Imagem: Public Domain - Linnaea Mallette
Por: Antonio Mata
Surgia como reminiscência. A aqueles poucos que ainda guardavam aquela lembrança, já muito distante. Fragmento fugidio levado pelo tempo. Tempo de exclusão, medo, insegurança, mas também glória e fé.
Tais fragmentos causavam contrição, quando não perturbação, dependendo só de como chegassem tais pensamentos. No todo, o sentido de identidade já há muito se perdera. Foram apagadas, como incontáveis passagens da vida de cada um.
O grandalhão Antoninus, conhecedor do lugar, seguia à frente. Sempre em silêncio e na escuridão. Acostumara-se com aquelas incursões, ele que era um ilustre remanescente, a despeito de todo o seu tamanho. Somente em determinado ponto, ao ingressar, poderiam acender uma lamparina ou ainda uma tocha.
Estas ficavam escondidas entre as ossadas e pedras, providencialmente ali deixadas, avançando-se alguns passos a partir da entrada. As mulheres escondiam um combustível, derivado do azeite e pederneiras.
Sempre havia o risco de serem interceptados pelos vigiles e detidos por atitudes suspeitas. As coisas haviam mudado fazia tempos. Os próprios vigiles possuíam uma terceira atribuição, além do policiamento e da vigilância contra incêndio.
De fato, o que induzia a suspeição era a busca permanente aos seguidores de um certo carpinteiro da Judeia. Após o grande incêndio, passaram a ser tratados como inimigos do império e haviam ordens explícitas para prendê-los.
A mensagem do judeu deveria ser extinta, tanto quanto seus seguidores deveriam ser exterminados, se preciso fosse. Daí todo o cenário de perseguições e medo lançado contra os mesmos. Contudo, não paravam de crescer.
Os vigiles os chamavam de ratos. Aquela gente que vagueava por entre ossadas nas catacumbas. Buracos no chão, túneis cada vez maiores e cada vez mais cheios de ossos.
O tal judeu, um lunático que fora sentenciado e morto por difundir ideias nocivas ao império. Isto era tão perigoso, que patrulhas de legionários começaram a surgir nas ruas da cidade.
Havia a desconfiança de que certos vigiles estariam se deixando contaminar por estas ideias nocivas e com isso, passando a acobertar estes seguidores. Foi isso que trouxe os legionários e suas buscas, de tempos em tempos, por ordem do imperador.
Assim, bastava uma denúncia ou mesmo uma simples desconfiança. Para estes, o julgamento sumário, a prisão e o Coliseu eram certos. Tudo muito fácil, pois não negavam sua condição, preferindo denegar a divindade do imperador. Assumiam sua própria sentença de morte.
Aquela gente de pensamentos e práticas estranhas aspirava o céu, o paraíso. E por alguma razão, enterravam os corpos dos mortos. Os soldados viam isto como um gosto mórbido.
Guardar sob a terra os despojos daqueles que tenham sido capturados e mortos, ao invés de crema-los de imediato. Depois, tinham por aquelas ossadas, uma quase veneração. Eram seus mártires. Tudo muito diferente e sujo, pensavam os guardas.
Aquele costume mórbido, aquele gosto estranho, aliados ao insulto ao império, também não saía da cabeça dos centuriões, responsáveis pelas patrulhas de legionários.
No alojamento de uma coorte, dois homens conversavam.
— As práticas dessa gente, além de serem estranhas, são incompatíveis com uma cidade, onde o espaço costuma ser restrito. — Assim dizia Ennius, um dos centuriões.
— Também acho. Soube que faziam covas na terra para receber os mortos. Faziam fileiras no chão. Lembraria até uma tropa de legionários, só que todos mortos. — Agora era Hadrianus, seu segundo em comando, a zombar e a rir do bando de pervertidos. Isto, segundo ele próprio.
— Pobres e infelizes, era tanta gente que já não cabia mais ninguém. Homens, mulheres e até crianças. Queriam guardar todo mundo perto deles. Uns loucos, isso sim.
Contudo, e a despeito do comentário, o homem parou por um instante e tornou a se dirigir a Ennius.
— Pensa um instante. Esse hábito estranho, assim como as soluções que têm buscado para mantê-lo, falam sim, do nosso fracasso. Da nossa incapacidade em detê-los. É por isso que crescem tanto.
— O quê? Agora é você a ficar sem juízo homem? Até legionários patrulham as ruas de Roma. Estão perdidos, isso sim. Tudo não passa de uma questão de tempo. Só irão encontrar a morte.
— É mesmo, tem certeza? Um serviço em que os vigiles não recebem combate. Não há enfrentamento, nenhuma luta. Nem por isso os vigiles dão conta. Além desses ninhos de ratos que não param de crescer. A propósito, você já entrou nestes buracos? Já viu como são extensos?
— Claro que sim. Pensa você comigo Hadrianus. Estão ou não estão se escondendo? Estão ou não estão com medo? Se não enfrentam nem os vigiles, vão querer enfrentar legionários?
Hadrianus, que quis brincar com o assunto, agora buscava paciência, mais paciência para poder continuar conversando com o companheiro centurião, que parecia não entender a dimensão de suas preocupações e do problema.
Aliás, bem realistas. Aquela gente, por estranha que fosse, parecia não temer ninguém. Nem que fosse a própria Guarda Pretoriana, a guarda do imperador.
— Vi grupos de homens fortes serem presos sem dar um único pio, Ennius. Mesmo sabendo que iriam enfrentar a morte. Há algo de muito errado na cabeça dessa gente. Um louco é um louco. Mas, tanta gente assim? Como se tornaram tão enfeitiçados? Que significado haveria nisso?
Hadrianus acreditava que talvez tenha sido isto que os levou a escavar a terra, criando galerias subterrâneas onde pudessem guardar aqueles corpos e ossadas. Tal e qual um bando de ratos, faziam extensas galerias fúnebres.
— Deixe de lado este devaneio. Vamos ao que interessa Hadrianus. — Uma coisa no comportamento dos ratos, havia chamado a atenção do legionário.
Os tais lugares fúnebres estavam sendo utilizados como locais de culto ao tal carpinteiro e seus mortos.
— Ora, Hadrianus, descubra-se o dia de reunião e os ratos serão todos pegos de uma só vez. Apenas acompanharemos a organização de novas reuniões nestas catacumbas gigantes. Em pensar que era apenas um buraco na terra.
— Sim, aí está o problema. Você poderá pegá-los todos de uma só vez. Então serão levados à arena para serem trucidados pelas feras ou então queimados vivos. Em seguida, Ennius, você descobrirá que estes buracos ficaram mais cheios de ratos do que antes. Como explica isso?
Ennius dessa vez permaneceu em silêncio. Logo teria ao seu alcance as informações de que precisava. Capturaria um grupo de dezenas, talvez centenas de seguidores. Os apresentaria, sob a lógica do cumprimento do dever do legionário para com Roma. Todo o resto não passaria de mera consequência.
— Vou encontrá-los e prendê-los. E se tiver de voltar Hadrianus, eu voltarei. Você mesmo vai ver.
Hadrianus, um centurião calejado que fizera carreira na tropa, nos campos do norte, combatendo germânicos. Acostumado a matar e a servir ao imperador, fez mais um comentário.
— Há algo muito forte ali. Algo que arrasta os homens, as mulheres e as crianças. Algo que enfrenta os deuses. Que não teme o imperador. Talvez, algo verdadeiro.
Saltou sobre Hadrianus agarrando-o pela garganta.
— Cala tua boa homem! Cala tua boca! Senão eu mesmo irei prendê-lo, legionário. Nunca mais fale sobre isso para mais ninguém. Nunca mais homem, nunca mais. — Largou-o, olhando enfurecido.
— Não desonre as legiões de Roma. Não haja como um fraco.
Hadrianus, parecia muito pouco se importar com o surto de violência do amigo. Então era isso. Ennius não iria compreender. Não estava interessado em estudar o caso. Parecia ser demais para aquele legionário. Porém, se Hadrianus insistisse em sua postura, faria de um amigo leal de tropa, um inimigo perigoso.
Dias depois. Início de noite na capital do império.
Vigiles faziam a patrulha habitual, com ordens de relaxar e manterem relativa distância dos locais de interesse. Grupos de legionários aguardavam mais distante. Queriam passar um ar de tranquilidade, de tal modo que os seguidores dos mortos ficassem à vontade e caíssem na armadilha.
Na medida em que a noite caía, pequenos grupos de seguidores surgiam e seguiam adiante, disfarçadamente tomando o rumo das catacumbas. Alguns levavam pão e outros vinho. Pareciam contentes, ante a caminhada, a despeito do risco assumido.
Adentraram as catacumbas, escavadas continuamente, sempre havendo homens dispostos a prosseguir nas escavações. Uma expressão singular de fé.
Uma forma particular de servir a Deus, da parte daquela gente. Escavar túneis incansavelmente, mesmo sabendo que poderiam estar preparando sua própria sepultura.
Apanharam o azeite e o alcatrão. Acenderam as tochas e lamparinas, adentrando o labirinto de sepulturas, colocadas umas sobre as outras, como que em prateleiras, para melhor aproveitar os espaços. Daí ter de cavar sempre. Avançavam em silêncio.
Em espaço de maior largura, finalmente se reuniram. Começaria logo a narrativa dos feitos de um homem incomum. Que curava os doentes, ensinava a curar e falava de um mundo melhor e plenamente acessível a qualquer um que desejasse segui-lo. chamavam O Sermão do Monte.
Do lado de fora, a armadilha era posta em execução.
Soldados se posicionaram à entrada das catacumbas, enquanto outros grupos adentravam as câmaras conduzindo tochas e prontos para enxotar os participantes daqueles encontros às escondidas, de volta para fora.
Logo o ruído da movimentação de tropas vasculhando as galerias mais próximas à entrada, era percebido por homens incumbidos de estarem atentos a tudo o que atrapalhar o encontro.
Em um sussurro tenso, deram o sinal, encerrando o culto.
— Quintus, Quintus, depressa, soldados estão vindo para cá!
Quintus, um dos seguidores mais antigos, reúne seus guias e manda cumprirem o plano de fuga já traçado. Agora teria de funcionar o melhor possível.
— Meus irmãos, já sabem o que fazer. Conduzam os seus grupos conforme combinado, com rapidez e o maior silêncio possível. Que Deus os acompanhe.
A partir dali, em pequenos grupos, cada um com o seu guia, percorreriam as galerias, cada vez mais a fundo. Penetravam um emaranhado de passagens que se tornavam úteis para a dispersão rápida e ocultação dos seguidores.
Passagens estreitas; buracos disfarçados; sepulturas de fundo falso, ossadas que encobriam passagens. Caminhos que terminavam no mesmo lugar, porém com uma derivação oculta. A necessidade de se fugir ao avanço dos vigiles e dos legionários propiciou o uso da criatividade para estes momentos.
Havia um procedimento de segurança que possibilitou o uso das catacumbas por muito tempo. Nada era escrito sobre elas, entretanto, os escavadores passavam seus segredos e suas novas passagens de um para o outro, oralmente.
Caso fosse capturado, outra pessoa fora das catacumbas, conhecia os caminhos escuros. Consideravam uma grande honra, trabalhar, viver e morrer daquela forma.
Os poucos textos existentes eram referentes às mensagens do carpinteiro, que viriam a compor o seu evangelho. Eram copiados manualmente e repassados secretamente. Alguém que fosse pego com tais papéis, pagaria com a própria vida.
Após a invasão das catacumbas, prosseguiam as buscas visando o aprisionamento dos seguidores.
Nesta primeira fase, os soldados gritavam, batiam com as espadas nas paredes e nas ossadas. Visava criar um clima de terror entre os seguidores do carpinteiro.
Após as prisões feitas pelos soldados estes, discretamente, haviam deixado aqueles encarregados de retornar e percorrer as galerias na busca daqueles que tivessem escapado.
Sabiam que poderiam estar escondidos ou ainda que pudessem ter se perdido no labirinto. A despeito do risco, sempre presente, havia muita união entre os seguidores. Na calmaria ou ante a perseguição, eram de fato irmanados.
Não existiam armadilhas, pois não se consideravam inimigos de ninguém. Apenas um emaranhado de corredores, caminhos e galerias idealizados para a ocultação dos fiéis seguidores.
Os legionários faziam uma última varredura.
Cato; Marcus; Manlia e sua irmã Regina. Cornelia; Lívia e Regulus Africano, marido de Manlia. Conforme definido antes de acessarem as catacumbas, acompanharam Jano pelo labirinto até um monte de ossadas. Estavam assim dispostas para ocultar uma estreita passagem que dava para um cubículo. Entraram no local e amontoaram-se. Lá ficaram em estrito silêncio.
Os poucos minutos se transformaram em quarto de hora, e este em uma hora.
— Será que já foram embora? Cochichava Lívia.
— Lívia, silêncio! Repreendia Regulus.
— Vocês fiquem quietos. Ainda ouço passos. — Janus sussurrava, buscando sossegar seu grupo, pois ainda não havia segurança.
Não demorou e as passadas se faziam bem audíveis. Traziam tochas e iluminavam tudo pelo caminho, atentos a esconderijos. Quando passaram junto ao acesso do cubículo, aqui e ali, entre as ossadas, fateixas de uma luz trêmula eram vistas pelo grupo, agora assustadiço que procurava se ocultar, mal respirando.
A tensão, o nervosismo, a ansiedade desmedida, às vezes pregam peças ludibriando o mais bem montado plano. O mais bem preparado grupo e seu esconderijo. O mais bem intencionado seguidor do amável carpinteiro, motivo de seus esforços.
O último dos legionários avançava mais lentamente, pois a busca pelas galerias já se estendia para além de duas horas. Retornou e iluminou mais uma vez aquele trecho, nada demais observando. Retomou a marcha, a fim de acompanhar sua patrulha.
Repentinamente, deu-se conta de algo inusitado. Um brilho, só um brilho. O que fazia um brilho qualquer naquele lugar? Ossos secos não brilham na luz. O que foi que viu afinal?
Tornou-se a virar na direção daquelas ossadas. Das incontáveis ossadas que já havia verificado nas últimas horas. Chega um momento em que já se enxerga tudo igual. Só não foi daquela vez. Esta era diferente, não a ossada, mas o chão.
Ao brilho vermelho-amarelado da tocha, enxergou um filete brilhante correndo sobre o piso de pedra. Aproximou-se e pôde ver que se fazia pequeno filete sobre a pedra, que sumia rapidamente ao entrar em contato com a terra.
— Ratos aqui! Encontrei ratos aqui! Os malditos estão aqui!
Ao grito do legionário, os demais retornaram rapidamente ao local. Resoluto, o soldado sacou da espada e em sucessivos golpes desmontou a ossada, fracamente fixada, que escondia o cubículo de esconderijo.
Lívia, entre o desespero e a paralisação pelo medo, havia urinado. O que denunciou o grupo e o esconderijo.
— Para fora animais, para fora seus ratos! Para fora bicho de rabo!
Corriam de volta ao corredor debaixo das injúrias dos soldados e das estocadas nas costas, feitas com o cabo da espada, contra homens e mulheres.
Ao se aproximarem dos corredores de acesso a entrada, puderam ver que outras pessoas capturadas, além deles próprios, estavam sendo ali concentradas. Ao comando de um decurião, todos foram postos para fora das catacumbas.
— Para fora rápido! Ponham os animais para fora! Hora de correr para fora da ratoeira!
Lá fora, Ennius aguardava com as tropas enfileiradas na saída das catacumbas. Havia organizado algo que um dia chamariam de corredor polonês, por conta de um evento histórico bem mais recente. Contudo, aquele era o corredor da ratoeira.
— Recebam esses animais! Com os cumprimentos de Roma!
Quando começaram a sair, golpes indiscriminados feitos com a espada deitada, atingiam os seguidores do carpinteiro, homens e mulheres. Só não era permitido bater sobre as cabeças. A pancadaria chegava como uma prévia dos suplícios que viriam a seguir. A justiça de Roma seria feita.
Conduzidos pelas ruas sobre os olhos da multidão, que outrora os humilhava. Porém, naquele momento, já nas sombras da noite, a população apenas assistia em silêncio.
O grupo, tendo entre uma centena, ou uma centena e meia de homens e mulheres, agora maltrapilhos e ensanguentados, prosseguiam igualmente em silêncio, tangidos pelos soldados, na direção do Coliseu romano.
Lá, aguardariam até o dia seguinte, até o momento da matança, pendurados em estacas e cruzes na Via Ápia, queimados ou devorados vivos, às vistas da população, convidada para assistir e fazer apostas, diante de tais eventos macabros.
— A culpa foi minha, a culpa foi minha. — Em prantos, Lívia assumia a responsabilidade pela captura de seu grupo. A despeito de toda preparação para uma eventual ocultação e fuga.
— Não se culpe Lívia. Todos nós sabíamos que a chance de sermos pegos era grande. A despeito de todo o cuidado. Não somos soldados, somos gente simples do povo. — Janus amparava Lívia em sua dor. Dizia a verdade, a chance de algo dar errado era enorme.
— Aconteceu o que tinha de acontecer Lívia, nem mais nem menos. É a parte que nos cabe, não há o que lamentar. — Era Quintus, também capturado.
Consolando-se mutuamente, preparavam-se para os episódios mais difíceis que logo se fariam surgir. No dia seguinte, decidiu-se que todo o grupo seria encaminhado ao Coliseu, já pela manhã. Parte seria entregue às feras para serem devorados. Os demais seriam queimados em fogueiras preparadas para tal.
Não tardou, a hora estabelecida chegou trazendo a festa para a população e o horror para os seguidores de Deus e do carpinteiro crucificado da Judeia.
Cato; Marcus; Manlia e Regina. Cornelia; Lívia; Regulus Africano e Jano. Todo o grupo capturado em um dos esconderijos das catacumbas, permaneceu junto. Foram destinados a enfrentar leões na arena do Coliseu, para a alegria da multidão. O espetáculo covarde, imoral e insano não durou três minutos.
O dever, a espada e a consciência.
— Hadrianus, prepare-se, logo teremos de voltar às catacumbas. Esses inúteis parecem um bando de mulas. Não vão parar de cair na armadilha tão cedo. Vamos vencer Hadrianus. Nós vamos vencer, pois o império sempre vence.
Hadrianus olhava em silêncio, a cidade ao redor. Ao longe, a fumaça indicava mais um grupo de homens e mulheres queimando. Os pedaços de corpos já deveriam ter sido retirados da arena. Restos de seres humanos devorados em espetáculo.
Os deuses já não explicavam mais nada. O fio do aço de sua espada, já não servia. Nem suas convicções de legionário, faziam maior sentido. Sentia-se vazio e desprezível.
Vegetou assim por dias a fio, entre uma operação de captura e outra. Ao final, se deu conta de que uma força que não o agredia, não o ofendia, mas não o abandonava, estava sempre presente. Invisível, não o feria, nem por isso cessava.
Aquele ano tumultuado, prosseguiu com todos os seus feitos, de uma primavera a outra. Enfim, Hadrianus desistiu de resistir.
Em uma noite, discretamente, sem sua espada e suas insígnias de centurião, seguiu rumo às catacumbas. Queria conhecer aquela gente do povo e aquilo que agora, já o atraía também.
Pôde, por simples autodefesa, expressão do ego, imaginar seu corpo pregado na cruz e exposto na Via Ápia, como um ladrão.
Em um primeiro momento, sentiu as pernas fracas, como qualquer um sentiria. Nem por isso desistiu de seu intento. Isto não papel de um legionário. Logo se recompôs e prosseguiu adiante. Nunca mais os deixaria.
A sucessão dos relatos, dos episódios tão tristemente vividos, em grande parte se perdeu na noite dos tempos, no avanço dos séculos. Mesmo assim, o que ficou fala de um tempo de glória. De esforços radicais de homens e mulheres, em que somente a fé e a coragem, são capazes de suportar.
Aqueles mesmos homens, mulheres e jovens que assumiam o risco de adentrar as catacumbas, não foram propriamente esquecidos, nem seus esforços se perderam.
Muitos ficaram pelas estradas do mundo. Outros, mais resolutos, seguiram adiante, com fé e esperança, divulgando as palavras do carpinteiro, o seu evangelho, que passou a ser identificado como Jesus, o Cristo de Deus.
Daqueles que ficaram pelos caminhos, uma parte extensa dos que se amontoavam nas catacumbas, pagando o alto preço da ousadia, encontra-se hoje no Brasil.
É comum encontrá-los envolvidos em obras sociais de inspiração cristã. O Cristo em ação. Convidados que foram a renovar os votos aceitos, já há tanto tempo. No último tempo, da última hora, do último momento. Finalmente, os trabalhadores chegaram.
Sem ter de viver com a expectativa das feras e do martírio, mas dispostos a prosseguir até o fim dos tempos. Autenticariam o nascimento da fé por entre as catacumbas, tendo a convicção de que nada, por momento algum, se deu em vão.
FIM