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Por: Antonio Mata
Embrenhou-se nas matas e vagou pelos rios por oito longos anos, na busca cega que trazia riqueza para uns poucos, mas a ilusão e a morte para muitos. Em 1990, aos 37 anos, era cedo para querer desistir. Decidido, investiu seus haveres naquela aventura, ano após ano. O que ignorava era sua vinculação cármica a um passado de sangue e dor em nome da riqueza.
Sede de ouro
Ninharias encontrou pelo caminho, além de muita lama e cascalho, o suficiente para fazer qualquer um desistir, antes da inevitável falência. A mesma que rondava aqueles acampamentos ordinários, ávida por, mais que tomar até os últimos tostões daquela gente, tomar-lhes a alma. O demônio daqueles verdadeiros indigentes, cruzando os rios na sua obsessão.
Não Gerônimo, um pernambucano diferente. Não chegou na Amazônia empurrado pela seca ou pela fome, desesperado ante à possibilidade de se fugir da miséria.
Filho de classe média, com a morte dos pais, sendo o único herdeiro, se desfez dos poucos bens da família e tratou de buscar o seu sonho. O ouro de aluvião, por entre as argilas da floresta gigantesca. Seguiu para o norte do Brasil, sem olhar para trás, e sem mandar notícias. Desapareceu do mundo e da vida dos demais.
O leito e as barrancas dos rios assistiram sua busca obstinada. Até que, ao sugar o leito de um canal, encontrou a concentração que almejava. Já não era mais a ninharia de minério de outros depósitos. As amostras iniciais indicavam boa concentração, justificando a exploração.
Realizando diversas sondagens para dimensionar a lavra, identificou um caminho mata adentro. O lugar era úmido, minando água com apenas um metro de perfuração. Isto facilitava o trabalho da bomba de sucção até identificar o leito pela presença de cascalho.
Na realidade se tratava de antigo leito daquele mesmo rio. Um paleocanal, como é chamado. Suas águas podem ter sido capturadas em outros tempos, fazendo com que seu leito fosse abandonado, e depois soterrado pela própria floresta.
Foi assim que a ferida amarela avermelhada invadiu o verde que cobria o lugar, perseguindo e desnudando o paleocanal, e o teor de ouro das amostragens. Estes pareciam fugir de tudo aquilo que poderiam conhecer como referência.
Ao ouro em pó, reuniram-se pepitas pequeninas. Depois pepitas de um centímetro a um centímetro e meio. Na medida em que a água barrenta invadia o canal, escondido sob os sedimentos, criando uma espécie de barranca pela ação de jateamento e depois de sucção, o mergulhador sangrava o fundo raso por horas a fio. Quando a peneira (cascalheira) recebia o cascalho do antigo leito, as tais pepitas surgiram em profusão.
A balsa com suas equipagens adentrara mais de quatro quilômetros na direção do canal a uma altura de uns cinco metros de profundidade, com a escavação sempre preenchida pela água barrenta. Gerônimo, atento, mantinha o canal sempre estreito, de tal modo que pudesse tirar proveito da cobertura natural nas bordas da exploração. Assim evitava contatos aéreos indesejáveis, ou mesmo os imageamentos por satélite, que poderiam denunciar a exploração. Havia encontrado o veio principal e desejava explorar a mina comprida pelo maior tempo possível, antes que surgissem vizinhos.
Para isto também contava com a discrição de seu capataz e braço direito, Bráulio. Quando da aquisição de suprimentos, fazia em pequenas quantidades e em locais distintos, para não despertar suspeitas. Ainda que tivesse de buscar em locais mais distantes. A venda de ouro era igualmente em pequenas quantidades.
Em dado momento, Gerônimo deu-se conta de que as explorações em busca do veio principal, a maior concentração no leito do antigo rio, haviam assumido um formato radial. Entretanto, não era o formato radial que mais prendia a sua atenção.
Era sim o fato de que haviam encontrado vários depósitos menores espalhados por aquela margarida nefasta. O sistema radial se estendia por cerca de 2,5 km a nordeste, e por 2 km a sudoeste do veio mais central. dando a entender que o rio ficou serpenteando com frequência e sempre fazendo novos depósitos.
O que teria delineado esta margarida tão sem vida? Muito simples, a localização de depósitos auríferos espalhados e a poucos metros de profundidade. Camada de aluvião de poucos milênios. Uma exploração de superfície, pois não exigia escavação profunda.
Gerônimo não era tolo. Cada raio no meio da floresta lhe assegurava pelo menos 40 quilos de ouro. Já dispunha de oito rasgos radiais. Além do que já obtivera no canal central, até o depósito maior. Só nesta faixa saíram 110 quilos.
Em menos de um ano percebeu que o veio principal estava se exaurindo, mesmo succionando mais ao fundo. A exploração caminhava para o final. O mesmo já era visível também nos canais menores. A margarida que já nascera sem vida, em breve seria abandonada. Quando isto se deu, já havia extraído mais de 25 milhões de dólares em ouro.
É bem verdade que uns dois ou três dias antes do levantamento, já havia surgido um monomotor sobrevoando a área de exploração, onde aqui e ali, o amarelo da água barrenta já se tornava mais visível, e por conta da extensão, denunciando a presença de garimpeiros. Novo sobrevoo se deu no dia seguinte.
Não havia mais nada para se pensar e mais nada para se esconder. No terceiro dia duas balsas estavam sendo empurradas até o local, cheios de equipamentos e provisões.
Adentraram o canal e subiram rumo ao receptáculo da flor sem vida. Outros logo viriam, e brevemente seriam dezenas.
Onde antes existia uma atividade frenética por debaixo das árvores, na abertura e exploração dos estreitos canais, daquele ponto de vista o que encontraram foi só desolação, além de restos de materiais abandonados no lugar.
Ficou evidente aos recém chegados que só havia uma coisa a se fazer. Desbarrancar mais adiante, na faixa de três a cinco metros de profundidade, a partir de onde haviam parado, no afã de encontrarem alguma coisa de valor. Acabariam interligando os canais já existentes na busca por ouro. Foi quando a exploração se tornou visível a quem quisesse ver, inclusive as autoridades.
Gerônimo passou ao largo sem o nome na mídia, sem acusações, pois quando as autoridades chegaram os autores já eram outros. Adentrou, na sua concepção, dias felizes de festas intermináveis, orgias, amizades tão cínicas e oportunistas quanto ele próprio. É a Lei da afinidade, aproximando os portadores de pensamentos e sentimentos afins. Construiu uma vida de família, pelo menos da boca para fora. Deixaram o tempo passar, como a água por debaixo da ponte.
Nada que cinco anos de gastos ininterruptos, não pudessem cobrir. Gastos descabidos aliados a negócios mal concebidos e mediocremente conduzidos, aproximaram o rico pernambucano da banca rota. Ainda houve um esforço frenético para investir o ultimo milhão, o remanescente daquela prole vistosa e sadia de 25 milhões de irmãos. Decisões equivocadas, aliadas à desinformação, e a uma assessoria no mínimo ordinária, selou a fuga do último monte de dinheiro. Gerônimo estava quebrado.
Sem mais o que investir, seu assessor deu sua participação como encerrada. Bráulio, o capataz, que havia ajudado a gastar, nada podia fazer e se foi. Não podia mais permanecer junto de Gerônimo. Não depois de separar meio milhão para si, sem o conhecimento de Gerônimo, e já antevendo a falência.
No mais, amor oportunista acaba com o fim do dinheiro. Amigos de afinidade, assumiram o comportamento que lhes falava alto e desapareceram. O rico Gerônimo pernambucano, agora estava falido e só.
Descendo os degraus da falência, como um bêbado que foi empurrado, viu-se desprovido de bens. Reuniu algumas coisas em uma mala e partiu para Belém. Não por gosto ou por escolha, foi onde os trocados lhe permitiram chegar. Tentou estabelecer-se como consultor em investimentos imobiliários. Logo ficou patente o seu desconhecimento do mercado e de seu funcionamento. Estudar, conhecer, exatamente a parte que menos o preocupou. Só sabia procurar pelo ouro.
Embarcou para subir o rio Amazonas. Viveu de uma cidade para outra, de uma vila para outra, de um barco para outro. Até nunca mais ser visto.
Comércio de negros
Bastou o navio aportar para iniciarem o trabalho de descarga. O porão fedia, empesteando as narinas com o cheiro de fezes, vômito e urina. Os mortos já haviam sido atirados ao mar no dia anterior e não notificaram novos óbitos.
O capitão e proprietário do negreiro desce do navio acompanhando sua carga remanescente e viva. Água atirada por sobre os corpos e alguma comida. Basicamente pedaços de abóbora e mandioca cozida. Seriam postos à venda já no dia seguinte, o mais rápido e breve possível. Vender logo, receber logo e partir logo. Voltar, receber nova carga e cruzar o Atlântico mais uma vez.
Era a rotina do enriquecimento nos negócios de compra e venda de negros. Perigos à parte, um negócio dos mais rentáveis, nos idos de 1838. O tráfico recebia pressão da marinha britânica, mas a chance de se escapar era muito grande e o esforço era compensador.
Hermógenes, o transportador e vendedor de escravos, tem um comportamento, para se falar pouco, irresponsável. Com a mesma facilidade com que ganhava dinheiro, o perdia em orgias e amizades de caráter duvidoso. A perda da saúde com a sífilis, muito comum nas cidades portuárias, encerraria seus dias.
Na realidade, aquele mesmo grupo de espíritos inconsequentes, repetiriam seus papéis no Brasil e na Amazônia do final do século XX.
Já não há mais riqueza, a mesma se foi. Não há mais mulheres nem brancas, nem negras. Não há bajuladores, todos se foram. Não há mais tempo, o tempo se foi. Não há mais chances, pois todas se perderam.