Foto: Wikimedia Commons
Por: Antonio da Mata
Investira suas economias na execução de pequeno projeto. Um armazém de secos e molhados, chamado popularmente de mercadinho.
Desejoso do auxílio de todos os santos, Caio esperava estar em condições mais abastadas, em algo como dez anos. Crescer, ver o negócio gerar empregos e florescer. Tempo suficiente para se colocar à frente do seu negócio, admirando aquelas letras grandes, já em maiores instalações, cheio de satisfação.
Cheio de esperança, assim o esperava. A realidade objetiva, é que nunca passou dos atuais 3.500 reais de lucro mensal. Os dez anos se escoaram, sem que Caio pudesse cumprir sua meta.
A Kombi 1969, com dez anos de uso, do início do negócio, foi ficando cada vez mais depauperada. É quando surgem os nomes jocosos, e com aquele carro de serviço, jumento de carga de incontáveis pequenos empreendedores, não foi diferente. Virou a Ximbica, de outras tantas Ximbicas espalhadas por essa terra.
Foi quando se entrou no tempo das adaptações, dos remendos e gambiarras, muito mais baratos que uma reforma real, mas que têm lá sua eficiência.
Afinal, foi o carrinho que suportou as incertezas, mas que também vislumbrou muito sucesso, ao longo daquela que os economistas chamariam de “a década perdida”, e cujo único defeito foi ter antecedido a década seguinte.
Por mais que seus esforços fossem dedicados ao pequeno negócio, ele não crescia, e Caio já não dispunha de recursos para buscar uma nova localização, ou repaginar sua loja, que também já sentia o peso dos anos passados.
Aceitou o fato de estar em um negócio de sobrevivência, pois era tudo o que conseguia obter. Sabia que estava vivendo dentro de um equilíbrio extremamente precário, e que qualquer eventualidade poderia significar o fim do pouco que dispunha.
Depois de tanto tempo e desencanto, Caio esmoreceu e começou a pensar em um trabalho assalariado. Tanta gente vivia dessa forma. Poderia trabalhar para terceiros, ou mesmo em uma rede de supermercados, com a experiência que acreditava possuir, na condução de um negócio do varejo de alimentos.
Costumeiramente levava sua Ximbica para abastecer às segundas-feiras. Quando habitualmente enchia apenas meio tanque, por entender ser o suficiente.
Nos meses de verão, havia um pequeno aumento no movimento de sua loja, quando então contratava um funcionário temporário para ajudar com o aumento do público. Por conta disso, ficava à frente do negócio e mandava seu funcionário cuidar de abastecer o carro às segundas-feiras.
A vida prosseguia sem grandes mudanças, a não ser aquele aumento de consumo no verão. A despeito da situação se encontrar encruada, e já há bastante tempo, o taberneiro não enxergava outra possibilidade que pudesse fazer alguma diferença para aquele, já antigo cenário.
Irritado e descontrolado, era comum encontrar o taberneiro, desequilibrado, xingando seu velho furgão, como se tal atitude pudesse contribuir para alguma melhoria. Bastava se referir à velha Kombi, para se iniciar uma saraivada de impropérios.
Até que um certo dia, o homem teve um surto psicótico, fruto também de muita estafa. Dias e dias de movimento fraco, contas se acumulando, o tanque da Ximbica quase vazio.
Deixou seu desequilíbrio tomar conta, arranjou um cabo de picareta, e cheio de cólera investiu contra o veículo, transformando-o em mata-borrão de sua mente perturbada.
Acertou vários golpes nos vidros e na carroceria, sendo detido por moradores que o conheciam de longa data, ainda que não compreendessem com mais clareza, o motivo de tanta indignação para com o furgão.
— O que houve Caio, o que aconteceu? Quer destruir a Kombi? Assim você vai conseguir.
— Não é só a Kombi, não. Vou tocar fogo nesse lugar desgraçado. Isso aqui foi uma desgraça na minha vida!
Por entre uma crise de choro compulsivo, o homem foi levado às pressas para um posto de pronto atendimento médico. Enquanto seu único funcionário cuidava do pequeno e pobre estabelecimento em sua rápida ausência.
Dois dias depois, Caio já estava de volta, a despeito das recomendações médicas, no sentido de que tirasse uns quinze dias para repousar. Conferiu rapidamente seu registro de estoque e percebeu que estava tudo em ordem.
Lembrou da Ximbica velha, e foi verificar o veículo semidestruído. O estado do furgão era deplorável. Todo amassado e os vidros quebrados. Por sorte o para-brisa dianteiro ainda estava no lugar, ainda que trincado com as pancadas desferidas por Caio, em seu repentino acesso de violência.
Pediu ao Lauro, o funcionário, para pegar algum dinheiro no caixa, e abastecer a velha Ximbica. Destruída ou não, o fato é que só existia ela.
Foi quando Lauro se aproximou de Caio.
— Eu sei que é chato, mas eu preciso lhe contar. Está me incomodando ficar escondendo as coisas, então eu acho melhor contar tudo, aí resolva o que achar melhor.
Parou um instante, como quem toma coragem, e depois prosseguiu com o resto da história.
— Sabe, eu tenho andado meio aperreado lá por casa. E aqui eu ganho muito pouco. E a minha situação estava ficando difícil, aí eu fiz uma besteira, Caio. Era para ser por pouco tempo, mas acabou se arrastando.
Caio, entre a decepção e a surpresa, estava sem fala. Tinha acabado de verificar as contas da loja e não havia encontrado nade de errado. Não faltava um único real, estava tudo lá. Caio não entendeu.
— Desembucha de uma vez Lauro. O que foi que você fez?
Lauro, abatido, completou o restante da história.
— Na segunda-feira, quando me dava o dinheiro para abastecer a Ximbica, eu só abastecia metade do dinheiro, e ficava com o resto. Só que a situação foi ficando mais difícil, e eu passei a só abastecer um terço, e ficava com o restante.
Caio ouvia a malícia patética de Lauro. Só que quanto mais o funcionário contava, menos fazia sentido. O valor que era repassado para o Lauro abastecer era, pequeno. Nunca lhe passou grande coisa em dinheiro. E Lauro estava assumindo que só abastecia metade, ficando com o resto. Pior, dizia que chegou a comprar apenas um terço de combustível.
— Você só colocava um terço de tanque de gasolina, é isso mesmo que você está me dizendo?
— Eu sei que é chato Caio, e eu sei que o que fiz foi errado. Só que não foi só isso não.
— Você está querendo dizer que foi ainda menor?
— Infelizmente Caio. Como você nunca reclamava, eu pensei que você estava completando. Então, passei a colocar só um sexto.
— Como é, você falou um sexto?
— É, Caio, eu ia devolver, só que nunca dava para fazer isso.
— Quando foi que você passou a colocar tão pouca gasolina?
— Foi a um mês, mais ou menos.
Aquela história estava ficando cada vez mais sem pé e sem cabeça. Caio sabia que nunca havia completado o combustível da semana, pois desconhecia a atitude de Lauro, e o valor que mandava abastecer, julgava ser suficiente.
Como foi que a Ximbica velha fez para rodar toda a semana com tão pouco combustível? Só tinha um jeito de saber.
Lauro pesaroso, dizia.
— Eu vou dar um jeito de repor Caio, pode ter certeza.
— Esquece isso Lauro.
Caio respondeu a Lauro, deu-lhe as costas e foi até a Ximbica.
Como o medidor de combustível não funcionava, e há muito tempo, pegou um pedaço de pau e meteu dentro do tanque. Estimou a quantidade de gasolina disponível em dois ou três litros, não mais que isso.
Entrou no carro, deu a partida e rodou cerca de 20 quilômetros. Depois, parou no posto e abasteceu apenas três litros. Retornou e fechou a loja. Não demitiu Lauro. Deu-lhe a chave, e avisou-lhe para chegar cedo e abrir a loja no dia seguinte.
Com ar de empreendedor, coisa que nunca mais havia experimentado, passou a noite pensando naquele carro velho, e naquilo que estava acontecendo, pois não havia explicação no campo da racionalidade. Esperou a manhã seguinte, e já bem cedo, ao invés de seguir para seu mercadinho, foi para os bairros próximos fazer lotação, atendendo as pessoas que iam para o trabalho.
Clandestino ou não, amassado ou não, Caio rodou a manhã toda. Nas manhãs seguintes também, até a semana terminar. Na segunda-feira da outra semana, sem falta, lá estava o empreendedor, orgulhoso com sua Kombi velha.
Parou no posto, abasteceu os três litros da semana e foi para o novo negócio. Mandou reformar a sua Ximbica. Lhe deu uma cara nova, e prosseguiu no transporte de passageiros. Regularizou a atividade junto à prefeitura e assumiu de vez o novo ramo.
Ofereceu a Lauro o aluguel de seu mercadinho, pela bagatela de 1000 reais. Lauro achou a oferta ótima, pois com os 2500 reais restantes do faturamento, já estava em um novo patamar de renda.
Passou a controlar religiosamente o consumo da sua Ximbica. O ex-surtado estava faturando quatro vezes mais com a Ximbica, do que com o mercadinho. Isto lhe rendia 14000 reais, além dos 1000 do aluguel. Com 15000 reais no bolso, sentiu-se um microempresário realizado.
Não era mágica não, era a descoberta do Caio. Com três litros por semana, a Kombi do Caio era um colosso; uma primazia da indústria nacional; edição única. Estava percorrendo o equivalente a 1045 quilômetros por litro de gasolina, misturada com etanol a 27%.
Etanol, era este elemento sinistro que provocava a baixa de rendimento, mas tudo bem. Caio havia se tornado um homem simples; humilde; modesto e querido por seus passageiros. Só não contava nada para ninguém.
Não havia nenhuma sombra de dúvida. Aquele que passou a ser o segredo mais bem guardado da vida do Caio, era o sonho de todo e qualquer perueiro. Só não podia ter um segundo veículo, pois poderia muito bem não funcionar. Achou melhor deixar tudo como estava.
E foi assim que a coisa aconteceu. Caso apareça por perto de você, é uma Kombi, 1969. Fácil de reconhecer pelos dois vidros retos, pois o para-brisa dianteiro, era dividido ao meio.
Está pintada de azul claro na parte lateral e de branco na parte superior. O furgão, outrora surrado, agora é mantido tal e qual uma joia. Caio, o microempreendedor, continua nas rotas dos subúrbios da cidade até hoje.