Por: Antonio Mata
O vento congelante encontrou o grupo de forma inesperada e violenta. Pelas informações disponíveis, pouquíssimas, acreditava-se que naquela época estariam menos sujeitos às nevascas intensas e mortais.
A ventania gélida falava de um mau presságio. Os líderes se entreolharam e não havia o que questionar. Era se protegerem como fosse possível e depois, seguir adiante.
A marcha; seu desejo; seu anseio; a vontade forte. Chegara em sucessivos sonhos e inspirações. As falas invisíveis. As falas de quem não se vê, mas parece estar ali, tão próximo, tão integrado em propósitos e fé, que se poderia sentir seu corpo.
O céu, as estrelas, as forças da natureza. Algo ou alguém haveria de protegê-los sob condições tão severas. As vozes os acompanhavam. Se amontoaram com as crianças e mulheres ao centro, aguardando o vendaval inclemente passar.
Mais de duas horas depois, meio enterrados na neve e agarrados uns aos outros em busca de calor, puderam enfim se erguer e retomar a marcha rumo ao desconhecido.
Quase sempre à sua direita, aqui e ali, ficava visível o grande mar congelante. Preferível avançar dessa forma. Em seguida, ter de contornar a próxima elevação gelada ou a necessidade de um desvio mais ao norte, o escondia temporariamente.
Mais caminhada, porém, antes isso. Assumir o risco de cair em suas águas por um acidente era por demais nocivo. Em uma elevação congelada e escorregadia qualquer, era assinar a própria sentença de morte por hipotermia.
Isto, antes que alguém fosse louco o suficiente para tentar um resgate tão perigoso quanto suicida. Melhor nem pensar. As armadilhas brancas, de se prender, de se escorregar de se desabar, congelar ou afogar eram os filhos sinistros daquela imensidão gelada. Estavam por todos os lados.
Contudo, faixas de alguma vegetação e temperaturas um pouco mais baixas, surgiam sazonalmente próximo ao mar, para a satisfação e alegria de todos. Então, seria isto que buscavam?
Por conta da relativa melhoria climática junto ao mar, animais de caça seguiam nessa mesma faixa. Atrás deles, seus predadores. Entre eles o próprio homem.
Complicado assumir que junto dos homens e com o mesmo propósito de seguir sempre adiante poderiam surgir leões enormes, tão caçadores quanto eles e na busca de animais maiores ainda como o bisão, o mamute-lanoso ou a preguiça-gigante.
Eram os anões naquele confronto de gigantes. Daí a necessidade de se prosseguir sempre em grupos. Apesar dos perigos, vários grupos se estabeleceram naquelas terras próximas ao mar, em suas melhores localizações. As mais aquecidas, entenda-se. Já que todos buscavam calor, caçadores e caças acabavam juntos.
Próximo ao acampamento, à meia distância, um grupo de focas, das grandes, era promessa de carne e gordura para se lambuzar, esfregar nas crianças, nos rostos e nos corpos.
Era ainda a chama para a carne moqueada e a luz nas cabanas cobertas com peles, na noite escura. Dos tendões aos ossos do animal, tudo se aproveita.
Em que pese a condição de melhoria climática naquelas faixas, nem todos pensavam da mesma forma, muito menos guardavam os mesmos anseios. Um deles era Unglott.
— Estão todos se acomodando aqui. Gostando do lugar, com vontade de encerrar a marcha e se estabelecer aqui, junto do grande mar. Tem muita caça e comida. Só não é isso que as vozes nos dizem. Nem é bem isso que aparece em meus sonhos.
— Como sabe Unglott? O lugar parece bom de se viver. Acho que seria bom ficarmos aqui. Afinal, todos estão cansados de andar.
— Eu sei, mas, é isso que me preocupa. O lugar que vejo em meus sonhos é muito belo e diferente. Não é esse aqui.
— Como vamos convencer os homens e as famílias?
— Falando a verdade. Mais tarde, vamos ter com o xamã, vamos levar os líderes conosco para ouvirem toda a história. Já não é sem tempo de saber.
Kaniot concordou com o encontro e mais tarde, estavam todos reunidos. Aguardavam as palavras do xamã.
O xamã não tinha nada que chamasse propriamente a atenção. Sentado em silêncio, enrolado em peles por todo o corpo, todo untado com óleo de foca. Um colar com ossos das nadadeiras de foca. Um enfeite feito com tiras de couro de mamute, posto sobre a cabeça. Cinzas espalhadas pelo rosto completavam o seu estilo.
Rapidamente lhe deram conhecimento do motivo da conversa.
Logo entrou em transe e em poucos minutos uma entidade comunicante se apresentou, já trazendo respostas às preocupações dos homens.
— Aqui tem caça, tem comida. Lugar bom de se ficar. Tem calor perto do mar. Caça no mar, caça na terra. Só não se pode acreditar que ficarão aqui. Ainda não é o lugar de vocês.
— Ora, se é um bom lugar de se viver, por que não? Qual a necessidade de irmos embora. Os caminhos são difíceis e com muitos perigos e nevascas.
— Muito simples Kaniot. Aqui foi bom, mas chegou a hora do mar subir. Quando isso acontecer, todos que estiverem aqui morrerão. É preciso prosseguir com a marcha. As belas terras dos sonhos de Unglott, ficam bem mais adiante. — Parou por um instante.
— É por isso que ele está tão apreensivo. Está na hora de recolher tudo e ir embora. Antes que não possam mais fazer isso. Quem deixar para depois, não terá tempo para mudar de ideia.
Tão rápido como começou, a comunicação muito clara, através do xamã, chegou ao fim. Agora todos os líderes estavam cientes do problema. O mais perigoso de todos. A elevação do nível do mar cobriria as terras rapidamente. Era preciso ir embora.
Resolutos, comunicaram aos demais e decidiram seguir adiante imbuídos de coragem, determinação e fé. Avançariam tendo o mar sempre à sua direita como referência. Era o que as vozes diziam para se fazer.
Agora todos queriam conhecer as terras dos sonhos de Unglott. Mesmo sabendo do sacrifício, pois teriam de percorrer longas distâncias se quisessem vislumbrar tal sonho.
Adentraram as terras geladas do atual Alaska, se dirigindo para o sul-sudeste. Penetraram o atual Canadá, ainda totalmente congelado. Prosseguiram até encontrar temperaturas mais amenas e vegetação abundante nas imediações do atual estado de Nebraska. Finalmente, haviam alcançadas as terras tão sonhadas por Unglott.
Tanto Unglott como Kaniot e todo o seu povo, são todos personagens representativos de uma história que se deu ao longo de muitos milhares de anos, antes que pudessem habitar toda a América, até a Patagônia, na Argentina.
Ainda a partir do leste da Ásia, as mães siberianas começaram a receber em seus ventres os novos espíritos que cumpririam sua imigração para o orbe terrestre.
Com características próprias que com o tempo iriam salientar, se concentraram no leste siberiano para iniciarem a grande travessia do Estreito de Bering.
Fixariam em seu tipo físico, e ao longo da jornada rumo ao sul da América, a pele morena e ligeiramente avermelhada. Sem que isto, no entanto, significasse uma homogeneidade cromática.
Marcas do mundo de origem, oferecidas como conforto espiritual, a exemplo das demais etnias da Terra. No entanto, os índios do Alaska e norte do Canadá, dado ao clima, permaneceram amarelos, tal e qual os orientais.
No tempo devido, após a chegada de alguns milhares de reencarnantes, foram tomados de uma forte vontade de seguir para o leste e atravessar a desconhecida ponte congelada sobre o estreito. Chegava o momento de escreverem sua própria história no continente americano.
Se espalhariam rumando para o sul, constituindo povos distintos com graus diversos de conhecimento e organização. Um aspecto comum, era o desconhecimento da roda.
Oriundos de um mundo onde a levitação já era há muito dominada, tal reminiscência se perdeu, ante o mergulho no esquecimento das experiências passadas.
O conhecimento sutil e avançado da levitação foi apagado de suas mentes, por conta do mal uso realizado. Estes degredados haviam utilizado dessa tecnologia para agredir, destruir e matar. A perda foi mera consequência.
Retornariam aos tempos primevos, à força dos músculos. Sem conhecer sequer a roda. Aspecto sutilmente exposto no evangelho do Cristo, na Parábola dos Talentos.
Nesta parábola o mau servo esconde o seu talento, ao invés de buscar um bom uso para o talento oferecido por Deus. Ao invés disso, trata-o com desprezo e inconsciência.