Por: Antonio Mata.
Em meio a mata, o cheiro de terra. Sem vento, o sereno se depositava e dava para sentir. Noite sem luar e sem estrelas. Movimentação lenta e silenciosa. Mal se havia iniciado a aproximação, quando o inesperado se deu.
Já caminhava para os setenta anos. No pequeno ponto comercial tinha de tudo um pouco e ainda tinha disposição para conduzir o pequeno negócio e mesmo para repor as prateleiras e as garrafas de cerveja e refrigerantes.
Tinha que encher uma daquelas geladeiras enormes, feitas em madeira com espelhos na parte da frente. Além de operar a caixa registradora manual.
O único funcionário, ajudando a carregar um guarda-roupa, tinha machucado o pé. Um dos três filhos, que o ajudava, somente chegaria na parte da tarde.
Por anos a fio, tinha feito de tudo um pouco. Até encontrar o lugar que servia alternadamente como depósito e garagem. Na ocasião, como estivesse vazio, propôs alugá-lo. Reunindo pequenas economias, fez o negócio funcionar. Foi assim que se definiu como pequeno comerciante. Foi providencial, pois já contava 52 anos.
De chinelos, bermuda e camiseta, assim recebia sua clientela. Costumeiramente gente conhecida daquele lado do bairro. Identificou-se com o lugar de subúrbio e ao final, se sentia um deles e não mais um estrangeiro.
Nas tardes quentes de verão sentava com um ou outro morador para conversar e espantar o calor junto ao velho ventilador. Era quando enchia o tempo com antigas histórias. De um tempo que não deixou saudade, mas que insistia em aparecer.
Arrastavam-se os quatro homens se aproximando em meio a escuridão. De repente, um dos homens começou a acenar lentamente, dando a entender que algo estava errado.
Tinha dificuldade para sair do lugar. Retirou a mochila, não só para aliviar o peso. Sabia também que não podia perder a carga. Com esforço empurrou a mochila até um ponto em que pôde ser puxada para fora do lameiro movediço.
Entendeu logo que o companheiro estava afundando. Agarrou-se a um arbusto e se esticou o máximo que pôde. Pegou-o pela mão, mas, por mais que tentasse, não conseguia retirá-lo. Sabia que teria que tomar uma decisão.
Isto não haveria de demorar muito. O homem prosseguiu afundando até sufocar. Quando então largou sua mão, pegou a mochila e retomou a missão.
Perigosa por si só, a missão consistia em invadir um campo inimigo e detonar 40kg de explosivos junto ao seu paiol de munições. Deixar o lugar sem serem percebidos e se afastar o mais rápido possível.
Quando se desocupava dos afazeres domésticos, ainda recebia a ajuda de Solange, com quem vivia há mais de 20 anos. A mulher, carioca nascida no bairro, aproveitava para participar das conversas. Mesmo que alguns assuntos fossem meras reprises. Mas, que os curiosos gostavam que o velho repetisse.
Entre um comprador e outro, prosseguia com o assunto da vez.
— Tem Coca gelada. — Avisava o velho iugoslavo, com seu sotaque carregado que nem o tempo deixou apagar.
No início de 1947 chegara ao porto do Rio de Janeiro na condição de viajante clandestino. Não sabia uma só palavra de português. Trazia consigo, à guisa de documento, uma carta de recomendação escrita em uma língua que ninguém conhecia e um par de insígnias de latão. Da patente de capitão, como viria a se saber mais tarde.
Guardou as insígnias de latão consigo, por um bom tempo, como reminiscências. Queria, quem sabe, um dia mostrar para os filhos no Brasil. A carta e as insígnias foi tudo o que restou de sua vida na Iugoslávia. Ainda assim, com os filhos crescendo, decidiu jogar tudo fora. Aquele tempo já havia passado.
Com a invasão de seu país pela Wehrmacht e as SS alemãs, durante a Segunda Guerra Mundial, engajara no Movimento Partizan, a resistência iugoslava. A operação furtiva de destruição do depósito de munições fora um sucesso. Não fosse pela morte de seu irmão na lama movediça. A única perda daquela noite.
Com o fim da guerra, não foi difícil perceber que toda sua família havia perecido. Decidiu abandonar a Iugoslávia e o destino deveria ser os Estados Unidos, como costumava contar. Só que, desinformado, pegou o navio errado. O mesmo ainda seguiria para Buenos Aires, na Argentina. Entretanto, foi descoberto no Brasil e posto para fora.
Muito tempo depois, foi pela TV que tomou conhecimento da queda do muro de Berlim, em novembro de 1989. Em dezembro de 1991 foi o fim da União Soviética. Ainda chegou a crer que o país iria se manter unido.
Mas sabia das desavenças antigas que cada etnia sustentava. Foi com tristeza que assistiu às guerras de separação, já em 1991. Mas, já não era mais com ele.
Olhava para o movimento na rua lá fora e às vezes dizia para si mesmo.
— É, foi o que se pôde fazer. Um dia tá quente, outro dia tá frio. A gente vai levando...