uma espécie de barco diferente. Concebido para mergulhar, parecia um jacaré sem as patas, mas portando uma cauda de peixe.
— Jules, Jules, vem meu filho. Seu pai está esperando.
— Está bem mamãe, já vou.
Alguém disse certa vez que a mente é um mundo. Ora, pois bem, a mente liga os mundos.
Credes em Deus, crede também em mim. Há muitas moradas na casa de meu Pai; se assim não fosse, já Eu vo-lo teria dito, ...
FIM