Por: Antonio Mata.
Algumas coisas ficaram na memória. A água invadindo a casa simples e sua mãe rezando no meio da noite. O barulho intenso da chuva e dos trovões. Parecia que ia cair tudo.
Ela e os irmãos ficaram dependurados no madeirame frágil do telhado, sentados e assustados por entre as tesouras, por toda a noite sem poder dormir. Esta foi a lembrança que ficou. O episódio lhe serviu também de marco zero. Isto para o ano de 1909. O mês já não lembrava mais.
Seu pai resistiu à ideia inicialmente, só concordando quando viu outras famílias fazerem o mesmo. Marieta podia não lembrar direito, mas sua chegada em São Paulo tinha muito a ver com aquela enchente e o desespero de sua mãe.
Tanta gente se viu deslocada, empurrada pela seca. A família de Marieta foi tangida pela enchente e nunca mais deixou São Paulo. Outra coisa que não entendeu é que mais uma vez estariam próximos do rio. Por isso, nunca soube ao certo o motivo pelo qual seu pai resistia em sair dali. Não era o mesmo?
Claro que a mudança exigiu mais trabalho e não tinham mais onde morar. Muita coisa era diferente. Fazer a moradia, desbastar e limpar a mata. Fazer um pequeno cercado ao redor da casa para alguns animais.
Logo engajaria no trabalho da lavoura, assim como seus três irmãos. Escola foi um luxo que não conheceram. Somente quando cresceu foi que surgiu alguém que se prestava a ensinar as primeiras letras. Só ela mesma, os irmãos não se interessaram.
Outras pessoas chegaram, o tempo passou e Marieta cresceu. Vários novos casais começaram a se formar. Tanto chegava gente nova, como os do lugar cresciam.
Só não quis se afastar do lugar e daquela vida simples. Ainda que sem as facilidades que atraía a todos e que só aos poucos pôde ver. Viu o carro substituir a mula e o cavalo. A alvenaria substituir o pau a pique. O calçamento só veio mais tarde.
O rádio de rabo quente, na casa de um vizinho amigo, fez muito sucesso. A despeito de quase pegar fogo duas vezes. Geladeira só apareceu bem depois. Sempre concordou com sua mãe. A geladeira era mais útil e deveria ter vindo muito antes.
Ainda que não se importasse, os cabelos brancos foram surgindo. O trabalho mais rude foi ficando para os mais jovens. Metade dos seis filhos achou por bem buscar a vida em outras plagas.
Pensando no passar dos dias, atentou para algo. Já que todos os mais antigos já haviam partido. Então, chamou por Jonas, seu filho e lhe disse:
— Eu nunca vi o mar. Esse tempo todo e nunca vi o mar. É bem verdade que nunca me importei. Também que quando me chamaram, eu mesma não quis.
— Acha que tem condições, minha mãe? Digo, por causa da idade.
— Na casa de Afonso. É melhor, prefiro lá.
— Casa de Afonso? São 157 quilômetros daqui. Tem praia bem mais perto, minha mãe. É melhor para a senhora.
— Na casa de Afonso. É melhor prefiro lá.
Ainda que contrariado e receoso, tinha profundo carinho por sua velhinha de olhos azuis. Que era uma mulher forte e dura na queda, disso também já sabia.
Ela nunca tinha feito uma viagem um pouco mais longa. Aliás, era ele quem a conduzia e nunca passou mais de uma hora de um ponto a outro. Pensou muito, mas, no fim acabou cedendo.
Enfim, chegou à casa de Afonso, onde foi muito bem recebida. Pretendiam passar umas duas semanas. Jonas, o mais novo, sempre ao seu lado.
A acompanhava até a praia. Chegavam cedo, colocava uma cadeira e um guarda-sol. Apreciava água de coco. No mais, era ver o mar, sentir a areia soprada pelo vento, enquanto se deixava levar pelo lugar. Às nove horas, Jonas a levava de volta para casa.
Em um desses curtos passeios, enquanto os demais familiares conversavam, Marieta se foi. Estava em paz e parecia dormir. Por isso, somente na hora de ir embora é que puderam perceber.
Após o sepultamento, todos em casa, iniciou-se uma discussão.
— Jonas, não deveria ter trazido dona Marieta para cá, nessa distância toda. Isso fez muito mal a ela. — Era Verônica, mulher de Afonso, responsabilizando o cunhado.
— Todos sabem que sempre zelei pela vontade dela. Se entendesse que seria muito arriscado, não teria trazido ela. Mas, estava com boa saúde e quis sair de São Paulo pela primeira vez.
— Eu sei, mas mesmo assim, foi um erro, foi estupidez. — Agora era Afonso fustigando o irmão.
Jonas não queria confusão e silenciou um instante.
— A velhinha só queria ver o mar, só isso. Negar por negar, isso eu não iria fazer.
— Mas foi uma precipitação. — Insistia Verônica, rudemente.
Cabisbaixo, Jonas pôde sentir que alguém acariciava sua cabeça. Já conhecia aquele toque suave.
Ela olhou para os reclamantes ali presentes, com aquele jeito tranquilo e carinhoso que o tempo e a paciência a haviam ensinado. Não condenou ninguém, só os achou imaturos em suas palavras. Nem se julgava prejudicada. Estava onde quis estar, fazendo o que sonhara fazer. Apreciar a vastidão do mar.
Foi então, que dirigiu um último olhar a todos. Virou-se e lentamente saiu da casa. Deixara São Paulo do Potengi dias atrás, até Macau, 154 quilômetros além, no litoral do Rio Grande do Norte. Viagem de pouco mais de duas horas. Como nunca quis, nunca esteve em Natal.
Seguiu observando o casario; o açude; crianças brincando; angicos; mandacarus; milharais e cajueiros. O carro avançou até o litoral se aproximar. Marieta completara 102 anos pouco antes de sair de São Paulo.