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Por: Antonio Mata.
Circulando pela fazenda com o porte imponente, Samuel tinha uma vida de causar inveja aos demais. Era o principal reprodutor que sustentava a linhagem do plantel, oferecendo crias de ótima qualidade.
Recebia a melhor alimentação, a água filtrada, os cuidados veterinários, as melhores fêmeas da fazenda, os passeios no campo. Samuel levava uma vida que muitos humanos nem sabiam que pudesse existir. Não havia do que reclamar das instalações. Tudo muito arejado, organizado e higienizado.
Certa feita observara um grupo extenso de animais sendo conduzidos em vários caminhões, tal um grande comboio, cruzando a estrada próxima demoradamente, por conta do número de reses a serem transportadas.
Sem entender o que se passava, aproximou-se de outros animais para saber do que se tratava.
— Mas afinal, o que pretendem fazer levando tantos bois naqueles caminhões? Será que vão viver em outra fazenda? Aqui não tem espaço suficiente para todos?
— Não é nada disso Samuel. Respondeu uma das vacas do outro lado da cerca.
— Soube que serão levados para um abatedouro, que, pelo que entendi, é o destino da maioria dos animais criados aqui, e em outras fazendas da região. São muitas criações, e de tempos em tempos reúnem os bois e os levam para morrer.
Samuel ficou espantado com aquela exposição.
— E os levam para morrer? Você disse, para morrer?
— É isso mesmo bonitão. Nunca lhe contaram? Os donos de fazendas e essa gente toda que você vê circulando aqui dentro, todos eles comem carne. Preparam de várias formas, colocam ervas, temperos, deixam expostos na salmoura, e depois é só assar e comer todos eles.
— Comer todos eles? Então eles saem daqui para virar comida?
— Para um touro do seu tamanho, até que você é bem por fora Samuel. É isso mesmo que você ouviu. Os humanos comem carne. De porcos, de peixes, de frangos, e a mais procurada de todas as carnes, a nossa.
— Samuel, tem uma coisa que eu também tenho que te dizer.
Samuel, que já estava estarrecido com aquela descoberta, arregalou os olhos mais ainda quando ela lhe contou o resto.
— Como você já sabe, pois já ouviu os elogios do veterinário e a cara de satisfação do dono da fazenda, você é o principal reprodutor do lugar. Os melhores filhotes que você ajudou a trazer para o mundo, quer dizer os seus melhores bezerros, são vendidos e levados para outras fazendas. Aqueles seus bezerros que não são assim tão bons, também são levados nos caminhões para o abatedouro. Eles acabam virando comida para os homens também. A vaca prosseguiu, dessa vez, irônica.
— Veja a coisa pelo lado positivo Samuel. Podem fazer frituras, bife malpassado, bife ao ponto, empanado, à parmigiana. Também fazem cozidos ótimos, com legumes e muita verdura. Já o assado meu bem, é um capítulo à parte. Tem até gente dando aulas, principalmente se for para churrasco.
O touro premiado estava desolado e embasbacado com a quantidade de coisas que simplesmente ignorava. Então este era o destino dos seus próprios filhos. Quem não servisse para aprimorar o plantel, era logo abatido, recortado, selecionado, fracionado, até mesmo moído, embalado e transformado em comida humana. É para isto que as fazendas existiam, aprisionar, engordar, matar e retalhar seus filhos.
Cabisbaixo e humilhado, Samuel se retirou do local para ruminar suas dores, sozinho. A crueza daquela dura realidade era demais para o touro premiado, forte e belo. Ele que era o principal padreador da região.
— Preciso fazer alguma coisa, não se pode continuar dessa maneira, isto precisa terminar. Há quanto tempo será que fazem isto? Meus avós desapareceram, meus pais nunca mais os vi. Será que foram todos devorados? Quando será a minha vez, quando isto vai acabar?
Samuel, disposto a buscar uma saída para aquela situação, aguardou vários dias pela possibilidade de poder conversar com o dono da fazenda. Até que a oportunidade chegou.
— Caro fazendeiro e criador, inicialmente, gostaria de felicitá-lo por cuidar tão bem dos animais desta fazenda, sem dúvida, a melhor de toda a região.
O fazendeiro, com o seu ego suficientemente massageado e inflado, ficou satisfeito com a abordagem de Samuel, se interessando pelo animal. Agora Samuel tinha a atenção que precisava.
— Todo esse tempo estive pensando em formas de se aprimorar mais um pouco as atividades da fazenda, que ofereçam possibilidades e soluções para suas dúvidas quanto ao trabalho e produção de animais. Estive pensando na possibilidade de ampliar o plantel, principalmente para o gado de leite e para touros reprodutores. Assim, ampliamos a produção total, e com ela, os lucros da fazenda.
O fazendeiro agradou-se da proposta de Samuel, pois lhe parecia bastante sensata. Mais vacas, mais leite, e então mais derivados saindo da fábrica de laticínios, e finalmente, mais carne. Com mais reprodutores não seria diferente. Era também, mais gado para o abate. Logo, tudo isso significava mais lucro.
Satisfeito com a proposta de Samuel, decidiu colocar em prática imediatamente, para a surpresa do touro que não esperava um retorno tão rápido. Estava definido o plano, uma quantidade maior de gado seria conduzido ao abate, para que um número expressivo de touros reprodutores, vacas matrizes e leiteiras pudessem sobreviver um pouco mais.
Eram bezerros que seriam poupados, enquanto outros, sem as melhores características, seriam sacrificados. O plano prosseguia, mas o massacre também. A ideia não parecia tão boa como supunha. Samuel, tristonho e taciturno, perdeu com o tempo a imponência e o orgulho, tão comum em outras épocas. Seu alívio era ver uma parte maior de seus vitelos obterem mais tempo e chegarem à vida adulta. Na realidade a proporção foi mantida.
A vida avançou com o trabalho nas fazendas da extensa região produtora de carnes e derivados de leite. A marcha rumo aos frigoríficos era interminável. Até que Samuel, já envelhecido e fraco, sem a robustez e vitalidade de outras épocas, foi chamado pelo fazendeiro.
— Agora é a sua vez Samuel. Eu cumpri a minha parte e aumentei o plantel. Reprodutores, novilhos, vacas, todos tiveram a oportunidade de viver mais.
Samuel ouve e compreende perfeitamente. Olha para o campo por alguns instantes, como quem se despede. Alguns bezerros corriam e brincavam, festejando sua curta juventude. Dirige-se ao fazendeiro, como quem se apresenta.
— Estou pronto.
Ao comando do fazendeiro, Samuel é reunido pelos vaqueiros, com outros animais de idade avançada, em direção ao caminhão que já os esperava para a primeira e última viagem. Aurora, que um dia explicou a Samuel como era a vida dos bovinos neste mundo, já estava no caminhão. Não há reclamações, mugidos ou apelos. Só o silêncio de quem já sabe que tudo se acabou. Completado o caminhão, o veículo é fechado e inicia sua viagem rumo ao abatedouro. Desce a estrada lentamente e desaparece com a primeira curva.
O movimento nos campos prosseguiu como de costume. Logo Samuel era só mais um nome fadado ao esquecimento. Aurora, quem foi Aurora? O tempo levou a tudo e a todos no roldão do trabalho nas fazendas e abatedouros, com a produção aumentando cada vez mais.
Sem que se percebesse com maior clareza o que realmente estava acontecendo, ocupados como todos os homens das fazendas estavam com a cria de animais, sobreveio uma intensa estiagem. No início, os fazendeiros apostaram em um trabalho de manutenção, aguardando o retorno das chuvas e com elas, a recuperação da produção e dos lucros. Já sabiam que, eventualmente, uma seca pode ser mais longa que outras.
A natureza, caprichosa e imprevisível, fez prevalecer sua própria lógica, e não a dos homens. Ano após ano, as chuvas não vieram. Os dias avançavam secos, perigosos e quentes. A tão esperada recuperação não veio.
Como se poderia imaginar, o preço da carne e laticínios disparou. Pela necessidade de se desfazer do gado sem água, mas gradativamente, buscando estender os preços elevados pelo maior tempo possível, para salvaguardar a manutenção do plantel principal, cada vez mais caro de se manter, os criadores partem para a diminuição drástica dos rebanhos.
A seca intensa e extensa, trouxe consigo a fome para bem perto dos homens. As safras de grãos diminuem seguidamente, não havia comida para todos. Os excedentes de grãos para a produção de animais, com a concorrência dos próprios seres humanos, entrou em colapso.
Os preços se tornaram abusivos, com as pessoas disputando comida, literalmente aos tapas. Não havia dinheiro que atendesse, simplesmente não havia comida suficiente. Fosse por onde se passasse, por todo o mundo, pobres e ricos sentiam fome.
Já não havia grãos suficientes para todos, fossem homens ou gado, porcos, carneiros e frangos. Decisões extremas precisavam ser tomadas. Rapidamente os produtores começaram a abater seu melhor plantel, antes que morressem de fome e sede. É que a morte já rondava os lares humanos, caminhando para a inanição.
O fechamento dos grandes frigoríficos e distribuidores de carnes, provocou gradativo, mas persistente desemprego nas regiões produtoras. Estes postos de trabalho, acabariam extintos. Muitos fazendeiros foram conduzidos à ruína, sem animais para vender e muitas dívidas para pagar.
A retomada da produção de carne no mundo, ainda alentada por muitos, com o arrastamento daquele cenário de penúria e fome, se mostrou de uma inviabilidade muito real.
Superado o episódio climático terrível, autoridades de todo o mundo compreenderam a inviabilidade de se retornar ao antigo modelo, antinatural e devorador de recursos, agora sabidamente limitados. A produção de grãos para consumo humano precisava ser preservada e protegida.
Pela necessidade absoluta de se alimentar os povos da Terra, a criação de animais para o consumo foi revista a fundo. Os seres humanos adotaram a alimentação vegetal, empurrados pela fome e pela pressão do clima. A era dos grandes rebanhos cobrindo vastas pastagens naturais, ou fruto de sucessivos desmatamentos, havia terminado na Terra. Com ela, o fim do enriquecimento pela venda e abate de animais.
Do outro lado da vida, sob a sombra das árvores, um touro robusto e enorme, observa um pequeno grupo de novilhos em uma pequena fazenda, transformada em hotel, um local de visitação. Os poucos bovinos e demais animais, típicos das antigas criações, são mantidos para fins de preservação das espécies domesticadas.
As crianças e jovens são levados para conhecer os animais como parte do programa de visitação da fazenda. Contente e confortado com a chegada de um novo tempo, Samuel deixou o lugar onde estava e foi se juntar aos bezerros na companhia das crianças. Aurora estava com ele.