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terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

O veterano Venceslau

Por: Antonio Mata

O troar dos canhões, a fuzilaria, as noites em claro, a corrida até os feridos, o rosto enfiado na terra. O primeiro socorro é o último alento. Tudo se passou, e já nem se fala mais. Perdeu importância, as coisas passam. Ficaram as histórias repetidas para quem quisesse ouvir.

Do andar superior, olhava pela varanda o movimento das pessoas lá embaixo. Casais de um lado para o outro, alguém mais apressado, crianças correndo. Tudo onde deveria estar.

— O que posso dizer é que foi tudo muito difícil. É só o que realmente guardei, nada mais.

Se deteve enquanto parecia pensar. 

— Não acho que fiz grande coisa. Mas sei e disso tenho convicção. Não fosse pelos homens com aquela cruz no braço. Não fosse pela coragem, esforço e determinação daquela gente, o resultado teria sido muito pior. O nosso esforço e a cruz na braçadeira. 

— Descemos do navio em setembro de 1944. No último contingente a chegar na Itália. Ficamos alojados até mandarem todo mundo para o combate na linha Gótica, onde a guerra iria começar de verdade. Não tinha muita ideia do que iria acontecer.

Indicou com a cabeça e depois apontou. 

— Tá vendo aquele garoto. Aquele branquinho ali, meio magrelo de cabelinho preto. Eles eram assim. O primeiro que vi, assim que descemos do caminhão, tinha os olhos fundos. Já tínhamos recebido provisões. Abri o bornal e lhe dei uma barra grande de chocolate. Ele deu um sorriso e saiu correndo. É, foi assim mesmo, desse jeito. — Parava um instante e começava depois.

— Quando descemos do barco, não. Não era assim. A população de Nápoles estava em uma condição miserável e a cidade destruída. Faminta, doente e abandonada. Mulheres magras se ofereciam por chocolate ou cigarros. Não podíamos fazer nada. Nem tínhamos como. Só depois que os americanos nos passaram provisões. É que tínhamos acabado de chegar.

— A luta mais intensa foi em Montese. Os alemães não queriam largar a cidade e os arredores de jeito nenhum. Os bombardeios, ataques e contra-ataques se sucederam. Se lutava de casa em casa. Foram mais de 400 mortos e feridos. Foi onde os enfermeiros trabalharam muito. Eu estava lá. Também lamento não ter podido salvar o sargento Max Wolf. Fui o primeiro enfermeiro a chegar no local onde foi atingido em campo aberto, durante uma patrulha. Ele estava varado de balas de metralhadora e perdeu muito sangue. Lamentei muito, mas não pude ajudá-lo. O preço foi alto, mas libertamos Montese.

Emocionado, para e baixa a cabeça, até poder continuar.

— Mas, mesmo assim, ajudei muitos companheiros. Socorrendo no local, debaixo de fogo. Oferecendo morfina ou correndo carregando os feridos com as padiolas. Foi um tempo de muitos sacrifícios. Até que um dia acabou. Recebi uma medalha. Tá lá em casa, prefiro deixar guardada. Aí voltamos para casa.

Aquele falatório chamou a atenção de algumas pessoas.

— Com quem ele está falando?

Foi uma das atendentes quem respondeu.

— Normalmente com ninguém.

— Que pena, estava contando suas lembranças do tempo da guerra na Itália.

— Venceslau? Ele nunca saiu do Brasil.

— Tá falando sério? Mas, ele conta até os detalhes.

— Sim, ele conta até os detalhes. Sinal de que sabe ler e adora artigos e livros sobre a Feb, a Força Expedicionária Brasileira.

— Nossa, mas que doideira.

— Mais exatamente, uma antiga frustração. Ele realmente engajou como soldado no exército, onde fez o curso de enfermeiro de campanha. Acho que é esse o nome. Só que quando mandaram o último contingente, em setembro de 1944, Venceslau não estava nele. Ficou esperando novo embarque, mas isso nunca mais aconteceu. Com o fim da guerra foi dispensado. A gente deixa, ele aí, com seus pensamentos, leituras e ilusões. Pelo menos ele não atrapalha ninguém. Esse, então, foi o resumo da história.

— Ele tem família, tem filhos, vêm até aqui para vê-lo?

— Tem sim, quatro filhos, já é viúvo. Mas há uns quatro anos que não aparece ninguém. Acho que eles também enjoaram de tanto ouvir essas histórias.

Da varanda do segundo andar, onde faz questão de subir as escadas, Venceslau observa os visitantes do asilo. Então reinicia a sua narração de costume. Do brio, da coragem e determinação em tempos de guerra.

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