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terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

Orelhinha de urso

                                                                                                                                                  Foto: Maria TC Lima.

Por: Antonio Mata

 

Angélica estava contente com o pequeno presente que ganhara pela época de seu aniversário, de um amigo de trabalho. Levou para casa e procurou acomodar confortavelmente a femeazinha Chow-Chow que lembrava uma bolinha bege com orelhinhas marrons.

Muito fofa e bonita, rapidamente conquistou a simpatia dos demais. Foi deixada solta fazendo o reconhecimento da casa. Isto sem seguir as recomendações de sua tia ao avisar que não se deve soltar o filhote, só quando for maior, pois, expõe o mesmo a toda sorte de contaminações.

A pequena Chow-Chow, já depois de circular por todo canto, satisfeita, foi se recolher ao seu cantinho acolchoado. Sorte ou não, ainda não dava para saber o resultado do comportamento imaturo de Angélica. Estes cãezinhos são muito frágeis e podem adoecer por conta de pequenos deslizes de seu dono.

Maritza ganhou seu nome já no dia seguinte, e completando três meses já circulava com desenvoltura por toda a casa e pelo grande quintal, assumindo a pelagem farta de um Chow-Chow, com a curiosidade típica dos filhotes.

A pelagem castanho claro da pequena Maritza, mesmo exigindo um certo trabalho para mantê-la sadia e bonita, provoca um efeito magnífico que rapidamente chama a atenção das pessoas. A filhota esbanjava simpatia.

Havia mais uma coisa: os dentinhos estavam ficando bem afiados também. Na realidade, por serem muito pequenos, eram por demais pontiagudos e podiam acidentalmente ferir. Foi quando começou a confusão.

Maritza, assim como muitos cães, se comunicava com os demais através de delicadas mordidinhas. Era um pedido de atenção, um chamado. De fato, um convite para correr pela casa e brincar até se cansar.

Simpática e sorridente, Maritza adorava convidar os demais para participarem das correrias pela sala, saindo na varanda e ganhando rapidamente o quintal. É uma linguagem fácil, alegre e simples de se entender. Para quem é cachorro.

A cada chamada de Maritza só se ouvia o grito:

— Aaaih! Para de morder minha perna, cachorro! Gritavam, com cara de aborrecimento. Assim, Maritza deixava de ser a cadelinha querida da casa para ser só uma cachorra estúpida. Quanta sensibilidade humana.

Era mais exatamente na panturrilha e no calcanhar, por causa de sua altura. Imagine se o filhote tivesse o tamanho de um adulto. Teriam deixado que comessem todos eles lá na China mesmo. Tudo era só uma mordidinha bem de leve como quem chega e diz “agora tá com você, vem me pegar”!

Mas, a pele humana é fina e inapropriada para brincar com cachorros, a paciência pouca, a ignorância grande, e sem poder morder de volta. Era desigual aquilo e já devia estar escrito que dessa vez a pequena Chow-Chow iria perder.

De tanto brigarem com ela, que não sabia exatamente por que brigavam tanto. Então, desconcertada e confusa, finalmente Maritza sacrificou seu espírito de filhote brincalhão e acabou parando de chamar para brincar.

Devia achar aquela gente muito estranha, preocupada em fazer um monte de coisas, mas sem interesse em correr e descobrir coisas novas. Maritza não entendia como era possível viver daquele jeito estranho.

Apesar das brincadeiras pouco compreendidas de Maritza, Angélica via na  cadelinha, quando já  caminhava  para  completar  seu primeiro ano de vida, uma ótima guardiã. Atenta a todo e qualquer som, corajosa e destemida, fosse de dia fosse de noite.

Fosse barulho de gente ou de algum bicho do lado de fora. Maritza, sem nenhum temor, se dirigia rapidamente ao portão para averiguar, diante de algum chamado ou ruído. Parava nos limites da varanda e latia algumas vezes, como a chamar alguém da casa, mas sem demonstrar o menor receio pela presença de estranhos. A pequena já impressionava Angélica.

Gostava de tirar um cochilo no espaldar macio do sofá da sala, o que ensejou várias fotografias da cachorrinha descansando. A “minha orelhinha de urso”, dizia Angélica toda contente com a sua pequena filhota. Sempre limpa, asseada e cheirosa, Maritza era o mino da casa. Que crescia, crescia, e se pudesse, mordia. Está certo, é bem verdade que era brincando..., mas mordia.

Havia decidido criar sua filhota dentro de casa, que achava mais seguro para o animal, dizia a seu marido.

— Mas não deveria ser um cão de guarda? Perguntava ele.

O fato é que Maritza se instalou debaixo da cama do casal, estabelecendo lá o seu local preferido para dormir durante a noite, já que sua pelagem extensa lhe provocava muito calor, e o friozinho do condicionador no quarto tornou-se muito bem-vindo. E foi assim que uma boa cadela para a guarda acabou virando cachorro de madame. Vai entender...    

Um grande alívio, na medida em que o tempo avançava, é que ela compreendia certos limites para então poder brincar com os demais. Entendeu que não era para morder, mas que realmente apreciavam seu espírito brincalhão, tanto quanto seu espírito alerta e destemido. Aos poucos as coisas estavam se ajeitando para a cadelinha e para a vida de Maritza.

Já caminhando para um ano e meio de idade, Maritza amanheceu acabrunhada e muito silenciosa. Não se levantou cedo para percorrer o quintal e nem foi ver o que se passava no portão da frente de casa como de costume.

Também não tocou na sua ração Premium, da qual Angélica fazia questão de oferecer. Estava deitada em um canto da sala, um tanto quanto imóvel. Parecia sentir muita dor no abdome, e em dado momento passou e emitir um latido agudo, bem baixinho.

Angélica ao se levantar da cama foi ver o que se passava e encontrou Maritza encolhida no chão. Rapidamente se aproximou e verificou que o animal que já se encontrava prostrado, e já não respondia aos seus chamados.

Gritou pelo marido, puseram Maritza dentro do carro e saíram rumo a um socorro veterinário que pudesse diagnosticar e amparar a jovem Chow-Chow. No meio do caminho, Angélica sentada no banco de trás com Maritza no colo, viu a língua da cadelinha pender para fora da boca. Disse então:

— Ela já não está mais aqui.

A perda de Maritza foi sentida por toda a família, mas, foi um grande abalo para Angélica, tal e qual a perda de uma filha muito querida. Deitada entre fotografias e crises de choro, Angélica lembrava e chorava sem entender como perdera tão rápido um animal tão amado e tão coberto de atenções.

O que foi que aconteceu, o que deu errado? Pensava. Não achava justa a perda de sua cadelinha ainda tão jovem e tão cheia de vida. Revisava mentalmente os últimos dias de Maritza e não encontrava uma resposta adequada. Se culpava por não ter percebido o que pudesse estar acontecendo, o que lhe permitiria ter socorrido sua cadelinha em tempo útil. Agora tudo estava no domínio das meras especulações; se desse jeito, se daquele...

Dias difíceis aqueles; era preciso sarar pelo tempo. Nestas horas é o melhor dos remédios. Já perto de uma quinzena após o trágico incidente, Angélica ainda não havia se recuperado muito bem do abalo que sofrera.

Foi então que durante uma certa noite, como que semiacordada, sentiu ao lado de sua cama, na altura do seu rosto, o hálito quente, arfante. Também a  presença doce e carinhosa de Maritza, cutucando-a com o focinho e dando uma mordidinha na mão bem de leve, como quem chega e diz: “Já me esqueceu, sou eu, pensou mesmo que eu iria embora sem ver você”?

A pelagem cheirosa de talco, a lambida no rosto e as patas na beirada da cama. Olhou, e de relance pôde ver na penumbra do quarto os olhinhos negros de Maritza e aquele sorriso de cachorro; com a boca bem aberta que só os cães sabem dar.

Tinha vindo se despedir da amiga de dias felizes, e de tão pouco tempo. Tinha sido tudo tão rápido, tão fugidio, mas o suficiente para conquistarem seus corações mutuamente de um jeito que só a empatia, e o sentimento amoroso entre humanos e os cães conseguem explicar.

Ficou sacudindo o seu rabinho enrolado, típico destes cães, fitando Angélica com seus olhos pequenos e repletos de vida. Depois de se confortarem mutuamente; calmamente se afastou. Caminhando com a graça dos Chow-Chow na direção da porta entreaberta; dobrou à direita se dirigindo ao corredor.

Na companhia de amigos espirituais que já lhe aguardavam; tomou o caminho da eternidade. Era um caminho diferente; em  outro tempo que não era o nosso. O caminho de um céu canino, um lugar especial; ou como se achar melhor. Algo como aquele que, de qualquer modo, teremos de fazer também; quando a nossa hora chegar.

Angélica não entendia direito como as coisas acontecem tão rápido, a ponto de não se notar com a mesma clareza a sequência de eventos da vida. Assim como as pessoas, os cães, os gatos, franguinhos, patinhos, passarinhos. A nossa coletânea de pequenos companheiros de viagem; vêm e vão. Sequer notamos quem escolheu quem.

É a lógica da vida, a qual nós ainda não compreendemos muito bem por quê. Só sabe que existe, e que o fenômeno parece se repetir de forma incansável, até que um dia, quando menos se espera; ele vem alcançar a nós mesmos. Tal é a natureza e a sutileza da vida. Muitas vezes pensamos que acaba; ela então vem e reafirma que não.

Angélica virou na cama, se acomodou; parou de chorar e voltou a dormir. Na manhã seguinte contou ao marido o ocorrido durante aquela noite. Este, lhe explicou que ela tinha sonhado. Angélica não se importou; intimamente não acreditava nisso. Havia consigo dessa vez uma saudade que não fere nem machuca. Uma tranquilidade de quem já aceita o que se passou e que era preciso seguir adiante.

Para os que ficam a vida continua. Vestiu-se, tomou seu desjejum e foi para o trabalho como de costume. O dia estava claro, com poucas nuvens e a promessa de muito sol. Casais de curicas faziam revoadas e conversavam no céu, saudando a manhã. Angélica admirou o céu azul, as curicas conversando; sorriu aliviada pela beleza manhã. Agora estava tudo bem.

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