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O barracão

                                                                           

                                                                                                                                                   Foto: Joshua Reynolds

Por: Antonio Mata

Catava coisas no chão, andando de um lado para o outro. Às vezes prestava atenção, às vezes, nem tanto. Acabava pegando coisa que não prestava.

Outras duas faziam a mesma coisa, a catação de todo dia, do mesmo jeito. O percurso, era comum que se fizesse várias vezes. Vantagem mesmo, era de quem chegasse na frente. Em tempos difíceis, ganha mais quem se adianta. É assim, quem deixar para depois, se arrisca a não ter mais nada.

— Essa vida de catação está me deixando cansada, seria capaz de revirar a terra toda, cada rua, o bairro, a cidade inteira. Só queria que no final, pudesse ter a garantia da barriga cheia, ao invés dessa miséria que se tem aqui.

— Pois, está querendo muito, Doró, minha filha. Desde quando a gente tem a garantia de alguma coisa? Dizia Olga.

— Tem razão, onde a comida é pouca, só nos resta dar o nosso próprio jeito. Olha só Doró, alivia esse teu plano de catar a cidade inteira. Também, não precisa. Comentava Isaura.

— É isso mesmo, o que importa, é que quero encher o papo, isso sim é que vale. Na vida não é só trabalho, a gente descansa também. Completou Olga.

Vida limitada, vida restrita, o horizonte é curto, o tempo é curto, a vida é curta. Ali as coisas pareciam não mudar nunca. Era catar, comer e dormir. Era qual o dia? Importa mesmo saber, que diferença haveria de criar? 

Olga, tendo se amolado com aquela conversa sobre catação, resolveu trazer as demais à realidade.

— Vamos tratar de parar de sonhar acordadas? O que acham de regressar do sonho encantado das princesas? Sem castelo, sem contos de fadas, sem belas plumas para mostrar, como se fossem pavões, sem nada, só para variar.

Doró e Isaura, ficaram estáticas, típico de quem não tem respostas a dar. Enquanto Olga, pelo visto, a mais esperta de todas, prosseguia com a sua fala, e concluiu.

— Afinal, onde vocês pensam que estão? Até provas em contrário, se fincar os paus; colocar um telhado velho; cercar tudo com tela de arame; ajeitar um portão, que, aliás só vive fechado. Sendo assim, isto é, ou não é um galinheiro?

Com cara de zangada, Olga falava e ciscava sem parar.

— Vida de galinha já é ruim. Na companhia de galinha doida, Deus me defenda. Pior que isso, só a morte prematura.

Prosseguiam na lida de ciscar o pouco que havia no terreiro restrito do galinheiro. Que, por sinal, para apenas três galinhas, tornava-se uma verdadeira “mansão”. Tudo bem, era só um barracão de galinheiro.

A comida era pouca, algum milho, e o mais comum, restos de arroz e feijão da cozinha, e alguns insetos. Ração, nem pensar, petisco fino que não visitava aquele endereço, nem em tempos bons, quanto mais em tempos bicudos.

Vamos aos fatos, não era nenhuma granja, nem sítio, muito menos uma chácara. Também não era nenhuma casa na roça, e nem moradia na cidade. Vai ganhar um doce se adivinhar.

O velho barracão fora construído para receber outra função. Lugar de guardar tranqueiras e coisas de pouco uso. Acabou desocupado, foi quando recebeu tela de arame na frente, e virou um galinheiro. Lá viviam Olga, Doró e Isaura.

Aquele lugar tinha sua rotina, seguindo o curso do dia, até um fato dos mais comuns em qualquer galinheiro. Na cozinha do prédio, tinham combinado de fazer frango assado para servir no almoço. A notícia pegou  Doró e Isaura, literalmente pelo pescoço. Não havia recurso, aquilo que já era sabido, assumia ares concretos de realidade.

— E agora Olga, o que vamos fazer, o que vai acontecer?

— Se eu te contar, promete que não vai entrar em choque?

— Não é hora de brincadeira Olga. Estou desesperada, não sei o que fazer, quanto mais o que pensar.

— Está bem, entendi. Se acalme, tome um gole d’água e sossegue. Vai ficar tudo bem, e agora preste atenção.

— Aqui do lado do galinheiro existe um convento. Às vezes dá para escutar as freiras conversando.

— Convento, onde fica isso, o que é um convento? O que são freiras?

— Isaura, olhe para a esquerda. Esse paredão caiado aí do seu lado, é a parede do convento. As freiras moram aí dentro.

Olga buscava controlar a aflição de Isaura e Doró.

— Agora fiquem quietas e prestem atenção, outra hora explico melhor. Certa vez, elas estavam conversando e as ouvi dizendo que morrer não é o fim. Logo, a vida não vai acabar.

— A vida não acaba? É verdade isso, é isso mesmo?

— Sim Isaura, a vida continua em algum lugar. Bom, só não sei onde é que fica, mas já entendi que continua. Sendo assim Isaura, de alguma forma vamos continuar vivendo.

— Será Olga, que vamos poder voltar para cá de novo? Eu não queria sair da nossa casa não. Era Doró, que buscava participar da conversa.

— Doró não complica, que a vida já é complicada sozinha. Não faz pergunta difícil. Sei lá, acho que vamos nascer em outro lugar. Sempre existem pintinhos nascendo por aí, pelo mundo afora. De repente, chega a nossa vez também.

Aquele era o momento crítico de suas vidas de galinha, e Olga já havia compreendido isto.

— É mesmo, mas será que é assim desse jeito, como você está falando? Indagava Isaura.

— Foi só no que pude pensar Isaura. Agora se acalme, acho que tem mais alguma coisa acontecendo.

Na entrada do convento, um certo vozerio se fazia ouvir, enquanto um grupo de pessoas era conduzido a cruzar o portão de acesso, na direção do pátio. O grupo de homens e mulheres estava visivelmente abatido.

Na realidade era um grupo de doentes em busca de abrigo. Uma jovem irmã de caridade, parecia intervir em favor dos doentes, porém, sua argumentação, por honesta e amorosa que fosse, não era de todo aceita pela madre superiora.

Esta, a reprovava pela iniciativa, feita sem o seu conhecimento, e sem o seu consentimento. Ante a atitude da madre superiora, o impasse se estabeleceu. O convento não receberia os doentes recolhidos nas ruas da cidade.

A jovem, inicialmente desalentada, lembra da construção ao fundo, o barracão do galinheiro. Direciona seus doentes no caminho desejado, e comunica à madre superiora.

— Madre, eles não vão mais ficar no convento. Vou colocá-los no galinheiro. Com sua licença, madre.

De um modo tão inesperado, quanto incomum, o barracão que virou galinheiro, iria ser transformado novamente. Ao receber homens, mulheres e crianças doentes, tornou-se então, o retrato das ausências; falências; desinteresse e desprezo.

A tranqueira teve o seu valor, as galinhas tinham o seu valor, o novo retrato, não. Mas, isto somente aos olhos dos demais.

Aos olhos daquela gentil e caridosa freira, retratava a vontade, a coragem, a fé e esperança, que removem as montanhas invisíveis do caminho.

Os seres humanos amontoados no galinheiro, retratavam os esquecidos da Terra. A presença daquela mulher, retratava a vitória de Deus.

Em outro nível, Doró observava.

— Olga, trouxeram todos para cá. Olga, todos eles vão ficar aqui dentro. O que vamos fazer agora?

Foi Isaura quem completou as preocupações de Doró.

— O que vai acontecer conosco, no meio desse monte de gente doente? Olga, isso não vai dar certo. Não vai caber todo mundo, e além do mais esse lugar é nosso!

Olga, com seu jeito sarcástico prosseguia observando.

— Tem certeza branquinha? Acho que você esqueceu do almoço, não foi meu bem?

Os doentes são acomodados no galinheiro, de forma extremamente precária, com todos os impedimentos e sacrifícios que tal improviso haveria de oferecer. Haveria de se dizer que a freirinha tinha perdido o juízo.

Colocava seus doentes, sentados ou deitados no local, conforme possível. Ainda teria de providenciar medicamentos básicos, para se dizer o mínimo. Para tal, esperava poder contar, mais uma vez, com a simpatia de seu pai, na obtenção de ajuda. Por mais que se dedicasse, o lugar não passava de um galinheiro. Só que agora estava cheio de doentes.

— Tem certeza de que precisa ser assim? Indagava uma das freiras, à jovem intercessora daquela gente.

— É preciso insistir, não tenho mais alternativas, tenho que fazê-lo. Se desistir, simplesmente voltarão e morrerão nas ruas de onde os retirei. É demais para mim. Compreende isso?

Compassiva e tomada de admiração pelo espírito de serviço da amiga, se pôs a ajudá-la.

Em um canto, Olga, Isaura e Doró, apenas aguardavam o momento de serem recolhidas.

— Olga, essa freira, ela cuida das pessoas, não é? Parece ser bondosa. Quem terá inspirado tão belo trabalho? Perguntava Isaura.

— Quem? O mesmo que disse que morrer não é o fim. Se ela pode acreditar, então, nós também podemos. É tão simples e bonito, que até os animais compreendem.

As três últimas galinhas do convento foram levadas para a cozinha, cumprindo uma lógica que ainda existe na Terra. Enquanto isso, o barracão recebia sua nova destinação.

Poucas construções ordinárias e provisórias foram tão nobres e honrosas, naquilo que poderiam significar no futuro. Aquele velho e carcomido barracão, foi uma delas.

 

Nesta escrita simples e acanhada, nossa singela e humilíssima homenagem àquela que transformou um galinheiro, no maior hospital dedicado ao atendimento das populações pobres da Bahia.

Feliz Natal Brasil, feliz Natal Bahia, feliz Natal irmã Dulce, Santa Dulce dos Pobres.

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