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terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

O missionário e o boto

Por: Antonio Mata

Alguns diriam ser questão de identidade ou energia. Podia ser afabilidade, vibração, até mesmo aceitação. Mas, haveria de ser alguma coisa. Algo sutil que extrapolava os limites do acaso.

Sentia-se no dever de seguir para o interior. Já tinha posto os pés na cidade grande fazia tempos. Lhe motivava o retorno. Subir o rio e falar das coisas que aprendeu.

Na chata, empurrada a vapor, a viagem do mês. Só uma e era o suficiente. Depois, era só prosseguir rio acima. Chegava próximo ao pontilhão conduzindo um punhado de pessoas que se preparavam para desembarcar.

Malas, sacos, caixotes e latas para os pertences, a farinha, o charque, querosene, o óleo e miudezas da cidade. Tudo amontoado do lado direito, enquanto a chata aliviava o vapor e tração para a breve atracagem.

A vila de beira rio despontava no alto do barranco. Habitações comumente de dois cômodos. Aqui e ali caiadas de branco já desbotado por debaixo da cobertura de palha. A maioria ostentava os tons castanhos e cinzentos da madeira crua e seca.

Faltava subir o barranco, em escadaria improvisada com tábuas, para alcançar o casario. Caixas e sacos nas costas e o apoio de parentes e amigos. Todos com as mesmas necessidades.

Ainda que envolvido pelo cenário pobre do lugar e sendo apenas mais um desconhecido, via beleza no rio, agora às suas costas, nas gentes e nas coisas do lugar. A floresta adornava a tudo.

Desconhecido ou não, na condição de missionário, percorreria as barrancas oferecendo aos Raimundos, aos Nonatos, às Marias, aos vizinhos, por onde passasse a palavra de auxílio, a mansuetude. A busca aos brandos e pacíficos do lugar.

Reuniria diariamente os interessados até o momento do retorno. Quando a chata desceria o rio de volta a cidade. A despeito da precariedade, quando assim o fosse, estaria satisfeito. Não era a primeira vez, muito menos seria a última a cruzar o rio.

Já à noite, quase sem dinheiro e longe de casa, buscava por abrigo. Ofereceram-lhe uma velha canoa com cobertura de palha. Ficava amarrada próxima ao pontilhão, meio que abandonada. Ao menos não ficaria exposto ao tempo.

Noite alta, a canoa sacudia e parecia que alguém batia na madeira com a mão espalmada. Com ou sem barulho, tratou de se ajeitar para dormir. O som da água batendo, em dado momento começou a aumentar cada vez mais. Sem que o homem, adormecido, sequer se incomodasse.

O barulho ampliou-se e agora surgiam batidas por debaixo da canoa. Como se algo fosse de encontro a ela. O cansaço, o dia de visitações e o sono pesado cobravam sua parte.

Não demorou, começou a cair água dentro da canoa. Ao mesmo tempo, uma forte pancada foi desferida contra seu costado. Dessa vez, o homem tomou um susto. Catou a lanterna deixada à mão e foi verificar o que era aquilo.

O que avistou, primeiro, é que a água no interior da canoa, ligeiramente inclinada, já estava alcançando seus pés. Saiu da cobertura de palha para verificar o motivo de tantas batidas.

Pôde então avistar duas coisas. Na primeira, sua canoa havia se soltado e começava a descer o rio. Mesmo na escuridão ainda podia visualizar o pontilhão com a luz fraca da lanterna.

Na segunda, o que parecia ser um boto. Este, alegremente jogava água em sua direção com a cauda e depois dava saltos. O homem agarrou um remo e buscou retornar para perto do atracadouro.

Não demorou para entender que sua canoa estava enchendo d’água, não por conta das brincadeiras do boto. Ela estava, sim, afundando lentamente. O que poderia se completar no meio do rio. Não fosse pela presença auspiciosa do ativo animal.

Com as mãos retirava a água de dentro da canoa. Em seguida remava na direção do atracadouro. E assim o foi por diversas vezes. Até poder retornar e puxar a canoa para terra, evitando que se perdesse de vez. Sentou-se no chão, todo ensopado.

Quando tudo terminou, também estava exausto e sem fôlego. Ao longe o sol raiava sem pressa. Logo à sua frente, dando voltas nas proximidades da canoa, o boto rosado era sua companhia sem palavras. Mas esperto e autêntico nas suas ações.

Minutos depois, sabendo que tudo estava bem e que sua missão estava cumprida, deu um último mergulho e se foi.

O missionário prosseguiu em seu trabalho até o regresso da chata a vapor. Quando então embarcou, sabendo que tudo estava bem e que sua missão estava cumprida. Deu um último adeus a uns poucos presentes. A embarcação, entre ruídos mecânicos e muita fumaça, descendo o rio se foi.

Contaria aquele causo singular em muitas de suas falações. Às vezes, o Céu se faz tão perto da terra e dos homens, buscando formas tão sutis de se expressar, que estes mesmos homens, por cegueira ou desconfiança, simplesmente duvidam.

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