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terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

O porteiro

Por: Antonio Mata

Os escaninhos, junto ao balcão da portaria, estavam sendo preenchidos pelo próprio carteiro, como de costume. Um cara meio silencioso que apenas anunciava sua chegada, distribuía a correspondência do dia, se retirando em seguida.

A rua, o edifício, o lugar, era tudo por demais conhecido. Quando lá chegou pela primeira vez, o movimento já era grande. Lojas muito frequentadas e importantes, além de agências bancárias que estavam instaladas nas imediações.

As recomendações no sentido de estar atento ao vai e vem de pessoas na entrada, eram comuns. Bem ao lado, a máquina de servir mate gelado em copos cônicos de papel.

Certa loja de uma rede famosa. Daquelas que empregavam dezenas de pessoas, inesperadamente fechou. O burburinho correu toda a rua e foi o assunto da semana. Procuravam entender o motivo daquela morte súbita.

Depois foi a vez da agência bancária. Uma, depois a outra. O movimento na rua vinha caindo lentamente. Aliás, no prédio também. Primeiro os aluguéis baixaram. Depois, mesmo com aluguéis menores, as salas começaram a ficar vazias.

Estranho retrato, onde médicos, dentistas, advogados e escritórios de engenharia, ao sabor do tempo, estavam partindo. Aos poucos a clientela foi se modificando.

Algumas representações comerciais. Várias salas foram transformadas em depósitos. Outras foram cedidas até como moradia. Tornou-se comum residir no lugar. Mesmo nos depósitos. O sentido de organização foi se perdendo.

Lembrou do vendedor de mate gelado. Só não sabia dizer quando sua máquina, para exposição do mate gelado foi retirada. As coisas foram assumindo um aspecto envelhecido, empoeirado e escuro. Tanto na portaria e hall de acesso, como nos corredores do prédio. A rua assumia a mesma paisagem envelhecida e suja.

Independentemente do que pudesse acontecer, muito pouco lhe interessava. Como zelador e responsável pela portaria, buscava manter o serviço funcionando. Chegou a pensar em uma reviravolta e tudo voltar ao normal. Aos velhos tempos. Mas o tempo levava tudo. Estava só caducando, pensava.

Quando a dor no peito se fez mais forte, achou melhor ficar apenas junto ao balcão ou na frente do edifício. A sua presença e o olhar severo, eram o suficiente para que os desocupados do lugar entendessem que ali não era a casa da mãe Joana.

Não era do tipo encrenqueiro, mas impunha respeito pela estatura e a atitude sempre séria e compenetrada.

Foram trinta, quarenta anos, ou mais? Já não lembrava direito. De uma coisa tinha total certeza e isto sim, lhe interessou. Revirando os escaninhos da memória, encontrou uma. O jornal em cima do balcão. Daquela vez, não era uma edição qualquer.

Anunciava, na primeira página, o fim da guerra na Europa. Era maio de 1945. Falava do fim da tragédia e do início da paz, da reconstrução e da prosperidade.

— Tive vontade de ir com eles, mas acabei desistindo. Havia meu pai. Na época não estava bem de saúde. Minha mãe achava aquilo muito perigoso. Acabei desistindo. — Sentenciava ao lembrar.

Sabia ler e devagar lia tudo. Com grande satisfação, lia para as poucas pessoas ali perto. Todos prestavam atenção. Um dos poucos momentos em que abandonava a cara amarrada. Ainda que não tivessem lá muito a ver com a guerra.

Pouco depois foi a vez dos pracinhas da FEB, em fotografia, também de primeira página. Era o desfile da vitória. Como uma lembrança puxa outra, lembrou que chegara ali para usar o seu primeiro terno e gravata, em março de 1943.

Tais histórias haviam ficado para trás. Apenas lembranças. Naquele momento o que importava era ficar de pé diante da portaria, com a rua expressando seu abandono em cada número.

Achava os mais jovens uns desavisados, uns abusados. Não usavam mais os ternos, só camisetas e calçavam sandálias de borracha. Como se estivessem em casa ou na praia.

Um desconhecido, já de idade avançada, apareceu trajando um terno branco, pedindo uma informação. Prestimoso em seu serviço, foi atender o homem.

A despeito de seus esforços, o ancião não conseguia entender suas explicações. Pediu-lhe que o acompanhasse até a esquina mais próxima. Achou estranhou, mas não deixou de lhe atender.

O porteiro o acompanhou por ser próximo, frisando que não poderia se afastar, pois precisava controlar o acesso ao prédio. O ancião apenas sorriu.

Ao chegarem na esquina, familiares, antigos amigos e colegas de trabalho estavam lá, lhe aguardando. Reuniu-se a todos e envolto em sorrisos, conversas e lembranças, esqueceu da portaria, acompanhando o grupo.

Aquela dor, aquela queimação no peito que não queria mais ceder. Parece que foi isso, pensaria depois. Várias vezes ainda quis voltar. Apenas senso de responsabilidade.

Só quando lembrou do seu corpo caído ao chão, em frente ao grande balcão da portaria é que compreendeu de verdade. Não fizera nada de mais, nem prejudicara ninguém.

Apenas passara 14 anos cuidando da portaria, prestando atenção em tudo. Até naqueles que já não falavam mais com ele. A despeito de já existir outra pessoa no seu lugar.

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