Foto: Mario Shwammborn por Pixabay.
Por: Antonio Mata.
Veado-mateiro frequenta a beira do rio, lá pelo pôr do sol. Foi e sempre será um risco ficar próximo do rio, porém, assim é a vida na floresta, onde todos precisam viver.
Só precisa tomar cuidado com as armadilhas que a mãe natureza, fiel à hierarquia das coisas, coloca diante dos seus olhos. Às vezes, nem tão diante assim.
Uma equipe de jovens biólogos tinha tomado conhecimento, de que naquele ponto, entre outros selecionados, poderiam coletar imagens ótimas para uma pesquisa de comportamento animal.
Estabeleceram o local para a visada e tomada de cena. Seria uma ilhota no meio do rio, entre 18 e cerca de 23 metros do local escolhido. Lá fizeram a camuflagem do seu equipamento, verificaram tudo e acionaram o dispositivo.
As imagens, em luz visível e em infravermelho, seriam gravadas e recolhidas posteriormente. Oito dias de gravações feitas, sem nada particularmente importante a se salientar.
Beira de rio tem a ver com tudo. É divisa de território para alguns, meio de fuga para outros, lugar de emboscada para outros tantos, ambiente de mamíferos aquáticos, anfíbios, répteis, aves, insetos, e é claro, de peixes. Assim todos precisam da água, entre eles, os preciosos mamíferos terrestres.
O veado-mateiro já era um animal adulto, acostumado às surpresas e adversidades da vida em meio a floresta. Por entre a folhagem, vislumbrou pequeno areal, não mais que 20 metros de fundo. Logo a seguir, a beira do rio estava lá, podia sentir o cheiro convidativo das águas limpas no ar, ainda que amareladas pela argila diluída.
Aguardou, antes de sair da mata. Olhou para os lados, abriu bem os ouvidos. Imóvel, prestava atenção em tudo. Cheirou o ar, cheirou de novo, atento aos menores odores, e a todo e qualquer som. Ouviu, cheirou, olhou, sentiu tudo de novo.
Finalmente, iniciou a caminhada lenta e atenta, até a água. Deteve-se no último metro, de cabeça baixa, só por garantia.
Iniciou os últimos três passos. Estava tudo bem.
Tal e qual cena montada, como que ensaiada, onde o resultado foi inesperado e eletrizante. No tempo em que as câmeras registram tudo e devassam os detalhes da vida natural, não haveria de se imaginar algo diferente daquilo que já se viu incontáveis vezes na Internet. Só que a vida é imprevisível, mesmo na era das mídias sociais, onipresentes em todo planeta.
Nos últimos 30 centímetros, antes de tocar na água, surgiu a imagem viva e única, da qual ninguém quer estar na frente. A bocarra branca encheu sua face, até a altura do focinho. Ali o branco pálido, no sol que se punha, era a cor da morte.
O instinto, a alma da defesa, a salvaguarda bendita oferecida pelo Criador. O último argumento regulador da vida, antes que tudo se acabe. Seria o dia da caça? Isso é que dá ser encaixado na pirâmide alimentar, na condição de comida.
Apoiado nas pernas fortes, atirou o corpo para trás, desviando para o lado. A bocarra branca cheia de dentes acompanhou o movimento sem lhe dar tempo para se virar e fugir. Teve que prosseguir afastando-se de costas, com o monte de dentes em seu encalço. Ensaiava virar-se, sem poder fazê-lo, com o jacaré que o perseguia implacavelmente. Menos de dois segundos, foi o tempo gasto para se percorrer 10, ou 12 metros de areal, de costas, naquela cena de desespero.
De certo modo, cena um tanto quanto comum, habitual, já gravada em outras circunstâncias, com outras nuances. Não foi a primeira, muito menos a última vez, que mamíferos foram surpreendidos por jacarés.
O que as imagens registraram, estava para além das gravações de mídia costumeiras. Mesmo aquelas que recebem milhões de visualizações, ganhando algum dinheiro para seu autores.
Quando a cena explode em movimento, o veado-mateiro salta para trás, o jacaré salta no ar com sua bocarra aberta. Não estavam sozinhos.
Uma sucuri das grandes, se projeta no ar ao mesmo tempo que o jacaré, no intuito de enlaçá-lo. A cobra foi completamente surpreendida pelo salto inesperado e rápido do jacaré. Ela provavelmente, se desprendeu do tronco sob as águas, com o qual provocaria o efeito elástico, trazendo o jacaré enlaçado para ser espremido e sufocado no fundo do rio.
Os dois e antigos arqui-inimigos, se viram, por uma fração de segundo, soltos no ar e fora do rio. Foi o caos na Terra. Milhões de anos foram necessários para mostrar para aqueles dois inocentes, que o melhor lugar para se estar, viver e caçar em paz, e com segurança, era na água. Instinto é para isso, não é para se discutir, é para se fixar.
No que ela se viu sem apoio, pois tudo ocorreu a uma velocidade alucinante, a sucuri perdeu o equilíbrio necessário para se enroscar no outro animal. O jacaré pôde então se virar e abocanhar a sucuri, a apenas um palmo da cabeça.
Quando sentiu o pescoço perigosamente retido, só havia uma coisa a fazer. Deslocou todo o corpo livre e, instintivamente, enrolou-se ao jacaré. Do momento em que haviam se encontrado no ar, até o momento de se retomar a iniciativa, e completarem os dois, uma ação defensiva, se haviam passado três segundos.
Permaneceram naquela posição, onde, se houvesse um árbitro presente, naturalmente mandaria os dois se soltarem e começar tudo de novo. Mas no mundo animal, não é assim, as regras são diferentes. Quem mordeu, mordeu. Quem se enroscou, enroscou.
Passam-se os outros três segundos, sem que ninguém se prontificasse a largar, pois seria a morte certa. A pressão no pescoço da sucuri era brutal, se não se fizesse algo, teria sua cabeça arrancada do corpo. Só lhe restava apertar o máximo que pudesse e sua dor suportasse.
O jacaré estava a ponto de seus olhos saltarem para fora das órbitas, pela enorme pressão que tinha de suportar. Não demoraria muito, e suas costelas começariam a partir, determinando o fim da peleja. Sem outra possibilidade, apertava as mandíbulas naquele maldito pescoço o mais que podia.
Quando aquela mistura de ataque frustrado e ação suicida parecia não ter mais saída, de forma quase inaudível, foi possível identificar um apelo à sensatez de ambos.
— Jacaré, vamos combinar uma coisa, em nome do que há de mais sagrado e natural. Eu afrouxo um pouco o meu aperto, e você alivia um pouco essa bocarra no meu pescoço. Vou contar até três, e a gente larga junto.
— Um..., dois..., e..., três.
Ao invés de um ahh!, ouviu-se um grhh! Era o som de um pescoço querendo partir, e um jogo de costelas querendo estourar. Vai fazer acordo com sucuri, para você ver o que acontece. A falsidade rastejante em pessoa.
Aquela desgraça só sabia se arrastar e apertar. O jacaré tinha certeza de que até um tamanduá, era muito mais inteligente e sabia fazer mais coisas. A prova disso é que nunca tinha comido um tamanduá na beira do rio.
A essa altura, mais três segundos já haviam se passado, e aquela pressão era abissal. Tudo bem, nenhum dos dois sabia o que era abissal, mas é só para salientar que a pressão era muito forte.
Já mais morto do que vivo, o jacaré começou a repassar cenas de fatos passados, típico de bicho quando está à beira da morte. Os sempre bem-vindos banhos de rio, ou de lago, as infinitas tocaias, executadas com esmero e precisão. Isso é que é vida. Só que às vezes não funcionava, como naquela ocasião.
Deixou o orgulho de lado e interpelou a sucuri com uma voz entre dentes, que por pouco nem saía.
— Está bem então. Sei que você tem amor a vida e tenho certeza de que muitos veados virão até você. Assim você vai engordar, crescer e ser feliz. Aí então, você poderá contar tudo isso aos seus filhinhos. Aquele monte de cobrinhas que vocês insistem em ficar espalhando no caminho da gente. Prosseguiu o jacaré.
— Proponho uma nova contagem, e cada um larga o outro. Eu salto para a direita, e você salta para a esquerda. Vou contar até três, e a gente pula.
— Um..., dois..., e..., três.
Ouviu-se um grrhhh! É lamentável, pesaroso e mortal. No reino animal, ninguém aprendeu a confiar em ninguém. É só a política dos dentes, das mordidas, dos sufocamentos e dos apertos. Lugarzinho perigoso, pensa.
Quando o firmamento ofereceu suas estrelas aos olhos daqueles dois, pois já não havia mais nada a se fazer, não uns 50 segundos depois, a sucuri, praticamente decepada, finalmente sucumbiu, soltando seu corpo pesado que, enroscado, sufocava o jacaré. Com as costelas partidas, exausto e quase sem ar, o jacaré reúne suas últimas forças e se arrasta lentamente na direção do rio.
Dois caçadores, que discretamente observavam aquele mesmo embate, aguardando seu resultado mortal, estavam interessados na pele da sucuri. Acercaram-se do animal, que foi então recolhido, e partiram.
À meia distância do local, uma onça que também fazia tocaia naquele mesmo lugar, aguardou os homens se afastarem conduzindo a sucuri, e então desceu até o areal, aproximou-se do jacaré, semimorto e que agonizava na beira do rio. Abocanhou o animal pelas costas e o arrastou para sua árvore, onde melhor poderia devorá-lo.
Trinta dias depois, os biólogos retornaram, e em seguida recolheram os equipamentos de gravação, na esperança de ótimas imagens obtidas. O que obtiveram foi surreal. Conforme se observou depois, o momento do salto conjunto do jacaré e da sucuri, ficou muito bem registrado. Assim como o salto relâmpago, evasivo e espetacular do veado-campeiro, e também a presença dos caçadores e da onça.
Depois de várias discussões, resolveram divulgar aquelas cenas nas redes sociais. Foi um espetáculo, com mais de dez milhões de visualizações. Todos ficaram impressionados com aquelas cenas de luta pela vida.
Pena que o equipamento não possuísse dispositivo para registro de áudio. Aqueles apelos sinistros, feitos, ora pela sucuri, ora pelo jacaré, poderiam ter grande significado para o progresso da ciência. Não há quem diga que os homens, em certas situações, se comportam como verdadeiros animais? Pois é, está aí, o áudio seria a prova.
O que aconteceu com o veado-mateiro, afinal?
Assim que todo mundo saiu dali, desceu o pequeno areal mais uma vez, encheu-se de água, e retornou à proteção da floresta, envolto nas sombras da noite, que já se fazia.