Por: Antonio Mata
Na beira de rio acontece muita coisa. Ataques, Conflitos, emboscadas, fugas espetaculares. Acordos que funcionam e sempre funcionarão e acordos que nem se quis cumprir.
Cardume é rio fervilhando de vida. É comida que não acaba mais. Falou em comer, todos querem. De preferência fácil e bastante. É peixe fresco, o artigo mais procurado.
Dois botos desciam o rio acompanhando um cardume enorme de tilápias. Desciam calmamente, empurrando o grupo cada vez mais para perto da margem.
Subindo o rio, duas tilápias das grandes, graúdas e antigas, se aproximavam do cardume, interceptando seu caminho. Faziam isso calmamente, para não espantar o prato feito.
Inesperadamente, no vai e vem para formar o cerco, os botos se depararam com as pirararas descomunais. Era coisa de bicho grande. Daquelas com mais de dois metros de comprimento. Mesmo os botos, encrenqueiros por natureza, resolveram sondar aqueles intrusos, antes de se tomar uma atitude.
— Ei, vocês aí, vocês aí! Qual é o problema em se caçar em outro lugar? Vão atrás de outro cardume!
— Como é que é? Caçar em outro lugar? Quem é o dono desse monte de peixe aqui na frente? Dentro do rio, circulando à vontade. É de quem chegar primeiro!
— Chegar primeiro? Nós chegamos primeiro, vimos primeiro, cercamos primeiro descendo o rio. Vamos ficar com o cardume!
— Nós só víamos peixes descendo o rio. Não havia mais ninguém.
Boto gosta de prevalecer, mas o cardume é nosso por direito de rio. Quem viu primeiro come primeiro!
O outro boto, então, se manifestou.
— Peraí, peraí! Assim ninguém vai resolver nada. Tem peixe aqui para vários dias. Vamos prosseguir no cerco. A gente cerca descendo o rio e vocês aí, cercam subindo o rio. Depois do cerco a gente divide os peixes.
Feito o acordo, iniciou-se a operação.
Enquanto os botos prosseguiam cercando rio abaixo e empurrando o cardume para a beira do rio, as pirarara cercavam subindo o rio. Só que faziam isso, segundo seu próprio entendimento.
Impediam a descida das tilápias lhes oferecendo a bocarra aberta, rapidamente engolindo dezenas de peixes. Na confusão as tilápias tentavam subir o rio e eram empurradas de volta pelos botos. Tornavam a cair nas bocarras abertas.
Foi quando os botos perceberam o que estava acontecendo.
— O quê que é isso? Tá comendo ao invés de cercar. É para cercar primeiro e comer depois. Foi esse o acordo!
— Pare de amolar boto sem noção! A gente cerca para fazer voltar. Para isso acontecer é preciso dar um susto nelas. Aí é só comer um pouquinho que elas voltam correndo. Você não viu?
Os botos começaram a se sentir prejudicados naquele acordo de malandros. Se sentiam enganados.
— O acordo era para cercar. Comer é outra coisa!
A discussão prosseguia, quando de repente, se deram conta de que as tilápias tinham ido embora.
— Cadê o cardume, cadê o cardume? — O boto indagava dos pirararas quanto ao paradeiro dos demais peixes, que deveriam estar cercados.
— Vocês, sempre vocês suas horrorosas! Nesse lado do rio quem manda somos nós!
— Onde é que tá escrito isso?
— Cala essa boca, Teodósio, não tem mais tilápias para cercar. Só tem nós aqui. — O outro pirarara sentiu o perigo rondando.
— Foram vocês que espantaram os peixes. Peixes gordos devem morrer! Só atrapalham e não sabem cumprir acordos!
O sangue esquentou a água fria e os bichos se atracaram. Para resolver, à vera, quem tinha razão. Pedaços de barbatanas de pirarara flutuavam pelo rio, na água clara que ficava turva do sangue e da luta.
Lacerações nos dorsos dos botos mostravam o estrago que os dentes afiados dos pirararas eram capazes de fazer. Insistiam na luta e os ferimentos se multiplicavam.
Sangue e pedaços de peixes e botos circulavam pelas águas.
— As pirararas se arrebentaram. Foi bem feito. Da próxima vez vão saber cumprir um acordo.
— Acordo com botos? Nem agonizando no leito seco do rio! Vocês deveriam morrer todos. Enrolados nas redes dos homens!
Sangue quente e pragas rogadas, à parte, não prestaram atenção no que acontecia ao redor. Atraídas pelo sangue diluído na água e pela carne dilacerada dos oponentes, grande cardume se concentrava nas imediações. Observavam aqueles brigões cansados e feridos.
Quando se deram conta da nova situação, foi só o tempo de enxergarem em meio às águas turvadas pelo combate. O que viram foi uma sequência de sorrisos, dos mais horrorosos que um rio pode oferecer. Dentes em profusão, por todos os lados.
O que se seguiu naquele trecho do rio, superou o marulhar das águas quando um cardume de tilápias é cercado. Os papéis se inverteram e os outrora caçadores, agora eram caçados e devorados, um pedaço de cada vez. Só que em uma velocidade impressionante. Não foi possível escapar do cardume de piranhas.
Em poucos minutos a paz retornou às águas que desciam incessantemente. Cardume é rio fervilhando de vida. Mas, se tiver de fechar um acordo no rio, certifique-se de que tudo esteja explicado detalhadamente. Cada cabeça, uma sentença.