Por: Antonio Mata.
Poderia até mesmo dizer se tratar de algo comum. O raio de ação, qualquer coisa em torno dos 30km. Nas injunções da vida, dava para chegar aos 40 km, não sem muito esforço.
Tudo vencido na determinação, na força e na coragem. A partir daí, o ideal mesmo seria um motor. Fazia muito sentido descendo o rio. Para subir, outra história e muito trabalho.
Daí do centro, até o extremo, tudo acontecia nas matas, nos rios, nos espaços da vida, cada vez mais distantes.
A pele clara e curtida de sol, não dizia grande coisa. Já os olhos grandes, castanhos e igualmente claros, não deixavam mais esconder a herança sertaneja da virada do século.
À frente da canoa, Maria da Graça, como não poderia deixar de ser, a Gracinha, subia o rio com a ajuda de Timóteo no remo. Só não revezava, mas ajudava assim mesmo. Aprendera a não temer as longas distâncias de seu diminuto universo.
As primeiras duas horas já haviam se passado, com previsão de chegada para o início da tarde. Para quem cresceu no seu ofício, primeiro se cuida de tomar conhecimento da situação e fazer as intervenções que julgue mais necessárias. Repouso e comida, isto é só para depois do serviço.
Antes assim, ela mesma preferia. Muito melhor que a impressão de ter chegado atrasada ou mesmo tarde demais. Não gostava de tais situações. Era, sim, de se importar com a sorte da outra.
Inácio Pompeu, quando trazia mercadorias no regatão, trazia também as novidades da capital. Uma das fontes mais interessantes, da qual todos queriam saber, era a Voz da Baricéia.
Transmitindo notícias do governo local, cotações de produtos, os primeiros comerciais e oferecia músicas e cantores do lugar, até às imediações da cidade.
Um punhado de rádios existentes, tratavam de espalhar as novidades, compensando, pelo menos em parte, a falta de aparelhos de rádio e da pouca rede elétrica.
Foi daí, a popularidade de Inácio Pompeu, trazendo as notícias do jornal e do rádio, aliás, tudo muito parecido. Acabou por cativar seu público, recebendo encomendas certas de tal forma a não desperdiçar nenhum espaço no barco.
Aquele vai e vem de produtos e notícias passadas de boca em boca pelo interior, fez o cordão umbilical da ribeira com o resto do mundo. Um cordão frágil; inconstante; incompleto; fantasioso e de pouco alcance. Porém, existiu e funcionava.
Claro que o imaginário popular não deixava de oferecer as suas nuances. Os episódios simples e mais corriqueiros da cidade grande recebiam os matizes do interlocutor. Por entre notícias das gentes importantes da cidade, as fofocas ao gosto de cada um.
Já os mais graves, falavam de coisas que se passavam ao longe. Lá nas terras da Europa, que no início de 1939, enquanto Inácio fechava negócios, se preparava nervosamente para o seu segundo ensaio de autoextermínio.
Ao anoitecer, à luz de velas e lampiões, adultos reunidos, a imaginação ganhava pulso. Por que razão um avião deveria atirar bombas? Não tinha sido feito para levar pessoas? Questões honestas e de difícil resposta.
Laurindo lembrava de ter escutado Inácio contar, uma notícia que deu na Baricéia, que certa vez teriam utilizado o avião para lançar bombas em Guernica. Uma cidade na Espanha.
Conversas importantes. Afinal, Gracinha era analfabeta, assim como a maioria dos presentes.
— Inácio contou que deu no rádio, lá pro rumo da cidade que estão reunindo novamente, um monte de “avião”. Eu queria ver passar um por aqui, mas sem bomba. Não é, não? — Dizia Gracinha.
— Eu já vi um avião. — Disse Laurindo.
— Foi mesmo, como é? Eu nunca vi.
— Bom, tava muito alto. Só deu pra ver a asa. Uma de cada lado. No meio tem um negócio. Deve ser pra levar gente.
— Em cima dele?
— Acho que é em cima, sim.
Amnesio, curioso, entrou na conversa.
— Não seria dentro? A gente não anda dentro da canoa?
Os demais se puseram a pensar naquela indagação.
— Não tinha pensado nisso. Se é dentro ou se é em cima. Eu só sei que tem gente lá. — Afirmava Laurindo.
— Sim, lá tem gente. — Dizia Amnésio. — Só precisa ficar dentro. Na canoa, se ficar fora, você cai na água. No avião, se você ficar fora, você cai de lá de cima.
— Eita! É verdade mesmo. Tem que ficar dentro. — Concluiu Laurindo, satisfeito com a descoberta.
— É mesmo, deve servir para levar um monte de coisas. — Gracinha fazia suas proposições.
— Que coisas?
— Coisas que não dá pra levar no motor. Coisas que precisam chegar logo.
— É, se tem muito avião por lá, é porque tem muita coisa para carregar e rápido. Só não sei essa tal de bomba — Concordava Laurindo.
— É isso mesmo. Leva as outras coisa e deixa as bomba — Concluiu Gracinha.
No dia seguinte, Gracinha contava a conversa da noite anterior, agora para Timóteo, enquanto remavam até chegar em seu flutuante, onde sua mulher precisava de uma parteira.
Assim, logo a calha do Negro ficaria sabendo que, em uma terra muito distante, estavam reunindo bombas e um monte de outras coisas. Que deveriam seguir rápido com tudo aquilo, e que por isso precisavam de muitos aviões.
Era a propagação da notícia. Pelo menos, até a altura de Santa Izabel. Outro lugar também muito longe, remando até “desmanchar os braços”. No entanto, lá era sem bombas, sem muitas coisas e nem aviões.
Gracinha, a parteira; benzedeira; rezadeira; curandeira e o que mais houvesse de ser. Era sempre acionada nestas horas. Dessa vez, para o terceiro filho de Timóteo.
O ofício de parteira herdara de sua mãe. Já o de benzedeira, rezadeira, aprendera com sua avó Marina, que havia observado em Gracinha, já moça, as características necessárias para se rezar e fazer um bom e eficiente benzimento.
“Isso não é pra todo mundo. Tem que ser a pessoa certa.” — Dizia vó Marina, em outros tempos.
Em uma época de pouquíssimo apoio médico, Gracinha consumiu seus dias e sua juventude, sem muito se preocupar com o que se passava no mundo distante e conturbado. Santa Izabel ficava longe. Do outro lado do Atlântico, também longe. E isso era tudo.
Entretanto, ajudou mulheres no momento do parto e amparou inúmeras crianças com aqueles males que não aparecem no CID – Código Internacional de Doenças. O “vento virado”, o “mau-olhado”, “espinhela caída”, “quebranto” e “cobreiro”.
Vinte anos depois, o primeiro aparelho de rádio chegou e era de pilha. A Voz da Baricéia, dos tempos de Inácio Pompeu, tinha mudado de nome. Agora era rádio Baré.
Aliás, Inácio com o tempo prosperou. Estabeleceu-se em Manaus como comerciante e atacadista, em seu próprio armazém.
Os olhos claros, de cabelos cor de mel, agora esbranquiçados, no rosto de mestiça bonita, viram muita coisa no mundo da ribeira. Dessa vez, contemplavam a primeira transmissão de tv, através de uma antena parabólica na pequena localidade de beira de rio.
Viu aumentar a população do lugar, além de oferecer seus filhos e netos. Viu os barcos cada vez maiores e cada vez mais rápidos. Os aviões, agora são comuns, de tanto que os viu cruzando os céus e ainda nas imagens da tv.
O raio de 30km havia ficado para trás e muito remo também.
Apesar de lamentar nunca ter conseguido viajar em um daqueles aviões grandes, Maria da Graça nunca esqueceu das palavras de Amnésio, no agora longínquo 1939, “... só precisa ficar dentro. No avião, se você ficar fora, você cai de lá de cima.”