Foto: Wikimedia Commons
Por: Antonio Mata
O curativo, fixado com esparadrapo, servia para autenticar as primeiras aulas. Estava às voltas com a arte de acionar o bicho. Encaixar a manivela, girar com força até fazer o motor funcionar.
O problema é que o movimento de girar o motor para dar a partida, exigia uma certa precaução. O motor girou rápido e o condutor, ainda inexperiente, com a cabeça muito próxima, não teve tempo de se afastar, com a manivela lhe acertando o queixo. Foi o que provocou o ferimento.
Saiu no lucro. Aquele negócio poderia ter estourado sua boca, ou, como consta em vários relatos, ter quebrado o braço do aprendiz condutor. O preço da novidade.
Finalmente, motor ligado, fez a volta e saltou no banco, pela esquerda, à frente do volante, do Ford T, o tal de bigode, por causa das duas alavancas saindo da barra de direção.
Assumiu o comando do seu novo e perigoso brinquedão. O negócio chamava a atenção. Mal dava para imaginar que nunca mais se afastariam deles.
A viatura na cor preta, é claro. Capota de lona, que uma vez recolhida permitia transformá-lo em uma espécie de charrete. A ideia era treinar, treinar e treinar. Até adquirir confiança na direção do veículo, percorrendo as ruas próximas. Ruas de terra batida, pouco adequadas para um veículo de rodas tão estreitas e tão pesado. Muito bom em tempo seco.
Pisou fundo no pedal da esquerda, acionando a alavanca do acelerador, também à esquerda. O carro entrou em movimento. Em poucos segundos, soltou o pedal, mantendo-o acelerado.
A segunda marcha engatou automaticamente. Interessante manter a velocidade baixa, pois a frenagem, feita com o pedal direito, não era lá grande coisa, mas funcionava.
Pronto, aos 38 km/h, já era seguro, confiável e eletrizante. Frear até parar aos poucos, mantendo o pedal esquerdo em ponto morto, no meio do curso.
Agora era só desligar o motor no painel, pois se soltar o pedal esquerdo, ele volta para a segunda e vai dar um tranco no bicho. Puxar o freio de parking, é uma alavanca bem grande, logo à esquerda. Dessa vez acabou. Estava satisfeito com o aprendizado. Dali em diante seria tudo uma questão de tempo.
Dia ensolarado e seco. Ótimo para quem queria apresentar o seu Ford T conversível para os amigos e para os mais chegados da cidade. O carro preto faria a sua estreia.
Já a caminho mudou de ideia. Decidiu fazer sucesso na cidade toda, no mesmo dia. Tomou o caminho do mercado municipal. Não sem propósito, seguiu pela igreja da Matriz, passando pelo relógio. Manhã de movimento nas proximidades do porto.
Empoleirado no seu Ford, casquete e óculos na cabeça, os dois alienígenas chamavam a atenção. O barulho do motor era incomum. Diferente dos motores a vapor das embarcações. Menos estrondoso que o motor da termoelétrica da cidade. Muito menor que os demais e circulando apressadamente pelas ruas. Não havia como não notar.
Já no mercado, parou para tomar um café. Queria conhecer as atenções e satisfações oferecidas a um certo Dumont, que andara fazendo muito alvoroço em Paris com a sua máquina de voar. Se Alberto Dumont podia descer de seu balão para tomar um café, ele então, podia fazer o mesmo.
Encontra um conhecido que comenta:
— Minha litorina não faz todo esse sucesso com as pessoas, mas posso levar as coisas do mercado para casa, felizmente.
— Ah, meu Ford acabou de chegar. Estive treinando para poder conduzir com segurança. Afinal, são 20 cavalos. É muita força, e muito veloz também.
— Pois bem, Carpe Diem, meu amigo. Já vou indo.
Com ar de satisfação:
— Apenas circulando, reconhecendo tudo. Só parei para tomar um café.
Nisso a multidão havia se acercado do veículo, reluzente ao sol, com acabamento interno em couro marrom.
Chega o grande momento. Na presença de todos, ia ligar a máquina. Sem fazer feio, é claro. No seu preciosismo, iria ainda levantar o capota de lona do seu conversível. Os pescoços se esticavam até onde podiam para ver o que se passava. Já não importava mais ficar de pé no sol forte.
Feito isto, com as duas mãos levantadas, avisa a multidão.
— Se afastem, se afastem. Não quero que ninguém se machuque. Saiam da frente.
Fosse pelo ferimento recém cicatrizado no queixo, fosse pelo aviso oferecido, acharam por bem se afastar.
No painel, girou a chave da ignição. Puxou o cabo do afogador. Saiu, colocou a manivela desastrada no lugar, afastou o rosto daquele negócio e girou. O Ford ganhou vida na primeira tentativa, entre o espanto de uns e o sorriso de outros.
Com o peito mais cheio que um pombo, contornou a distância que ia da frente do veículo até a posição de dirigir, lentamente e carregando a manivela. Colocou os óculos e o casquete.
Era o inquestionável proprietário e condutor de um Ford T conversível. Assumiu os comandos e acelerou, deixando o lugar sob os olhos impressionados de feirantes, estivadores, passantes e donas de casa.
Tomou o rumo da Igreja dos Remédios, no momento exato em que o padre, acompanhado de várias pessoas, estava logo à frente. Desacelerou, acenando com a mão.
— Quem é aquele? — O padre perguntava.
— É o senhor Amâncio. Ouvi dizer que é o proprietário de um Ford T conversível. Aquele ferimento no queixo, parece que foi por conta do treinamento. Para aprender a conduzir. Foi o que me disseram um dia desses. Só não tinha visto ainda.
Continuou com a sua turnê pela cidade. Afastou-se da igreja, dobrando à esquerda, na avenida Silvério Nery. Depois, novamente à esquerda, na Sete de Setembro até o Liceu Pedro II, onde tomou a Floriano Peixoto, afastando-se. Seguiu para casa nas proximidades da avenida Ayrão.
Entusiasmado com o passeio, estacionou o veículo junto a uma árvore, à sua direita. Na manobra, acabou aproximando-se demais deixando o estribo do Ford, como que encaixado, entre a árvore e a roda traseira.
Por mais que tentasse retirar o veículo daquela situação incômoda e danosa, pois o estribo já se encontrava irremediavelmente danificado, o carro não saía.
Prestou mais atenção. Foi quando se deu conta de que não era só o estribo do seu Ford T, importado dos Estados Unidos, via porto de Nova York, depois de 29 dias até Manaus, que estava danificado. A lataria do carro e o piso de madeira também.
Amâncio agora tinha não um, mas dois problemas. Teria de conseguir ajuda para deslocar o carro, e ainda carregado, já que sozinho não estava conseguindo, pois teriam que suspendê-lo para tirar do encaixe. Além disso, acabaria enterrando a sua fama de condutor sagaz, substituída que seria por outra, de motorista matusquela, que esculhambou o Ford T na sua primeira viagem.
O carro passou todo o resto do sábado no mesmo lugar. O mesmo acontecendo no domingo e na segunda-feira também. Não havia uma definição do que se fazer. Até que apareceu a dona Glória.
— Amâncio, não estou entendendo mais nada. Você vivia falando no Ford, elogiando o carro, você mesmo lavava, deixava secar na sombra, passava flanela. Nem deixava o Severino lavar esse carro. De repente acabou tudo. Afinal o que foi que houve para você mudar de ideia tão rápido? O que aquela árvore tem de tão importante, que você nem tira o carro de lá?
— Não ligue para isso Glória. Só está estacionado e surgiram algumas coisas para fazer. Eu mesmo vou cuidar de tudo e guardá-lo na garagem.
— Faça isso, antes que aquela capota de lona pegue chuva sem necessidade.
Sabia que alguma coisa precisava ser feita, contudo o orgulho ferido do condutor, não lhe permitia pedir ajuda para retirar o carro do lugar.
Para uns, uma população de 50 mil habitantes, pode ser um horror de gente. Já para outros, é o suficiente para os mexericos mundanos correrem mais que rastilho de pólvora.
Nos idos de 1908, com a cidade crescendo e tanta gente ganhando em libras esterlinas, inclusive ele mesmo, iria fazer papel de tolo diante da sociedade local. Tal possibilidade o perturbava tremendamente. Era tudo muito evidente. Quem gosta de aparecer, tem vergonha de se enxergar de frente.
Na tarde de terça-feira, antes que a esposa viesse lhe cobrar novamente, criou coragem e tratou de levar um funcionário seu para fazer um pequeno serviço extra. Ajudar o patrão a desencaixar o carro preso na árvore.
No lugar, após algumas tentativas, ficou patente que apenas com dois homens não seria possível. Amâncio decidiu chamar por gente próxima do local.
Atendeu-lhe um certo Tadeu, homem forte que de fato ajudaria bastante. Puseram-se a deslocar o carro, que insistia em ficar preso. Até que Tadeu teve uma ideia.
— Aguarde só um instante senhor. Vou já resolver isso.
Afastou-se do local e já na rua pôs-se a gritar:
— Saul, Saul! Ô Saul, vem aqui!
Do quarteirão seguinte, Saul indagava.
— O que você quer com essa gritaria, seu leproso?
— O seu Amâncio prendeu o carro na árvore!
— O quê?
— É o seu Amâncio. Ele prendeu o carro na árvore e agora precisa de ajuda para retirar dali! O carro quebrou e não quer ligar! Chama o Luisinho também!
Saul, muito solícito e prestativo, atendeu.
— Ô Luisinho, Luisinhooô!
— É o quê excomungado! Só sabe viver gritando!
— Vem ajudar a retirar o carro do seu Amâncio que quebrou e ficou preso na árvore! Chama logo o Ezequiel!
— Tá bom, eu chamo.
— Ezequiel, Ezequiel, está me ouvindo? Cadê você?
— Fala que eu te escuto!
— É para passar na casa do seu Amâncio. Aquela casa bonita na esquina, aquela grande. Uma árvore caiu em cima do carro dele e precisa tirar de lá debaixo. Ficou preso na árvore.
Quando Ezequiel recebeu a notícia, de pronto alertou os demais e aflito, porém desejoso de socorrer o senhor Amâncio, chamava os demais assim:
— Gente, gente, depressa, vamos rápido. Uma árvore caiu na casa do seu Amâncio. Aquela da esquina. Seu Amâncio está preso dentro do carro sem conseguir sair. Estão pedindo ajuda. Vamos até lá, vamos até lá!
E assim o bairro inteiro foi socorrer o Amâncio. Homens e mulheres acorreram ao local. Amâncio pode até reclamar dos mexericos, fofocas e gracejos das pessoas do bairro. Só não pode reclamar da solidariedade daquela gente.
FIM