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histórias, crônicas e contos

Os cavaleiros

                                                                 

                                                                                                                                        Imagem: Pixabay

Por: Antonio Mata.

Daquilo que se foi, das brumas da história, pelas sombras de um tempo que não existe mais. Escreveram a ferro e fogo, deixando pelos caminhos, dragões; espadas e brasões. 

Vêm das cores, símbolos e figuras da heráldica. Emergem dos ecos do passado, a ordem dos cavaleiros medievais. A coragem, a força e a cruz. Alto-relevo de uma Europa fragmentada, de muitas línguas, territórios e povos.

Assumiriam a salvaguarda, amparados pela Igreja e pela hierarquia da cavalaria, para que um sentido de lei e ordem pudessem se estabelecer entre povos tão diversos e tão isolados. Fossem em feudos, fossem em suas mentes mais que fechadas.

Ora impondo a lei, no exercício do Código da Cavalaria, ora pisando sobre ele mesmo. A cavalaria tanto trazia a ordem quanto o terror. De fato, estava submetida ao feudo e a seus interesses.

Do alto do cavalo de batalha, adornado em escudo, blusa e o manto de seu animal, com as cores do seu suserano, simbolizava o poder e a autoridade. Seus escudeiros e aprendizes, a rara porta de entrada para os plebeus que almejassem a difícil oportunidade de estar próximo da nobreza local.

Também comerciantes, os poucos viajantes ou simples camponeses, ofereciam a sua admiração e respeito, mas também o seu temor a estes altivos combatentes.

Suas histórias por entre cavalgadas, justas e batalhas, se misturam com a história da própria Europa medieval. Ainda conduzindo, ao futuro, o processo de formação de suas múltiplas identidades nacionais.

A cavalaria fez o braço armado, a amálgama que assentou os anseios, vicissitudes e combateu os temores, reais, imaginários ou fantásticos do seu tempo.

 

Crécy, 1346 – A derrota.

Reunidos ao sul de Calais, não duvidavam de sua vitória, contra um inimigo menor e reunido no alto de uma colina. A história é caprichosa, e nem sempre se dá como os soberbos cavaleiros franceses certamente acreditavam e gostariam.

Mês de julho, onde o sol quente de verão assistiu o humilhante desbaratamento da cavalaria francesa, diante dos arqueiros ingleses. As sucessivas ondas de flechas inglesas enchiam o céu.

Anularam a linha cerrada de besteiros mercenários genoveses, que deveriam vencê-los e abrir caminho para a cavalaria dar o golpe mortal. Um daqueles dias em que tudo o que tinha para dar errado, apareceu e deu errado.

A chuva de verão prestou seu desfavor à França, caindo durante a noite, antes da batalha. O terreno úmido e pesado, dificultava o deslocamento e as bestas molhadas, perderam eficiência.

Os arqueiros ingleses vinham de terras úmidas e nevoentas. Sabiam lidar com a situação e trataram de guardar e proteger seus arcos ao primeiro sinal de chuva.

A cavalaria, alarmada com o bestial fracasso genovês, decidiu atacar. Tomados de ódio pelos besteiros, matariam os mercenários ineficientes, por conta daquele monte de dinheiro jogado fora, ali mesmo.

Ante o duplo papel de combate, isto desarticulou a cavalaria que, somados os demais empecilhos, assistiu perder seu poder de ataque sucessivamente. Insistiu-se nas cargas de cavalaria sem nenhum sucesso. As posições inglesas, receberam apenas pequenas escaramuças, sem romper sua linha defensiva.

Perdendo suas vidas, sem nada conquistar. Sua força, pujança e orgulho se perderam em Crécy, assim como boa parte da nobreza francesa. Entre eles onze príncipes. A infantaria partiu em fuga desarticulando de vez o exército.

Filipe VI de França, o rei, o primeiro cavaleiro, viu toda a ineficiência de seu exército. Junto a seus príncipes e duques remanescentes, viram todo o norte da França completamente aberto a invasão.

Já a humilhada cavalaria francesa, ainda catava razões que explicassem minimamente o seu fracasso. Teria de rever o seu papel, o mais rápido possível, sob pena de assistir a subjugação do reino de França.

Logo ao sul estava Abbeville, a 16 km. Logo após, Amiens, a 55 km. Tudo o que havia entre os ingleses e Abbeville, a meio caminho da vila, era Le Petit chatêau dans les bois.

O castelo abrigava uma pequena tropa de infantaria de segunda linha, além de receber um punhado de cavaleiros cansados e desgarrados, durante a derrota e fuga de Crécy.

A decisão era por demais evidente e simples. Abandonar Le Petit chatêau, já, naquele momento, ou lutar por algum tempo e depois morrer, pois não haveria reforços.

Jean Paul, um velho barão empobrecido, sem nenhum renome, desconhecido no lugar, porém decidido em suas atitudes, assumiu o comando do castelo. De sua guarnição e dos cavaleiros franceses remanescentes. Antoine Van Jall, comandante da guarnição local, atônito com a recente derrota e suas poucas possibilidades, não ofereceu nenhuma oposição.

Começava assim, uma história, das incontáveis histórias que o tempo fez e depois levou. O que se fez, como se fez, de tudo o que aconteceu, talvez seja este o seu único relato.

 

Le Petit chatêau.

Deveria ter o dobro do tamanho, porém, com a morte de seu idealizador, Janot, Conde des Oliveraies, tudo foi abandonado. A obra seria retomada por seu filho, que o concluiu pela metade do projeto original.

Com a aproximação das tropas inglesas, o castelo foi abandonado, tendo recebido posteriormente, 44 soldados. O rei Felipe VI e sua nobreza acreditavam na vitória, daí deixarem o pequeno efetivo em Le Petit, ao invés de estar na batalha.

O castelo tinha não mais que 40 metros de frente por 50 metros de fundo. As acomodações eram adequadas ao padrão de conforto da época, ou seja, insalubre, pouco higiênico, mal iluminado e frio.

Mesmo assim possuía acomodações para a guarnição defensiva, agora com 52 homens. Duas torres de vigia ofereciam uma boa vista do campo, com uma floresta a uns 300 metros de distância a leste do castelo.

— Van Jall, o que temos de suprimentos? O castelo tem água? Dispõe de óleo, arcos e flechas? Dispõe de algum feno para os cavalos? Todos os seus homens sabem manejar o arco e a besta?

— O castelo dispõe de um poço com água limpa senhor barão. Temos 3 sacos de grãos, além de algum charque. Somente um barril de óleo. Encontramos arcos danificados, mas também arcos em condições de uso e flechas, além de algumas bestas. Temos também, uns 20 arqueiros razoavelmente bons, os demais terão de aprender rápido. Temos ainda um pouco de feno.

— Por quanto tempo acredita que teremos provisões?

— Pelo que pude ver, uns oito dias. A meia ração, o dobro disso.

— Então, não há mais tempo para fugir agora. Os cavalos e os homens estão exaustos. Por outro lado, se ficarmos para lutar, morreremos em poucos dias. Uns dez ou quinze dias. — O barão pensava em suas chances de contornar a situação.

— É o tempo para fazerem uma catapulta e destruírem a muralha. Também podem fazer uma torre de sítio. Podem cavar túneis nesse mesmo tempo. Podem fazer um inferno de coisas, antes de nos matarem.

— A floresta a uns 300 metros é uma vantagem para quem defende. Seus arcos não alcançam tanto e não há nada que possam jogar em nós. Pelo menos por dez dias. — Georges, um dos cavaleiros expunha sua visão das coisas. Tendo prosseguido.

— De outra forma, para quem tenta fugir daqui, 300 metros em campo aberto é muita coisa. Esta infantaria já está condenada aqui dentro.

— O comandante Van Jall irá cuidar deles. Mas também não acredito que tenham chance de fugir daqui. Nós sim, vamos tentar escapar a cavalo.

— Sim, Jean Paul. No meio da noite, talvez tenhamos uma boa chance. Até a floresta e depois é cada um por si. Em campo aberto seremos pegos.

Já Antoine queria reunir as coisas, “os cavalos e os homens estão cansados, mas de tanto fugir”, pensava. Ainda que tivesse suas reservas, quanto ao papelão feito por aqueles homens em Crécy, como um plebeu muito realista, achou melhor esquecer.

Antoine era um comandante saído da tropa de infantaria, a serviço do duque de Fremont. A vida de soldado era tudo o que conhecia e combater era tudo o que sabia fazer. Porém, isto não fazia dele um nobre.

Tratou de contribuir para aquela situação difícil que teriam pela frente. Acrescentou um fato novo àquilo que já estava se tornando um plano de fuga.

— Na direção da floresta existe um túnel. Não sei onde termina, pois está obstruído. Com alguns soldados trabalhando, talvez possamos recuperar a parte obstruída. Com certeza vai encurtar o caminho para a floresta.

— É tempo de lua minguante, logo vai ficar sem lua no céu. Sem contar que podemos ter uma capa de nuvens. — Jean Paul estudava as chances de sucesso da empreitada. Tudo teria de acontecer, praticamente ao final de uma semana.

— Casando tudo em uma semana, damos combate, atrasamos o avanço inglês e depois fugimos daqui em meio a escuridão. Torçam para chover de novo hoje, amanhã ou depois. Qualquer coisa que sirva para dificultarem de fazer fogo ou construir máquinas de sítio. — Concluía o barão.

— Além do que, escapar debaixo de chuva e à noite, não é por si só uma má ideia. Podem não estar contando com isso. E ainda tem o túnel de Antoine, se ficar pronto. Pode se mostrar mais útil que os cavalos. — Completou Georges.

— Cuide logo do túnel Antoine. Oriente os homens para descansarem em turnos. O castelo é pequeno. Com 16 homens acordados durante a noite, podemos fazer uma boa guarda. Não podemos deixar que cruzem os muros. — Jean Paul procurava pensar todos os detalhes.

— Mandem todos sujarem suas roupas com terra ou se cobrirem com panos e trapos escuros. Qualquer coisa que não facilite a vida de arqueiros isolados. — Mais recomendações e ordens do velho Jean Paul.

— Também arranjem paus e palha. Façam cabeças e coloquem capacetes e chapéus. Criem qualquer coisa que se pareça com mais guardas na amurada. Estes sim precisam aparecer. Deixem que gastem suas flechas neles. De tempos em tempos, os bonecos precisam mudar de posição na amurada.

A movimentação no castelo, logo se inicia. Os preparativos entram em execução. A fase mais extenuante está prestes a começar. A fase do gato e rato. Com tempo limitado, se der tudo certo. Um sítio pode levar mais de um ano, mas este, ao que tudo indicava, terá de ser muito curto.

A menos que os ingleses quisessem deixar tropas do inimigo nas suas costas. Queriam tempo, só o suficiente para retardar alguns contingentes de tropa do invasor e depois realizar a fuga.

 

O sítio.

Nesse ínterim, os ingleses finalmente alcançaram o castelo. Sem pressa, pois entendiam que estavam presos no lugar, montaram o acampamento. No dia seguinte iniciariam as operações de sítio.

Elias Mortmer, barão de Langslay, capitão-mor da infantaria, foi destacado para oferecer o cerco ao castelo, enquanto a tropa principal avançava pela França adentro.

Para isto reunira 420 soldados, entre eles carpinteiros e ferreiros, para cuidar dos equipamentos de sítio a serem feitos no local. Ainda assim, Mortmer tinha outras ideias.

— O exército está avançando. O inimigo não tem condições de reagir. Porque razão deveríamos destruir o castelo. Não devem possuir muitos suprimentos. Vamos criar formas de obter este castelo sem lhe retirar um único bloco de pedra. — O capitão era bem objetivo em seus propósitos e prosseguiu, instruindo seus subordinados.

— Pelo sim, pelo não, preparem uma catapulta. Ainda não será para derrubar os muros. Quando estiver pronta, desenterrem corpos de franceses e de cavalos. Atirem por cima do muro, até amontoar no pátio interno, na entrada do castelo. Eles vão gostar.

— Também organizem surtidas noturnas, escalando os muros. Conduzindo odres cheios, não com água, mas com alcatrão. Toquem fogo e joguem para dentro. Acendam oitenta fogueiras, façam barulho durante a noite. Vamos deixá-los acordados. Depois mandamos os homens com o alcatrão.

— Não esqueçam as flechas com garrafas de alcatrão. Preparem trezentas delas. Eles também vão gostar. Entenderam tudo o que eu disse?

— Sim, meu capitão. Pretende incendiar o castelo?

— Vamos deixar as pedras onde estão, a madeira queimada poderemos repor. Deixemos o castelo em condições de uso. Faltou mais alguma coisa William?

— Certamente que não, meu capitão.

— Então preparem tudo. Eles vão gostar.

— Outra coisa, amanhã cedo, vá até lá William e ofereça a chance de rendição. Será a primeira e última vez. Deixe isso bem claro.

— Sim capitão, amanhã bem cedo.

Os preparativos de sítio se iniciaram. Já pela manhã, William busca contato com os defensores e oferece a possibilidade de rendição. Recebe como retorno da proposta, um monte de impropérios e zombarias.

Durante a noite põe-se em prática as primeiras ações. Próximo de escurecer, arqueiros isolados buscavam as cabeças dos defensores do castelo, eventualmente derrubando os bonecos de Jean Paul e denunciando a presença de atacantes.

Entrava em ação os besteiros, arremessando setas de pontas de ferro sobre o invasor, tão logo fosse identificado. O que permitia o arremesso simultâneo em um único ponto. A quarenta metros as bestas podiam perfurar, até mesmo as armaduras utilizadas pelos cavaleiros.

Já encobertos pela madrugada, um pequeno grupo de homens, aproveitando-se da escuridão, buscam escalar os muros do castelo. O lançamento de ganchos é providenciado para subir o muro. A tropa alerta, impede o ataque logo de início.

O golpe vertical, com a lâmina de alabarda arranca o braço de um dos invasores. A azagaia, arremessada, encontra novo invasor, oferecendo a queda de nove metros de altura. Flechas incandescentes iluminam o campo próximo ao muro, mostrando o grupo furtivo em campo aberto.

Os demais arqueiros e besteiros, com flechas certeiras agora perseguiam os ingleses em fuga, alvejando-os pelas costas. Ainda não seria dessa vez que o castelo seria invadido.

A seguir sobrevém o lançamento das garrafas de alcatrão pelos arqueiros. De pouco efeito letal como arma de sítio, apenas mantinha os defensores acordados e ocupados. Teriam de aguardar a construção da catapulta e da torre que, juntos com escadas, seriam mais efetivos, podendo tomar o castelo.

Os dias se seguiam em pequenos ataques e escaramuças, enquanto os equipamentos de sítio ficavam prontos. Os bosques próximos ofereceriam a madeira necessária.

Da Inglaterra vieram as peças prontas e ferro em lingotes, para a instalação de fornos e produção de peças e ferramentas no local. Mortmer sabia que tudo era apenas uma questão de tempo. O velho barão, retido no castelo também.

 

Os defensores.

Ante as ações do primeiro dia, em meio a madrugada, o primeiro revés. E não foi pela infantaria. Dois cavaleiros, por decisão própria, resolvem abrir os portões e partem em desabalada correria, esporeando seus cavalos.

Entretanto, chamam a atenção dos invasores que mandam um esquadrão de cavalaria em seu encalço. Na manhã seguinte, dois corpos lacerados e pendurados em estacas davam ciência do resultado das fugas.

Na noite seguinte, de dentro dos portões, olhando por sobre os muros, os defensores contavam as fogueiras para estimar o tamanho da força do inimigo. A estimativa chegava a mil homens.

O número irreal de fogueiras, aliado a rapidez com que capturaram os dois cavaleiros fugitivos, validavam a estimativa. O ardil de Mortmer estava funcionando.

Três dias de trabalho não foram suficientes para desobstruir o túnel de Antoine. O mesmo havia desmoronado, recebendo escoras com madeira retirada de outras partes do castelo.

Daí a necessidade de se impedir os incêndios e a queima da pouca madeira resistente disponível. Os trabalhos prosseguiam, o mais rápido quanto possível.

Soldados providenciavam novas pontas para flechas e bestas, a partir de moldes disponíveis no próprio castelo. O metal era obtido derretendo utensílios, correntes e das poucas peças de ferro que se pudessem encontrar.

Outra má notícia foi trazida por um dos cavaleiros que, enviado em ação solitária, esgueirando-se para fora do castelo, encontrou os preparativos de construção da torre e da catapulta.

Rastejando para retornar ao Petit Chatêau, foi percebido pelo inimigo a menos de cem metros do portão. Iniciou-se uma correria rumo a segurança relativa do castelo, enquanto arqueiros se preparavam para alvejá-lo.

A informação obtida por Flaubert, um jovem e nobre cavaleiro, de pouca experiência, mas valente o suficiente para aquela surtida, era relevante demais para os defensores.

Flaubert acabou alvejado a uns dez metros da entrada. Foi puxado para dentro e, já moribundo, comunicou a Jean Paul o que vira. A torre e a catapulta estavam quase prontas, além de diversas escadas.

Mais um dia ou dois e os invasores poderiam se pôr a caminho. Em cerca de uma semana ou menos, concluiriam as construções. Flaubert ofereceu seu informe, falecendo em seguida.

O barão olhou para Antoine e os demais cavaleiros.

— Vão fazer a invasão antes do que esperávamos. Antoine continue trabalhando no túnel. Vamos defender o Petit Chatêau. Se tudo se perder, os remanescentes devem buscar a fuga pelo túnel. Tão logo iniciem a invasão, o castelo deverá cair em poucas horas. É tudo o que podemos fazer.

Em sua mente, Jean Paul questionava se teria agido certo ao buscar abrigo naquele castelo. Caminhando pelas defesas, pensava “do fogo para a frigideira”, foi só o que consegui aqui.

Agora não se podia reclamar. Antoine e seus homens acabariam mortos de qualquer maneira, e nós temos ajudado muito pouco neste castelo. Servir o rei, servir a França, defender o feudo. A honra da cavalaria. Presos aqui como ratos em uma ratoeira de pedra. Tudo parece ter se perdido.”

Antoine, observando o acampamento inimigo lá embaixo, fazia suas conjecturas. “Vamos morrer aqui, mais cedo do que se esperava. Três cavaleiros já se foram.

Estão aqui o barão e Georges, além de outros três. Valeu pela troca de ideias e por apressar a recuperação do túnel, coisa que nem estava disposto a fazer. Achava um trabalho inútil.”

É interrompido por um soldado todo sujo de terra e suarento.

— Capitão o túnel está livre.

— Ótima notícia, vamos ver até onde ele chega.

Antoine, cruzou o túnel conduzindo uma corda de 20 metros. Então somou os trechos medidos 16 vezes ao longo da abertura. Dos males o menor, descobriu que estavam debaixo da floresta.

 

A invasão.

O sol estava perto de se pôr, já no quinto dia, quando o capitão-mor Elias Mortmer recebeu a notícia da conclusão das esperadas máquinas de assalto.

— Melhor notícia do que esta, só a tomada do castelo. Reúnam os homens, ponham a torre em movimento. Posicionem a catapulta de frente para o portão. Atirem alguns corpos, enquanto ainda está claro, para que vejam. Apanhem as escadas.

Puxando a espada, anunciou a seus homens.

— Vamos invadir a porcaria do castelo!

A movimentação e o barulho dos gritos de hurra do lado de fora, anunciavam aos defensores que a espera chegara ao fim. Seria um ataque noturno. Os ingleses não queriam mais esperar.

Tudo posicionado, começa o arremesso de corpos de soldados franceses, inclusive os dois cavaleiros que tentaram fugir, além de cavalos e o que de mais houvesse. O espetáculo, por si só, já era deprimente, mas contava ainda com a troça, xingamentos e a gritaria dos atacantes.

A torre é posta em movimento e cruza o campo. Avança lentamente até alcançar a muralha. Em seguida, as escadas são posicionadas. A infantaria, descansada e de barriga cheia, acompanha de perto protegida por manteletes.

A ideia era oferecer uma operação simultânea, quando então a catapulta passaria a lançar montes de pedras pequenas sobre os defensores. Mortmer havia desistido de encher o pátio do castelo com corpos, mas sustenta a ordem de não destruir o castelo. Quer invadir logo.

Da muralha começaram a arremessar tudo o que possam ter em mãos. Setas de bestas, flechas, azagaias, pedras e óleo fervente. Enquanto que os alabardeiros empurram as escadas para baixo.

Dá-se então, o inevitável, frente a desproporção de forças.

O primeiro ponto da defesa é aberto com a morte de seus defensores. Subindo pela escada, ingleses exploram a brecha e adentram o corredor da muralha.

Na outra extremidade a torre supera as tentativas de incendiá-la e derrama seus homens por sobre as defesas, alargando a brecha. Em um terceiro ponto, novos invasores sobem pelas escadas. O fim se aproxima.

Soldados ingleses à altura da escadaria de acesso às defesas e almejam descer e abrir os portões.

Jean Paul, Georges e Antoine entram na refrega, quase que de imediato. As tropas de defesa são eliminadas um a um.

— Georges, Georges, Antoine! A defesa vai cair! Corram daqui, vão para o túnel, saiam daqui, depressa!

O velho barão apareceu do alto de seu cavalo e pressente a morte. A honra de cavaleiro, o único código de lealdade que conheceu, o impele a um último e intenso gesto de nobreza. Reúne suas últimas forças e investe sobre o invasor, que já chegava no pátio interno do castelo.

— Pelo rei, pela França, por Calais! Atacar, atacar!!

Georges e Antoine assistem a carga solitária de Jean Paul.

— Vem Antoine, vamos embora, não há mais nada a fazer aqui!

 

A fuga.

Georges, Antoine, além de dois soldados descem até o túnel, cerrando a porta de acesso. Percorrem os trezentos metros até a floresta e correm protegidos pela noite. Ao longe, os ingleses já haviam completado a tomada o castelo.

Soldados percebem a fuga, localizam e arrebentam a entrada do túnel. Mandam homens para a floresta. Era por demais evidente o destino. Começa a caçada dos fugitivos.

Por volta da meia noite uma das patrulhas encontra um dos soldados em fuga. O homem é morto ali mesmo. O segundo é morto pouco depois. Georges entra em combate contra dois ingleses, sendo ferido no flanco direito. Abate os dois soldados e foge a pé do local.

Já próximo do amanhecer, Georges cruzava o campo nas proximidades de Abbeville. O flanco direito sangra na medida em que avança. A cada solavanco a dor aumenta, até não ceder mais. Georges não se detém.

É preciso se afastar e escapar. Reunir-se aos demais nobres e retomar a iniciativa. Deter o invasor a qualquer custo. É o reino de França que estava sob risco.

O ferimento, como que adormeceu. Finalmente, próximo a um arvoredo, se desequilibra. Suas pernas fraquejam. Não o seguram mais. Cai pesadamente ao chão.

Estatelado no chão, vem-lhe à mente as imagens de outros tempos. Por entre caçadas, amores, justas e intrigas. Tudo ficou para trás. O flanco está dilacerado.

O código da cavalaria, a sua lei, já há muito se perdeu. Sabia não ter sido justo como deveria ter sido, muito menos honrado e fiel como em seu juramento.

Põe-se de pé e procura acelerar a passada. Afastar-se dali e escapar. Reunir-se aos demais. Sua mente só vislumbra isto, enquanto caminha na escuridão, tropegamente.

Em certo ponto, parecia ter visto alguém. A cabeça baixa pela dor, o atrapalha de enxergar. Prossegue, ensanguentado. Torna a ver pessoas ali. “Se forem inimigos, é o fim”, pensou.

Procura desembainhar sua espada, alguém o detém. Olha com mais cuidado. Então percebe que estão ali, companheiros de outros tempos. “Enlouqueci de vez”, pensa.

Alguém o segura pelo pulso e depois pelo braço.

— Somos nós Georges, estamos aqui.

— Ah, meu Deus. Todos se salvaram! Mas, vocês estão horríveis!

— Nem tanto, nem tão pouco Georges.

— Não entendi nada. Pensei que tivessem morrido.

— Deixa pra lá. Se ajeite e procure não cair à toa, aqui é sempre muito escuro. Vou logo lhe adiantando que esse ferimento não vai fechar tão cedo. Também não vai parar de doer. Igual aquele dali sem um pedaço da cabeça. Aquilo dói um bocado.

— Meu Deus! Que espécie de lugar é esse?

— Não sei. Só sei que não estamos em Crécy, Abbeville ou mesmo na França. Aqui o sol não nasce. Nem sei se o tempo passa.

Georges prestou mais atenção naquela gente. Maltrapilhos, estropiados, um sem braço, outro de cabeça cortada, o outro segurando as entranhas. Aquilo mais parecia uma espécie de espetáculo dos horrores.

 

O tempo.

— Eduardo, Eduardo, está me ouvindo?

— Hum, o quê?

— Desistiu de entrar na garagem? Está aí agarrado nesse volante como se tivesse sido eletrocutado. Já dá pra guardar o carro?

— Ah, sim.

Entrou na garagem do edifício, desligou o motor e continuou lá, sentado e pensativo.

— Vai ficar aí parado, você está bem?

— Sim, eu estou bem.

— Tá, eu vou entrar. Qualquer coisa é só gritar. Vou deixar o porteiro avisado que você surtou de vez.

— Tá bom. Daqui a pouco eu subo.

Cinco segundos, dez segundos, talvez tenham sido quinze. Aquela sequência de cenas esquisitas apareceu de novo. Às vezes em ordem, se é que dá para chamar assim, às vezes, só bagunça. Só cabeça de velho doido.

Eduardo prosseguia, procurando colocar a cabeça de doido em ordem. “Estava em um castelo. Chegou uns caras a cavalo e de armadura, não sei para quê. Um deles apareceu sozinho gritando, em cima do seu cavalo, segurando uma espada.” Continuou.

“Depois, saímos correndo para uma espécie de túnel. Corríamos no escuro em uma floresta. De repente não havia mais floresta, só a escuridão. Meu Deus do céu. Vai entender! Valéria deve estar com a razão. Agora só um psiquiatra.”

Qual autômatos, prosseguiram em suas vidas de aventura e risco desmedido. Resolutos, em pleno galope e pela força da espada, estabeleceram as fronteiras territoriais de uma Europa conturbada, de tantas culturas e povos.

Foram postos assim, como que confinados, para o exercício da compreensão e cooperação mútuas. Este era o nome do exercício e da chave do sucesso. Aquele que abriria todas as portas rumo à verdadeira integração, sob a égide do Cristo.

Prevaleceu o espírito belicoso, o exercício da guerra, da destruição, da desunião e do rancor. Fosse vencedor, fosse vencido, sempre o mesmo princípio.

A mensagem não foi compreendida e assim prosseguiram, existência após existência, batalha após batalha. Dos anos medievos, até as guerras napoleônicas. Até serem tomados de cansaço, físico e psíquico, pelos campos enxovalhados de corpos, com vitória ou não.

Enfermiços em suas mentes bitoladas e opacas, receberam especial atenção de São Luís, protetor espiritual da França.

Reconfortados, foram conduzidos às levas de espíritos que estavam sendo repassados para as terras brasileiras. Novos ares e novas esperanças de refazimento e remissão.

O compromisso de não mentir e não combater em nome de Deus ou do Cristo.  Coisa difícil de se fazer e ter de esquecer. Nem os tempos napoleônicos

Hoje podem ser vistos caminhando calmamente pela praia, percorrendo trilhas nas serras e nos campos, ou simplesmente a caminho do trabalho nas grandes cidades.

Em corpos de mestiços, muitos nem de longe lembrando um europeu. Entretanto, em outros tempos, estes mesmos espíritos resolutos, na cavalaria à toda brida, orgulhosos de sua terra, de sabre em riste, foram os senhores da Europa.

 

                                               FIM

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