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terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

O enviado

                                                                                  

                                                                                                                                              Foto: MichaelGaida

 

Por: Antonio Mata

Quem diria que naquelas  cabecinhas lá embaixo, pudessem guardar seus mundinhos particulares;  suas experiências;  necessidades e tantos conflitos.

Vista da altura do 15° andar, a cidade parecia menor, mais concentrada. Os carros,  ônibus e caminhões passando. Tudo com a regularidade  de um formigueiro. O apartamento, bem lá no alto; foi ideia sua. Poderia ter escolhido um andar mais baixo, afinal tinha sido um dos primeiros compradores.

Queria um lugar que lhe garantisse avistar o céu e as nuvens o mais desimpedido possível, para usar como achasse melhor, sentia esta necessidade de um refúgio.

O céu azul com  faixas de cirros adornando de branco o fundo matizado,  o vento suave  e o ar fresco anunciavam mais uma manhã de verão.

Mesmo para aqueles que vinham de muitas manhãs e de muitos verões,  no desenrolar lento da vida de cada um. O tempo de se refletir e repassar episódios ficados para trás  há muito havia chegado.

Já  na casa dos 82 anos  reunira as energias restantes e, teimosamente, havia decidido permanecer sozinho. Os filhos já estavam longe há bastante tempo.  Elielma havia partido já fazia quatro anos.

Dois dos quais, acossada pelo anjo cinzento do câncer, que finalmente a levou.  Octaviano ainda sentia falta da companheira daqueles 53 anos de jornada e das suas recomendações e reclamações.

Iolanda sua filha, insistiu para que aceitasse uma cuidadora de idosos para não ter que permanecer sozinho por todo o dia, mas, teimoso e irascível, não quis.

Era independente demais, também não aceitou ficar na casa de um dos filhos. Gostava de onde morava e da vida na cidade.  Não queria maiores mudanças. Como estivesse decidido,  Iolanda resolveu não intervir mais.

Sentia vontade de descer, sair e circular um pouco. Entretanto,  na confusão das ruas não se sentia à vontade,  aliás nunca havia gostado de muito movimento.

Cidade é  aglomeração em movimento, costumava dizer para Elielma em outros tempos. Agora havia se tornado mais difícil,  porém não impossível. Aguardava o início da manhã. Nas primeiras horas do dia era mais fresco e mais tranquilo.

Uma e outra passagem  na padaria perto do edifício. Eventualmente comprar o jornal impresso, nessa mesma viajem. Olhar gravuras e fotos, ler pelo hábito.

As notícias agora lhe dizem muito pouco. São desinteressantes tratando de coisas que já não fazem o mesmo sentido que faziam antes.

Prosseguia no seu entendimento geral reservado aos jornais impressos;  90% não serve para nada. O ato de comprar é só um exercício. Lá pelas 08:30h, dizia, já pode até ser vendido a quilo.

Sua parte naquela bela manhã já terá sido cumprida. É bastante fácil de entender. Classificados não se precisa mais, e quase não aparece mais em jornais impressos.

Não pretende ir ao cinema, nem sozinho. Não vai comprar nada nem visitar lugar nenhum. Já não se permite mais atrair pela deprimente seção policial.

Talvez algum interesse pelas notícias de política, só para efeito de conhecimento. No mais, é o manuseio habitual e repetitivo daquelas folhas ainda com cheiro de tinta.

A notícia boa que havia recebido era por conta da visita dos filhos. Ficaram de vir com os netos, já adultos, dois com cada um dos três filhos, além dos dois primeiros bisnetos.

Haviam combinado de vir para as festas de fim de ano. Oportunidade para rever e reunir todo mundo.

A despeito de ter recebido apoio dos filhos,  optou por ficar só. Era lúcido e gostava de privacidade, assim preferiu o apartamento e a vida um tanto quanto solitária.

Como sempre havia ainda aquelas restrições médicas e as consequentes mudanças na alimentação, nem sempre atendidas, com um e outro deslize de vez em quando. Nada muito comprometedor. O médico havia passado uma lista de coisas que poderiam matá-lo, e vivia resmungando com a comida por causa disso. Até que certo dia, soube de uma mulher, de um certo país da África, que fazia biscoitos de argila com sal para dar para as crianças, à beira da inanição. Ficou tão constrangido com aquele episódio, que nunca mais quis saber de reclamar da comida.

Para cuidar das coisas deixadas gradativamente espalhadas, havia ainda a Mirtes. Todas as terças-feiras chegava cedo para dar um trato e ajeitar tudo.

Já trabalhava no local ainda ao tempo em que Elielma vivia com Octaviano e os filhos. Prosseguiu no mesmo serviço, gostava da família e conhecia os filhos e os netos.

Lidar com o taciturno Octaviano, não era algo lá muito difícil, era só ter paciência, dizia. O velho, em que pese a determinação em querer cuidar de si mesmo, parecia se fechar em suas próprias lembranças e hábitos.

Rondavam as esquinas escuras de sua mente os fantasmas cinzentos que muito atormentam os humanos, a solidão e a depressão. A dificuldade para se situar nas diversas fases da vida, sem acreditar que foi deixado para trás, que os demais o esqueceram. Contraditório o suficiente para não se dar conta de que, de certa forma; foi esta a sua própria escolha, e não a dos demais.

Octaviano foi bancário ao longo da vida. Daqueles que tinham desvio na coluna de tanto ficar debruçado no balcão do guichê de atendimento, o caixa.

Era o tempo de se contar dinheiro na mão, o tempo do Cabral estampado na cédula, ... Moedas de alumínio,  que ideia mais besta, pensava. Contar 300 mil, 400 mil cruzeiros na mão. Era hábil na contagem manual de cédulas,  somadas com rapidez e precisão.

Tinha dias de se contar meio milhão, com os saldos parciais somados em máquinas calculadoras mecânicas. Mas, não havia do que reclamar.

Ante a falta de energia,  o que era algo comum,  o serviço prosseguia normal com o acionamento mecânico no braço,  tal e qual no século XIX. Tudo bem, mas havia suas pequenas compensações, afinal ninguém é de ferro. Não é assim que se diz?

Gostava de fazer o serviço do caixa, função esta que tinha a  sua preferência. Já havia se acostumado, conhecia bem e era onde podia, com um pouco de jeito, facilitar a aquisição de algumas geladas, após o expediente.

As pequenas malandragens da juventude, nada tão condenável; justificava para si mesmo. Todo caixa costuma gerar pequenas sobras no final do dia, pensava, ou se justificava.

Não havia o controle digital como existe hoje. Bastava ter a sensatez de se tirar as geladas, mas sempre deixar alguma sobra de caixa para ser computada pelo supervisor.

Pronto, missão cumprida e tudo acabado, dentro dos conformes; e sem amolação por causa disso. Ninguém se sentiria prejudicado por causa de alguns trocados.

Os espíritas dizem que aqueles que trabalham manuseando muito dinheiro são espíritos em processo de provação. Por que será? Como foi que chegaram e esta conclusão?

Ele não sabia, não tinha lido e ninguém lhe contou. Pelo menos não dessa forma. É que em um mundo atrasado e cheio de gente mentirosa como o nosso, há um dispositivo, entendamos assim, conhecido como perispírito. Entre outras coisas, ele funciona também como a ponta do dedo do capeta. Não importa o que se faça, ele vai registrar tudo.

A cerveja do final do expediente, a batata frita, a porção de frango à passarinho; os ingressos para levar a garota no cinema; o suco de laranja que ela pediu. Tudo, simplesmente tudo, fica registrado. De que outra forma se haveria de cobrar até o último tostão (ou centil, se você preferir), até a última falta? Haveria de existir um mecanismo, não é mesmo?

Houve um tempo em que era encarregado de entrar na caixa forte do banco para retirar grandes somas em dinheiro vivo. Os cuidados eram redobrados e minuciosos.

Roupa lisa, sem bolsos, sapatos fechados e sem meias, calças pegando siri com os tendões brancos de Octaviano à vista. Isto lhe aconteceu nos tempos da inflação alta.

Eram muitos maços de cédulas novas cobrindo todas as laterais da sala do cofre em estantes de altura regular. Tudo para dar entrada no meio circulante.

Maços grandes de cédulas, sem nenhum vinco, com aquele cheiro característico de tinta em dinheiro novo. Um perfume perturbador, capaz de atrair os cultos; os ignorantes; e os vigaristas também.

Era rápido que a maré inflacionária vigente no país, como um câncer, um cupim especializado em comer só dinheiro, acabava com o valor daquelas notas novinhas. Para citar só uma das marés, pois havia presenciado várias.

Olhando pela janela o céu azulado lá fora, atentava para os detalhes dos dias recentes. Havia certas ocasiões em que, quando menos esperava, nem estava pensando nela, mas logo de início sentia a presença de Elielma.

Não se importava muito com isso, atribuindo às próprias lembranças que vez por outra surgiam em sua mente, e das quais de fato gostava.

Se sentia confortado por lembrar da esposa. Com o tempo deixou de ser só uma impressão. Podia ver Elielma claramente como se em casa estivesse. E ela estava.

Em uma dessas visitas, absolutamente aleatórias, raras e imprevisíveis, Elielma lhe dirigiu a palavra. Podia ouvir a esposa com muita clareza:

— Octaviano não poderei vir mais vezes, pois preciso cuidar de mim mesma. Mas você vai receber alguém muito querido para te acompanhar. Fica em paz, fica tranquilo.

Com a mesma facilidade com que chegou, Elielma desapareceu e dessa vez não retornou mais. Igual fantasma depois do exorcismo. Foi a primeira coisa em que pensou, só não sabe por que, já que também não sabia o que era exorcismo. Mas, afinal, não teve aquele filme “O exorcista”? Então, deve ter sido por isso.

Octaviano entendeu a afirmação, mas não se motivou nem um pouco. Já havia a Mirtes cuidando da arrumação semanal. Não precisava ficar mais dias, nem ele queria. Com a cuidadora que Iolanda havia sugerido, continuava pensando do mesmo modo,  não via necessidade nem tinha interesse. Ir para a casa de um dos filhos;  isso nem pensar. Asilo é coisa de gente louca, antes escorregar e morrer batendo com a cabeça na quina da banheira. Comum; banal; muito idoso e bem real.

Elielma deve ter feito confusão,  até porque, não queria receber ninguém, pensava. Tentava imaginar se não haveria ainda, algum outro significado, alguma outra coisa nas palavras da falecida que talvez não tivesse prestado atenção antes. Porém, não encontrava nenhum. Agora sim, Octaviano assumiu que não tinha entendido nada. Deixa pra lá,  o futuro a Deus pertence,  pensou ainda.

De tudo o que Elielma disse, pôde perceber que uma coisa se concretizou logo. Os dias se transformaram em semanas, que se transformaram em meses, e ela não mais voltou,  nem se fez ouvir. Agora só no pensamento e na saudade, imaginava Octaviano. Conformou-se em acreditar que aquilo poderia muito bem ter sido fruto de sua própria imaginação.

Foi ainda Mirtes a primeira pessoa a sugerir que Octaviano poderia muito bem ter visto o espírito de Elielma, e que o recado oferecido, não deveria cair no esquecimento.  O que mais justificaria tal mensagem? O significado verdadeiro haveria de aparecer. Tudo seria apenas uma questão de tempo até este significado surgir. Mas o próprio Octaviano não levava muito a sério as coisas que Mirtes dizia. Mera opinião de empregada doméstica.

Outro dia, já cedo Octaviano foi à padaria como de costume e mecanicamente foi comprar seu jornal. Não deu muita atenção ao vira-latas que o seguiu até a banca para conversar amenidades com o vendedor e pegar o jornal. Despediu-se e seguiu de volta ao edifício onde morava.  O vira-latas resoluto fez o mesmo.

Ao entrar no prédio, o cachorro de rua fez menção de acompanhá-lo, sendo repelido raivosamente. No dia seguinte o episódio se repetiu. E de novo , e de novo, e de novo. Xingava, esbravejava,  jogava pedras no intuito de espantar o bicho, mas o cachorro voltava. Era um troço magnético, bastava colocar o pé na rua que o vira-lata aparecia,  como que por encanto.

Octaviano havia encontrado um adversário tão persistente e decidido quanto ele. Subia para o 15° andar com o jornal e o pão,  imaginando um jeito de se livrar do cão. Havia pensado em acionar a “carrocinha" do serviço municipal de zoonoses. Fez contato com o setor e obteve como resposta que a viatura para recolhimento de animais estava danificada e o serviço indisponível momentaneamente.

Aborrecido, sugeriu à funcionária que o atendia ao telefone,  que mandasse o funcionário da captura em um táxi, e quando ele chegasse e capturasse o cão, ele mesmo Octaviano, pagaria o táxi, ida e volta, para que o funcionário retornasse levando o cachorro, motivo do imbróglio, junto com ele. Sua interlocutora desconsiderou sua proposta e sugeriu que aguardasse a recuperação da viatura e o restabelecimento do serviço.

Octaviano,  que não era de se dar por vencido fácil , propôs ainda, “e se eu mesmo levar o cachorro?”. No que a funcionária retrucou,  “se o senhor conseguir pegar o cão e trazê-lo até aqui, nós o receberemos”. O velho então, gostou do que ouviu. A hora de se livrar daquele bicho infernal estava finalmente chegando. Só tinha um problema,  faltava pegar o cachorro.

Já havia delineado o plano na sua mente. Chamaria o Godofredo, um biscateiro, para pegar o cão e junto com ele,  entregar o bicho no serviço de zoonoses, por apenas alguns trocados e mais o táxi. O bicho estava próximo de ser recolhido. Depois de algum trabalho,  Godofredo prendeu o cão, que no final das contas, era manso, só estava assustado.

Passou na primeira fase,  e faltava a seguinte. Achar um motorista de táxi que aceitasse levar um animal de rua no seu carro. Apresentavam o cão amarrado e pediam para levá-lo até a zoonoses, mas os motoristas não permitiam. Na quinta tentativa, Octaviano desistiu e reconheceu que nenhum taxista levaria aquele cachorro de rua.

Desistiu e desejou que o cachorro desaparecesse. O que de fato não aconteceu. Semanas se arrastando e o cachorro Parecia grudado,  magneticamente preso ao velho. Bastava descer e sair do prédio para que aparecesse e se pusesse a acompanhá-lo. Era um bicho magro, pelo curto, cor de caramelo. Sem nenhum atrativo que particularmente chamasse a atenção.

Pela manhã, bem cedo, Octaviano chegava até a rua já sabendo que o vira-lata estaria lá bem na sua frente, como quem espera, aguarda por alguém com o qual combinou alguma coisa, e, solícito e pontual, chega na frente,  chega primeiro e se apresenta para o combinado do dia. Mesmo que este combinado não exista, vai estar lá do mesmo jeito.

Logo a seguir se põe a segui-lo, do lado direito, junto e na passada do velho. O acompanha até à porta da padaria, se detém junto à entrada e mais uma vez aguarda o velho retornar com os pães. Sente o cheiro do pão fresco, olha com aquela cara de pidão e flagelado. É  invariavelmente ignorado pelo velho, e parte ao lado direito, junto e na passada do seu eleito.

Cachorro de rua às vezes tem pela frente um desafio tão necessário quanto pouco observado. Precisa fazer a sensibilização daqueles que cruzam o seu caminho. Para comer,  para brincar, para acompanhar, ficar junto, e até para arranjar um dono. São como estratégias de sobrevivência criadas pelo animal para assegurar sua própria existência, já que sua condição de animal doméstico lhe tira por demais a iniciativa de obter comida atacando os demais.

Cumpre seu contrato social sem que o outro lado se preocupe em fazer o mesmo. Para o cão que vive na rua o fator tempo é fundamental. Precisa dar um jeito de construir sua sensibilização rápido. Principalmente quanto a arranjar um dono. Isto precisa acontecer logo de modo a poder tirar proveito de suas condições naturais.

Na medida em que o tempo passa, elas vão se perder e o animal começa a definhar. Ele tem muito pouco tempo. Peso e pelos fazem parte da beleza natural que conquistou os humanos. Quanto mais ele perde mais se condena. O número de pessoas dispostas a aceitá-los cai drasticamente. O vira-lata cor de  caramelo desta história já estava entrando neste limiar alto.

Havia sido abandonado por conta do desemprego dos antigos donos. Depois de um ano de biscates, surgiu a oportunidade de um emprego regular, mas por um salário menor. A família teve de deixar a casa alugada por um apartamento mais afastado, porém, mais barato. Cor de caramelo não caiu do caminhão que transportava a mudança. Foi posto para fora, retiraram a guia de sua coleira, e o caminhão se foi.

Deixado nas ruas já adulto,  a fase da busca pelo antigo dono já havia passado. A busca diária por comida era uma urgência e com ela todas as estratégias para a obtenção de alimento. Desde o olhar de pidão, a mais singela das lições, pedir pela absoluta e total necessidade, até o furto puro e simples.  Daí a expressão “apanhou igual cachorro ladrão”. Na realidade furtou porque tinha fome.

Naquele dia amanheceu chovendo. Havia chovido desde a noite anterior. Era início de inverno e o frio já incomodava as articulações de Octaviano, mais que o normal. Pela manhã queria sair e cumprir seu ritual matutino, até porque estava sem café, e por mais que lhe dissessem que trigo branco faz mal,  não sabia abrir mão do pãozinho com manteiga e café de todas as manhãs.

Mas, o que precisava mesmo, é que a porcaria da chuva parasse, pelo menos um pouco, assim pensava. Com praga  ou sem praga, o fato é que com hora e meia de atraso, privilégio de aposentado, foi possível descer para pegar o pão e o café. Rápido como pôde e equilibrando o guarda- chuva, foi até a padaria na busca do que precisava, pouco prestando atenção em quem estivesse lhe seguindo.

Saiu do local, e aí sim, pôde ver o vira-lata mais uma vez, molhado, tangido de frio, mas caminhando junto à sua direita. Parou, olhou bem para o animal magro e molhado. E pela primeira vez,  diante daquele cão sem dono e anônimo, fez valer sua condição falivelmente humana e se compadeceu do bicho. Atirou-lhe um pãozinho francês que o cachorro pegou no ar.

Virou-se e retomou a caminhada para casa. Seguia satisfeito por ter enxergado o cão de uma outra maneira. Não era do seu costume tais gestos, mas, como sempre pode se fazer diferente, achou por bem inovar. Afinal, custou só o preço de um pãozinho. Pensando em tais coisas, atravessou a rua na direção de seu edifício, quando viu o cão atravessando junto com ele e carregando o pão na boca.

Falou para o bicho sair dali e o enxotou com o pé, mas sem atingi-lo. Prosseguiu até a portaria e o cachorro havia se colocado diante dele, e o olhava com o pão na boca. A chuva começou a engrossar novamente e molhava o vira-lata sentado na calçada. Octaviano já havia feito a sua boa ação do dia. Aquele cachorro estava abusando de um direito que não era seu e ele não tinha nada a ver nem com a chuva nem com o cão.

Pensou por alguns instantes na amolação que seu gesto poderia trazer e, ainda um tanto quanto hesitante, com um meio sorriso entre dentes, pensou consigo mesmo “eu não acredito nisso...”. Tomou o caminho da entrada de serviço e chamou o cão para entrar com ele. O cão,  molhado e com frio, mas solícito, entendeu e atendeu rapidamente. Pois é, estratégia de cachorro..., pensa.

Conduzido até ao elevador, entrou rapidamente com Octaviano em seguida. Ao chegarem no andar indicado, notou que o cachorro saiu e ficou aguardando que deixasse o elevador e indicasse o apartamento. Agia como quem tinha afinidade com tais ambientes. Ficou surpreso por um momento. Não parecia ser tão cachorro de rua quanto Octaviano imaginava até ali.

Lembrou de Mirtes lhe sugerindo que  arranjasse um bicho de estimação que lhe servisse de companhia e lhe ocupasse um pouco mais, com outra coisa para além de suas lembranças. Um animalzinho para encher o tempo e ouvir suas reclamações sem reclamar de volta.

Pensava no comentário e achava graça da diarista, que deve ter pensado em toda a sorte de cachorro, menos naquele que estava sentado ali na sua frente. Descontado o fato de estar muito magro, o animal bicolor, castanho com as patas brancas, não apresentava maiores atrativos. No dia seguinte, quem sabe com um tempo melhor, mais seco, cuidaria de um banho para o bicho.

O cão finalmente relaxou e deitou-se para melhor comer o pãozinho que havia recebido de seu benfeitor. Enquanto comia, Octaviano providenciou uma vasilha com água para o novo parceiro. Aparentemente a sarna ainda não havia chegado até ele. Providenciaria um pouco de carne cozida com arroz,  até o dia seguinte, quando pediria à Mirtes para ficar com o animal enquanto trazia ração do supermercado.

Com os novos planos funcionando já na manhã seguinte e com o auxílio de Mirtes, o novo morador do prédio,  já com o nome de Caramelo, se ajeitava junto de seu dono, ainda silencioso, mas não por muito tempo. Logo substituiria os poucos momentos em que Mirtes parava para conversar com Octaviano. Ainda que não oferecesse respostas sonoras e imediatas ao velho, era evidente que o ouvia com um olhar de quem prestava muita atenção.

De fato, seria este um de seus principais papéis, ora prestigiando seu interlocutor com viva atenção de quem tudo compreende e não discute,  ora tirando cochilos mal disfarçados. Atestando que a atenção e a paciência haviam cessado, e que o ideal é que o velho deixasse o falatório para outra ocasião. Era ótimo, já estavam aprendendo se reconhecer mutuamente.

Também não demorou para caramelo entender que o velho não gostava que ele subisse em cima da cama ou do sofá. Providenciou um estrado acolchoado para Caramelo dormir, mas com o tempo,  não se incomodava mais quando Caramelo meio desconfiado chegava, e muito discretamente ia se deitar ao pé da cama de seu dono.

Então foi deixando de repreendê-lo pelo que, de início considerava um acinte, e rosnava para que o cão voltasse para sua cama. Aos poucos e sem pressa,  Caramelo ia vencendo as rabugices do velho Octaviano,  que já conseguia sorrir das brincadeiras do amigo ,deitado e se esfregando no chão, ou saltando para pegar um pequeno biscoito no ar.

As conversas de frente para a grande janela envidraçada, de onde podia enxergar o céu azul e parte das ruas do bairro, que servia de moldura aos dois parceiros, sempre presentes nos momentos de reflexão,  ou simplesmente para afastar a solidão, pontuaram também as mudanças de atitude.

 Caramelo se fez merecedor dos afagos e do carinho de seu dono. Também para ele o momento fugidio da juventude já estava ficando para trás e o fato de ter de ficar na companhia de um velho não lhe pesava nem um pouco. Em breve seria outro que precisaria daquela vida cadenciada e de passos lentos. Não era grande coisa, mas era melhor assim.

Octaviano igualmente pelo seu lado, não se aborrecia mais com o cão e lentamente, na passada cadenciada daqueles que já assistiram a passagem de muitos dias, foi deixando as próprias rabugices de lado, substituídas por um pouco mais de observação e compreensão.

Apegou-se ao animal gradativamente e sem o perceber,  quando em algum momento,  pensando em Elielma, se deu conta do recado que havia recebido, e de uma forma tão sutil. Sentia-se aliviado por ter compreendido, e agradecido à Elielma por ter se importado em avisá-lo que Caramelo estava a caminho, mesmo que de início não tivesse compreendido e tenha sido arredio e até agressivo com o recém-chegado visitante.

Compreendia mais fácil o papel que Caramelo, o antigo cachorro de rua possuía em sua vida. O sentimento de solidão ainda prosseguia, porém mais aliviado e contido pela presença do amigo que não fala,  mas presta atenção até nos detalhes. A extensa reflexão da terceira idade, era  muito útil para a depuração do espírito.

Submetido a um corpo maltratado por décadas de excessos e incompreensões,  que agora se manifestam sob a forma da dor. Agora tem o amparo de um pequeno benfeitor no mundo físico, de modo que se possa suportar os anos finais de uma maneira um pouco mais abrandada, isto segundo a programação da experiência de vida de cada um.

Caramelo era o auxílio, absorvendo as energias de baixa vibração de Octaviano para que este pudesse levar sua trajetória física até o final de uma forma um pouco menos sofrida. Um vira-lata dentro de casa não é perturbação, é bênção. Para uma humanidade carente de expressar sentimentos e de estender as mãos, cuidar de um animal é exercício para fixação de novos valores.

Em certa manhã, dia de semana, Octaviano achou de fazer algo que costumeiramente não fazia. Num apupo de independência, resolveu se dirigir ao banco. Encasquetou que queria dinheiro vivo para levar no bolso. Romero, seu filho mais velho, era o responsável pelo serviço mensal das contas e compras para seu pai.

Assim o desobrigava de tais preocupações e providências. Já era de praxe deixar algum dinheiro com seu pai, pois sabia de seus hábitos, do pão fresco e do jornal todas as manhãs. De qualquer modo, bastaria que Octaviano lhe avisasse. Mas, não era o que o velho Octaviano tinha em mente desta vez. Queria ele mesmo colocar tudo em dia por sua própria iniciativa, como outrora fazia, ele mesmo decidindo o que fazer primeiro e assim por diante.

Aproveitaria a ocasião para levar Caramelo a outras esquinas e paisagens urbanas que ele talvez não conhecesse, assim pensava. Mas, poderia fazer compras e depois solicitar que fosse entregue em seu endereço. Outras necessidades de pagamento poderiam ser resolvidas no próprio banco. Nada demais, porém desejava aproveitar a passagem no caixa do banco e sacar seu próprio dinheiro.

Foi de relance que se deu conta de que não  poderia fazer tais coisas e ao mesmo tempo levar Caramelo para acompanhá-lo. Isso não é nada, eu irei sozinho e resolvo tudo, pensava o ancião com toda a segurança. Desta vez, deixou o cachorro dentro do apartamento e partiu só para as providências que pretendia tomar sem a ajuda de terceiros.

Foi ao supermercado, conforme planejado, adquiriu tudo o que necessitava e estabeleceu a entrega para aquela mesma tarde, quando imaginava já estar em casa. Então dirigiu-se ao banco. No caixa eletrônico realizou os pagamentos habituais do mês. Estando tudo certo realizou um saque em dinheiro para as despesas do dia a dia, em dinheiro.

Estava satisfeito consigo mesmo, pois havia demonstrado ter condições de sustentar sua própria autonomia. Romero teria uma surpresa dessa vez, acreditava, ao lembrar do filho. Saiu do banco e se pôs a caminho de casa. Se achou um tanto quanto cansado, já era quase meio dia, mas estava satisfeito com a façanha independente daquela manhã. Gostou muito de fazer aquilo.

Foi tudo muito rápido. Um braço por detrás, a gravata a estrangulá-lo, a faca espetada na altura do rim esquerdo e um outro meliante sem demora revirava seus bolsos. Tomou o pequeno maço de cédulas, carteira, documentos, cartão de crédito, fotografias da esposa, filhos e netos juntos. Tudo perdido em poucos segundos. Foi atirado ao chão e desapareceram. Ferido, assustado e sem fôlego, assim terminava a manhã de Octaviano.

Chegou a bronca e o descontentamento de Romero. A amolação de ter que bloquear o cartão do pai, fazer o b.o. comunicando o assalto e a agressão, o dinheiro perdido. Tudo isso se amplificava na cabeça de Romero e ecoava na cabeça de Octaviano, sem que Romero pudesse naquele momento atentar para algo fundamental. De tudo o que ocorreu, as perdas eram basicamente materiais, e apesar do risco daquele episódio, seu velho pai estava vivo e praticamente ileso, não fossem pequenas escoriações no braço direito.

A façanha encerrou com a liberdade financeira de poder usar seu próprio cartão bancário. Romero bloqueou o cartão antigo, mas quando recebeu o novo, não repassou a seu pai por simples precaução. Havia perdido a confiança. Doravante somente deixaria os pequenos valores em cédulas como fazia antes. Octaviano afinal, entendeu.

Acabrunhado e triste, havia assumido um comportamento letárgico no qual somente Caramelo conseguia animá-lo e trazê-lo de volta ao seu próprio sentido de normalidade, conversando com o cão e cuidando dos seus passeios matinais e de fim de tarde nas proximidades do prédio. Não levou a sério os pedidos do filho no sentido de permanecer dentro de casa.

Assim consumia seus dias,  já se passando seis anos desde que o fiel Caramelo havia chegado. O cão hostilizado do passado era agora a principal figura do apartamento vazio. Já não brincava como antes. Tinha o rosto esbranquiçado, ao redor dos olhos e na direção da boca. Também estava fraco tendo Octaviano reduzido a distância dos passeios, e a frequência a um mínimo necessário para não forçar nem Caramelo, nem a si próprio.

Conversando com um veterinário, o mesmo estimou a idade do cão, em no mínimo 14 anos. O tempo de permanência do velho cão também caminhava para o final. Estadia rápida de quem chegou já adulto e perdido nas ruas. Teria chegado então, retirado do caminhão de mudanças, em torno dos oito anos de idade. Veio como quem oferece o alento das mãos estendidas àquele que precisa.

Veio para o seu papel fundamental de esponja viva sobre patas, absorvendo a pestilência vibratória, os miasmas que cercavam seu dono, males estes criados por ele mesmo através da mente viciada e doentia dos seres terrestres. É o motivo da nossa condenação e do cárcere na matéria do corpo físico. Preso antigo, rebelde e milenar. Precisando gastar o tempo, aliviar a opressão do espírito pela dor do corpo, envelhecendo e depurando-se.

Manhã ensolarada de segunda-feira, olhando da janela a vida lá embaixo estava agitada naquele mês de abril de 1995. Estava particularmente contente. Tivera ótimas impressões da noite  bem dormida. Acreditava ter sonhado, só não lembrava com o quê, ou com quem. Mas não perdeu muito tempo pensando nisso. Pegou a guia perto da porta, e bastou este gesto para Caramelo entender que estava na hora de descer mais uma vez junto do seu amigo.

Saíram satisfeitos do elevador, cruzaram o corredor rumo ao portão de serviço. Fosse porque viu Octaviano de bom humor e bem-disposto, fosse porque também estava igual, o fato é que ambos haviam sido contagiados pela mesma força benéfica que eleva homens e animais. Foram até a esquina, junto ao semáforo e aguardavam por alguns instantes. Octaviano olhou para o rosto envelhecido do amigo caramelo, e este lhe retribuiu o olhar simpático com aquele sorriso tipicamente canino.

Octaviano se adiantou para atravessar a rua e Caramelo, prontamente o seguiu. Em dois passos olhou à sua direita, só a tempo de ver a frente do caminhão que rapidamente avançava sobre ele. Com o braço direito puxou Caramelo para trás, mas já não havia tempo.

Ainda sentiu em seu lado esquerdo do tronco a pancada do veículo e seu corpo sendo arremessado para a direita e para baixo, com seu cão idoso passando por baixo dele, encontrando as rodas à direita do caminhão. Sentiu um certo torpor e o corpo subindo apoiado por mãos amigas que o seguravam como se tivesse o peso de uma pluma. Olhou para baixo e ainda a tempo de ver a si mesmo retorcido no chão e as patas de Caramelo, pois o corpo estava por debaixo do caminhão com o container pintado de branco.

Olhou logo à sua frente e, entre atônito e surpreso, viu o amigo no colo de outra pessoa que também os acompanhava flutuando, enquanto o local do sinistro ficava cada vez para trás. Foi do que pôde lembrar. Acordou junto de uma estrada de terra próxima a um bosque, debaixo de uma árvore. Levantou-se e viu Caramelo sorridente, balançando a cauda e dando aqueles beijos de cachorro, como quem diz que estava a esperar por ele.

Abraçou o velho amigo, e notou que ele já não tinha mais os pelos esbranquiçados e as rugas do rosto. Tomaram o rumo da estrada e Octaviano buscava se localizar, mas sem sucesso. Caminhavam sob o sol suave da manhã, quando puderam divisar a presença de alguém descendo a estrada na direção deles. Mais uma vez confuso, não acreditava nem no que via, nem no que estava acontecendo.

Octaviano, Caramelo, venham! Ouvindo a voz o cão saiu em disparada na direção de uma mulher trajando um vestido azul-claro. Octaviano fixou a vista e pôde distinguir o rosto de Elielma, toda sorridente ao longe. Apressou o passo na direção de sua amada, que já havia sido alcançada por Caramelo e brincava com ele.

Quanto mais via menos entendia. Não entendia sequer a atitude de seu cão,  agindo como se Elielma fosse uma velha conhecida. Lembrava-se do caminhão, mas Elielma estava bem ali na sua frente, jovem e de modo absolutamente real. Abraçou demoradamente a esposa e prosseguiram na estrada, rumo a um grupo de amigos que já estavam a espera, aguardando.

É bem verdade que o retorno ao outro lado da vida incorre em uma série de outras questões para que a experiência benfazeja de Octaviano possa se realizar. É parte dos sonhos humanos o desejo íntimo de rever e mais uma vez estar junto daqueles aos quais amamos e que se fizeram coparticipantes da grande e construtiva aventura da vida terrestre. “Tu és pó e ao pó retornarás”, ecoa em nossos ouvidos já há muito tempo. Entretanto, a forma do retorno depende da atitude diante do outro, do amor ao próximo, e do mérito alcançado.

 

                                                                                             FIM

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