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terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

O leitor de jornais

                                                                                         

                                                                                                                                                Imagem: Px Here

Por: Antonio Mata

Fazia tempos que vivia de pequenos biscates. Desfavorecido quando o assunto era dinheiro, dependia dos serviços que pudesse realizar, nos quintais e terreiros das casas simples e nos sítios do lugar.

Trabalhava normalmente por comida e muito raramente, muito raramente mesmo, por alguns réis. Uma ou duas moedas de pouco valor. Para o pagamento mesmo, havia a mandioca, o milho e o feijão, plantados ali mesmo já pensando nesse tipo de escambo. Tão poucas eram as moedas.

Outro agravante ainda, o pouco interesse em pagar por trabalho, em se tratando de uma sociedade escravista. Isto por sua vez, encurtava ainda mais a disponibilidade de pessoas dispostas a contratar seus préstimos.

Teria tocado sua vida para além dos vinte anos, no cabo da enxada, o que não teria nada demais. Havia sim, homens livres, porém pobres. Muitos já faziam isso antes dele, além de pescar, caçar e coletar os frutos da selva. Uma vida em meio a gente pobre, de poucos anseios, em meio à selva reinante.

O anjo que interviu para mudar o tempo e a vida de Joaquim, foi Mariazinha de Fátima. A menina havia sido agraciada com uma vaga em uma escola primária, mesmo que aos treze anos.

O que trouxe a mudança foi o fato de Mariazinha compartilhar suas primeiras lições com Joaquim. Isto após o rapaz concluir o serviço, motivo de sua presença na casa de dona Francisca, mãe de Mariazinha, que depois acompanhava estas lições. No fundo, também lamentava a pouca sorte de Joaquim.

Se de um lado Joaquim não era escravo, pois era branco. Do outro era um filho bastardo, pobre do pé rachado, no chão duro, que precisava trabalhar por sua própria conta para sobreviver. Uma espécie de cachorro sem dono, como já tinha escutado falar, que perambulava pelo lugar desde criança.

Mesmo sendo branco, o enjeitado não achava seu lugar. Retratos de uma sociedade escravista sim, mas também cheia de preconceitos outros, onde a pele por si só, não assegurava melhores possibilidades. Não havia sido apadrinhado por ninguém. A grande benesse daqueles idos.

Sob a forma de escritas em folhas secas e mesmo no chão, aos poucos Joaquim adentrou os domínios iniciais da palavra escrita. Saía então, lendo os poucos e raros letreiros do lugar. Os poucos registros em números que pudessem aparecer.

Na realidade, Joaquim era portador de um tipo de conhecimento que por si só, não circulava muito. Não na Barra do Rio Negro, nos idos de 1852. Entretanto, o pouco que lhe foi ensinado, foi o suficiente para saber que haviam livros, que contavam e registravam coisas. Que havia um império, um imperador e que todos os demais eram os seus súditos. Soubessem ler ou não.

Elevada à condição de cidade, o lugar, talvez não reunisse nem quatro mil almas. O que vale dizer que os poucos empregos que por ventura exigissem leitura, seriam oferecidos aos membros das famílias respeitáveis da Barra do Rio.

Uma pequena fila de gente, mas ainda assim, uma fila. Onde cachorro sem dono tinha acesso e lugar, mas sempre reservado entre os últimos. O mesmo que assumir que aquele caboco branco, nunca chegaria a lugar nenhum.

Descobriu, mais por conversas do que por leituras que o império era muito maior do que pudesse imaginar e que se estendia para muito além dos domínios das florestas e dos rios.

Limpava o terreiro de uma casa de família, quando, após concluir o serviço, viu pequeno caderno impresso, em folhas grandes, repleto de textos. Aproximou-se e se pôs a ler.

O pequeno conjunto de folhas impressas contava coisas a respeito do império e de suas leis. E com elas os feitos do imperador. Aquilo que, não tinha muito tempo, ouvia meio que aos fragmentos de conversas, já que o assunto nunca era com ele.

Também comunicava o falecimento de alguém, quando não, avisava sobre um escravo fujão. Oferecia até algum dinheiro para quem o recuperasse ou, desse ciência do seu paradeiro. Notou que aqueles papéis tratavam das coisas importantes.

Como eram poucas folhas, deduziu rápido que por ali não devia acontecer muita coisa importante. De qualquer forma, Joaquim se encantou com a ideia de poder ter em mãos um caderno daqueles, cheio de palavras e coisas escritas. Estava empolgado, com as folhas abertas nas mãos, quando uma vez interveio.

— Tira a mão daí! Isso tem dono, e nem é parecido com cabo de enxada. Vá cuidar do seu serviço.

Colocando os papéis sobre a cadeira de balanço rapidamente.

— Desculpa, seu Nogueira. Eu já terminei o serviço. Estava só olhando um pouco.

— Aí não há nada para olhar e sim para ler.

Joaquim se entusiasmou com a fala de Nogueira. E sorridente lhe respondeu:

— Pois é seu Nogueira, eu sei ler sim senhor. Eu aprendi a ler.

Olhando o caboco branco com cara de idiota, Nogueira lhe respondeu com desdém:

— Que bom, um analfabeto a menos. Mesmo assim, se quiser jornal, vá tratar de comprar o seu. Aliás, pegue seu saco de milho e já pode ir embora.

Joaquim dirigiu-se ao canto da varanda. Recolheu meia saca de milho, pôs nas costas e se retirou do local.

Não estava aborrecido com a voz arrogante do senhor Nogueira. Não tinha tempo para isto. Descobrira que aquilo era um jornal; que não era uma coisa qualquer; que podia ser comprado em algum lugar; que, portanto, tinha valor e falava sobre as coisas que estavam acontecendo na cidade e no grande império.

Mesmo o imperador estando tão distante, a ponto de quase se não ouvir falar nele. Vê-lo então, estava fora de questão. Entretanto, as ordens do imperador estavam ali.

Vamos aos fatos. Escravos não leem jornal. Além disso, pouca gente ligava para leis, já que na Barra do Rio, isso não servia para muita coisa. Mas nem por isso desistiu.

Desejoso de obter seu próprio jornal, o caboco do pé rachado saiu a caminho, com o saco às costas, a encontrar alguém, sabe Deus quem, mas que dispusesse de um jornal, igual ou não, àquele que acabara de ler, ainda que só pequena parte, e que estivesse interessado em lhe vender.

Vagou pela cidadezinha indagando de porta em porta, com o saco de milho nas costas.

— Senhor dispõe de um jornal para vender?

— Dispõe do quê?

— Um jornal que possa me vender.

— Ah, entendi. Mas primeiro preciso saber o que é isso.

— Tá bom, deixa pra lá.

Assim prosseguiu até encontrar o seu detentor do exemplar de um jornal.

— O senhor tem um jornal? Tem mesmo?

— Tenho sim, tenho mesmo.

— Então, poderia me vender?

— Depende, quanto ou o que você pode oferecer?

— Não é muita coisa, mas eu tenho meia saca de milho aqui.

— Meia saca? — O homem ficou olhando para Joaquim com uma cara desconfiada, mas ao final, concordou.

— Está bem, vou aceitar o seu milho. A propósito, o jornal é de 25 de maio, mas está praticamente novo.

— Eu aceito, obrigado.

Joaquim não se deu conta de que estava comprando um jornal de 43 dias atrás, por meia saca de milho. Mas afinal, as coisas não mudavam tão depressa assim, não é?

Outro passante, ouvindo aquela negociação feita em altos brados na rua, debaixo do sol quente de quase meio dia, aproximou-se do rapaz, oferecendo algumas palavras.

— Vejo que você quer mesmo ler um jornal, não é?

— Quero sim. Eu já sei ler. É bom para saber das coisas. — Concordava e concluía, empolgado que estava com a possibilidade de possuir seu próprio jornal.

— Venha comigo, antes que você seja enganado. Está se propondo a pagar pelo menos quatro ou cinco vezes mais, por um exemplar de jornal. — Fosse o jornal muito caro, fosse o milho muito barato, o importante é que aquele encontro impulsionaria as ideias e os planos de Joaquim.

Deixou de lado aquela negociação e o local, se afastando em seguida na companhia daquele desconhecido.

— Ei, ei você! Aqui está o jornal! Cadê, cadê o milho? — Foi inútil gritar, já não teria mais aquela meia saca de milho.

Os dois homens se afastaram se dirigindo a um sobrado modesto, de esquina, mas que acomodava a prensa mecânica e a caixa de tipos individuais. Aqueles que, organizados, compunham as letras, palavra por palavra, além de pequeno estoque de papel e tinta. O homem adentrou o prédio e ao retornar trazia um exemplar novo do jornal.

— Guarde a sua farinha. Você pode ficar com este exemplar. É o jornal desta semana. Só gostaria que me fizesse algo muito importante. Sair e divulgar, vender os jornais. Você receberia um pagamento pelo número de jornais que você vendesse.

Aquele era Olegário, o editor do jornal. O que propunha era uma ótima oportunidade para Joaquim dar asas aos seus planos de se utilizar de sua nova conquista, o poder da leitura e ainda ganhar algum dinheiro. Assim aceitou o exemplar e aquele emprego de vendedor de jornais.

Se em um primeiro momento tudo parecia estar dando certo, exatamente como o jovem desejava, o exercício da coisa se mostrou bem mais espinhoso.

A população da Barra do Rio era pequena. Pequena parte era composta por escravos, depois vinha um monte de caboclos analfabetos, como ele fora um dia. Finalmente, pequeno contingente afeiçoado à leitura. Destes ainda faltava tirar quem não tinha interesse em ler jornal e ainda quem não tinha interesse em comprar um.

O universo de Joaquim se viu muito menor do que esperava. O público do vendedor de jornais se resumia a umas duzentas pessoas, por muito favor. Faltava tirar ainda os assinantes do próprio jornal. Uma centena, Joaquim iria vender jornais para uma centena de almas, talvez.

Não tinha outro jeito ou solução. O serviço de venda de jornais já nascia fadado ao fracasso, antes de começar. Receberia tostões por semana, se vendesse. Sem vender, não haveria nem isso. vinte exemplares vendidos por semana, era um número de sonho.

Em um primeiro momento, ficou meio desiludido com o tamanho do seu público leitor. Notou logo que sem a presença de um público maior, não obteria sucesso. Falava para si mesmo então:

— Assim não vai dar certo, vou morrer na beira do rio sem conseguir coisa alguma.

Aquele dia incomum, com um punhado de novidades acabou por terminar, com Joaquim se recolhendo, meio acabrunhado, à sua palafita de um cômodo só. Mastigou a farinha com um pedaço de peixe, seguido de um pouco d’água e logo adormeceu.

Maravilhosa é a possibilidade de se poder sonhar. Às vezes, se tornam verdadeiros recados, indicações de algo que se precisa fazer para elucidar os desencontros da vida.

Joaquim se viu, de cima de uma mesa de tábuas, lendo um jornal para os demais. Não importando se sabiam ou não ler. Estavam todos ali lhe ouvindo. Notou que anunciava as notícias, sem, contudo, completar a leitura das mesmas.

 Paralelo a esta leitura, anunciava algumas coisas do interesse dos presentes, ainda que não entendesse direito sobre o que estava falando.

O pé rachado, recém iluminado por Mariazinha e sua mãe, acordou do sonho. O tal do jornal comunicava coisas.

— Melhor dizendo, — Falava Joaquim, transformado em máquina pensante:

— Então, pode muito bem se escrever sobre coisas que as pessoas precisam. Aquilo que elas querem. E prosseguiu.

— Qual o impedimento que haveria em se avisar do outro lado da cidade, que em certo local alguém dispunha de cinco sacas de café e que vendia a retalho? É claro que nenhum. Que alguém dispunha de novilhas para vender? Para trocar? Ou mesmo um escravo para ceder mediante paga? Este era o mundo de Joaquim.

Joaquim entendeu o sonho e o seu recado. Aproveitava as pequenas aglomerações que surgiam na cidade para subir em uma carroça, um caixote ou uma mesa e então divulgar, não só as notícias do jornal.

Atraía assim quem realmente estava interessado em comprar e ler jornais. Depois oferecia as comunicações principalmente de cunho comercial, que lhes permitissem fechar pequenas vendas e trocas, auferindo algo para si. Tornou-se então uma espécie de agenciador, ou corretor. Aquela pessoa que aproximava ofertantes e compradores.

Com o tempo começaram a prestar atenção que nem tudo que Joaquim oferecia estava no jornal e nem sempre o jornal era novo. Chegou a ser pego em flagrante com um jornal na mão, com mais de um mês passado.

Não ligava muito. O que lhe importava era a veracidade do que dizia. O jornal passou a ser a novidade que trazia em sua mão, a modernidade. As notícias do império, das demais províncias, mas principalmente, as demandas comerciais locais. Fosse por escambo, fosse a dinheiro. Aceitava bens quaisquer; tecidos; peixe; farinha; castanhas; tartarugas ou mel. Desde de que houvesse a possibilidade de se oferecer mais adiante.

Tinha ainda grande respeito pelo jornal, enquanto expressão tecnológica do seu tempo. A comunicação rápida e arquivável das coisas do dia a dia da cidade.

Certa feita, durante uma fala, deixara seu jornal sobre a mesa e este caiu no chão, sem que Joaquim o visse. Foi tratar de atender sua clientela e esqueceu do jornal.

Ao retornou ao local, entrou em choque.

— Não, não, não! Não pode ser, quem fez isso?

Os presentes acorreram, enquanto Joaquim ficava paralisado com as duas mãos na cabeça e os olhos esbugalhados.

— O que houve Joaquim, o que aconteceu? — Perguntavam os demais, sem obter resposta.

Logo adiante, logo à frente da mesa feita de tábuas, onde havia deixado o seu jornal, pôde enxergar uma banca. E nela o seu jornal. Alguém entendeu que havia sido jogado fora e o utilizou para embrulhar peixe. Isto, pela primeira vez na história da cidade da Barra do Rio Negro. Joaquim sentiu-se ultrajado.

Aquela gente rude, selvagem e analfabeta era incapaz de reconhecer o conhecimento, a ciência e a modernidade contida naquelas folhas em preto e branco. Mesmo que as letras tivessem o tamanho e a largura de um dedo polegar.

Não ficou rico fazendo isso. Não em Barra do Rio. Mas, passou a usar borzeguins e pôde comprar roupas novas. Com o tempo, mudou-se para a terra firme, para perto das ruas centrais, para ter mais visibilidade diante dos clientes. Afinal, atendia a toda a pequena Barra do Rio Negro.

Como uma coisa chama outra, passou a atuar nos regatões, levando mercadorias para o interior. Era o tempo da manteiga, fósforos, querosene, pólvora e chumbo, para se trocar pelos produtos da floresta.

No espaço de cinco anos, o caboco do pé rachado havia ficado para trás. Havia se tornado um próspero comerciante. Nunca esqueceu Olegário e a oportunidade de vender seus jornais.

                                                                                                  FIM

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