Foto: Wikimedia Commons
Por: Antonio Mata
Já tinha revirado aquelas paragens pelo avesso, sabe lá quantas vezes. Por mais que procurasse não encontrava a encrenqueira, a barulhenta, aquela inútil.
Esconjurava a hora que resolvera trazê-la consigo. Antes tivesse largado em casa e tocado a vida sozinho, fazendo tudo do jeito que gostava e sabia fazer, sem mais nada para atrapalhar. Só para encher o saco, maldita hora.
Embrenhou-se pelos cantos e pelos matos, palmilhando tudo, ora com calma, ora parecendo panela de pressão sem água. Perdeu o senso de realidade. Não sabia mais como aquilo começou, não entendia mais como parou ali, e porque insistia tanto em pôr a culpa em outro que não fosse a si mesmo.
Endiabrado estava, endiabrado continuou. Orgulho ferido, cutucado e mordido. De tanto andar a esmo, sentou-se no chão e buscava se acalmar para entender as coisas, pelo menos um pouco. Vendo se colocava os fatos em ordem para não se ver perdido e mordido, mais uma vez. Acalmou-se.
A mulher reclamou que em casa, já não tinha mais carne. Como reclamava de quase tudo, não deu maior importância.
— Ué, come farinha de macaxeira; come macaxeira cozida; come farinha de tapioca; goma de tapioca; pé de moleque; faz xibé; faz bolo; cuscuz branco; biscoito e até tucupi. Garanto que você vai enjoar de tanto comer. Dizia, de olhos fechados, balançando em cima da rede.
— Eu tô falando é da carne. É disso que eu tô falando. Você entendeu, é surdo é?
A carne só tinha alguns pequenos problemas. Ruim de guardar, precisava salgar. Quando chegava comiam logo tudo. Como era ruim de guardar, nem adiantava reclamar. Enfim, com ou sem sal, a carne durava poucos dias. O peixe não estava na época. O jeito era se embrenhar na mata.
Antiga espingarda de um só cartucho e carregamento manual. Com um cuidado que não podia ser esquecido de jeito nenhum. Arma velha, o cano fica gasto e tem gente que nem nota, continua usando assim mesmo. Não João do Carmo, se há uma coisa que o homem conhecia era espingarda. Já tinha atirado com umas quatro diferentes. Todas velhas e nenhuma era sua.
Desse manuseio e tiro com armas dignas de um museu, surgiu uma característica boa. João corrigia de vista, a margem de erro do disparo. Bastava estimar corretamente a distância do alvo, e depois corrigir o desvio por conta do cano gasto.
Tinha gente que fazia isso, mesmo com o cano amassado. Até que a espingarda estourou na mão do atirador. Eram tão antigas que não valia a pena procurar um cano novo. Sonho de consumo? Espingarda de repetição, igual aquelas que apareciam no cinema.
Foi com muita farinha na troca que conseguiu sua primeira barulhenta. De um cartucho só e do cano meio sem estrias. Deu trabalho até acertar, de olho, uma forma correta de se disparar.
Isso tudo já era coisa do passado. Tão velho quanto a própria barulhenta. Não tinha outra saída, era preciso acertar no primeiro disparo, pois logo após todos saberiam da sua presença.
Lembrava de ter caminhado até um porco do mato, após acertá-lo com um disparo. Amarrou seus pés para poder puxá-lo até próximo à canoa.
O que mais o incomodava era não ter encontrado sua espingarda. Na realidade sempre estivera a uns sete ou oito metros de distância, ele é que não via. Depois de andar em círculos, achou a barulhenta. Tentava pegá-la, e por mais que se esforçar-se, não conseguia empunhá-la. Ouviu então, uma voz.
— Não adianta, não vai conseguir.
João tomou um susto, e ao prestar atenção a quem estava falando, indagou:
— Não vou por quê? A espingarda é minha.
— Ah, é? Então pegue a munição que caiu junto dela.
João achou aquilo uma leseira muito grande. Abaixou-se de modo a apanhar três cartuchos caídos no chão. Tentou pegá-los uma vez, duas vezes, três vezes.
— Que diabo tá acontecendo aqui? E quem é você? De onde você veio?
— Está acontecendo o que aconteceu comigo. Sou o Diogo, eu venho daqui de perto mesmo. Vivia por aqui tempos atrás, mais adiante subindo o rio.
João prestou atenção no homem à sua frente. Uma coisa chamou logo a sua atenção. Nem havia como esconder. Havia um buraco no seu tronco, do lado direito, como se tivesse sido arrancado dali. Mas, como aquilo era possível? E falando ainda por cima, deveria estar imobilizado de tanta dor.
— O que foi que aconteceu aí do lado do seu corpo? Isso tá feio demais. Como consegue circular assim por aí? Você está horrível.
— Eu, horrível? Onde está metade da sua cabeça?— Enquanto falava o homem achava graça.
Foi quando João se deu conta de uma dor muito forte na cabeça, além de ter perdido a visão do olho esquerdo. achava que era por causa da dor de cabeça. Entretanto, ao buscar tocar sua cabeça do lado esquerdo, teve uma pequena surpresa. Ela simplesmente não estava lá.
— Não estou entendendo nada. Por que não pego a munição, e a minha cabeça?
— Se acalme homem, você não foi o único a querer caçar por aqui. Outra voz se dirigia a ele.
João olhava para o sujeito meio desconfiado.
— Bem, pelo menos você está inteiro. Pode me ajudar a saber o que está acontecendo?
— Estou o quê, inteiro? Ah, sim claro.
O recém-chegado levantou a cabeça, e João pôde ver a perfuração feita por um projétil, entre o queixo e o pescoço. Depois, virou-se de costas para mostrar o buraco no alto e atrás da cabeça.
— Me abaixei com a espingarda na direção do queixo. Ela disparou. Não quis me matar, foi ela que disparou. Foi um acidente. Tem uns doidos que dizem que fiz de propósito. Não fiz nada disso não.
Aquele depoimento deu um estalo na cabeça do João, ainda que acreditasse ter perdido um pedaço dela.
— Você está querendo dizer que não estamos mais vivendo como antes?
Foi o primeiro recém-chegado quem respondeu.
— Agora você está começando a entender João. Meu nome é Valdir. Eu também era caçador. Fui atacado por uma onça, foi ela que me arrancou um pedaço. Igual a você.
— Igual a mim?— Outro estalo, e João encontrou a passagem para o resto da história.
A espingarda só dispunha de um cartucho por vez. João fez um único disparo certeiro, atingindo um porco do mato. Foi tratar de amarrar o bicho para poder puxá-lo até sua canoa, pois o animal era grande.
Demorou muito nessa operação. Foi quando, no intuito de lhe roubar a caça, o felino abocanhou sua cabeça, atacado que foi pelas costas. Não que isso faça alguma diferença, entretanto, o animal não queria matá-lo.
Queria apenas anular a capacidade de reação do João. Então, pegou o porco do mato, que era o seu propósito e foi embora, desaparecendo na floresta.
É como dizem, um dia é da caça, o outro do caçador.
O caçador, por conta do seu trabalho está inserido na vida de natureza. Tanto lhe é natural caçar, como é natural que eventualmente acabe sendo caçado.
— Quanto mais penso, menos entendo. Mas, afinal o que estamos fazendo aqui? Por que vocês estão aqui?— Indagava João, bem confuso.
— Também não sabemos direito. O que posso lhe dizer, é que essa floresta tá cheia de gente. Isso eu já pude ver. Lhe contava Diogo, procurando localizar o mais novo morador da floresta.
Bastou o comentário de Diogo, e ao olhar ao redor, João rapidamente percebeu que estavam sendo observados. Pode notar a presença de diversos indígenas em meio a vegetação. Aos poucos foram se aproximando. João, ainda peixe fora d’água, ou melhor, homem fora do corpo, via aquilo com cara de espanto.
— Não ligue João. Você não fez nada de propriamente errado. Aqui nós cassávamos para comer. Eles já sabem disso. Se você matasse o bicho só pela satisfação de matar, seria bom começar a correr, pois eles não gostam.
— Então, são eles que tomam conta?
Agora foi a vez de Valdir responder.
— É isso mesmo. Por alguma razão que ainda não entendi.
Observado da parte dos indígenas que os três caçadores não estavam fazendo nada demais, foram embora.
A grande floresta recebe vários tipos de espíritos, em função dos interesses que possuíam quando em vida na matéria. Para os indígenas, é a sua morada natural, estão em casa. Para muitos caboclos, idem. Quanto maior a identidade com a floresta, maior a satisfação por estar vivendo nela, na matéria ou não.
Já aqueles que não lhe guardam nenhum sentimento de afeto, e por isso mesmo, apenas a vêm como lugar de exploração da fauna e da flora, estes ao deixarem o corpo material, sob qualquer circunstância, veem-se presos em um ambiente hostil que só os apavora. Isto tem a ver com o amor ao próximo, preconizado por Jesus. A floresta é viva.
Assim ficam vagando pelas matas, como verdadeiros fantasmas, na realidade são espíritos desprovidos de um mínimo de evolução, que lhes permita seguir ao menos para um hospital espiritual, onde possam ser atendidos.
Foi o caso dos três caçadores. Ainda que fossem homens da região, lhes faltavam sentimentos mais nobres com relação à sua terra e a sua própria gente. De outra forma, já teriam sido recolhidos. A grandeza de Deus se percebe pela contemplação das pequenas coisas.
Com o tempo, já esclarecidos, estes mesmos homens acabam por se tornar protetores da floresta e de seus habitantes. Tal e qual os indígenas. O que vale dizer que tem muita gente cuidando disso do outro lado da vida.
Não importa o ofício, religião, ou nacionalidade, o amor pela floresta, seus rios e sua gente, expressões amazônicas da Criação, constituem o verdadeiro divisor de águas.