Menu

terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

Os invisíveis

Por: Antonio Mata

A viandante, de muitas dúvidas, pensativa e refratária. Descia a rua, dessa vez sem pressa, já voltava para casa. Poucos metros mais, antes da noite.

No caminho, a sede, a fome, o frio, acompanhavam o cansaço. Subia a rua. Foi só mais um dia. Nada diferente de outros dias. Refratários são todos os que passam, pensativos talvez.

Levantou a cabeça lentamente, como quem emerge por debaixo da calçada. Um tipo de fantasma pequeno que percorre as ruas de modo invisível.

Ela olhou para aquela bicha. A barriga grande não deixava enganar ninguém. Isso é o que dá andar por aí de cabeça baixa. Ia passar por cima, pisar na bicha moribunda de olhos remelentos e ainda ter de arrastar a pecha de cega insensível.

Ainda bem que deu tempo de contornar. Quase que um pequeno salto. Marcha retomada, era só entrar em casa. Foi quando a realidade se meteu e escorou-se na consciência.

Se meteu no que não era da sua conta. No que ninguém chamou nem lhe disse nada. Ela é que chegou e segurou no pescoço. Não teve jeito, incontinenti, olhou para trás.

Continuava parada no mesmo lugar. Vista dali, na pouca luz do início de noite, de luminária queimada, parecia ter só barriga. Deu as costas, avançou e entrou em casa fechando a porta.

Cinco minutos, mais um, mais dois, quase dez. A metida de novo volta sem ninguém chamar. Então, saiu de novo. Ela continuava lá, agora petrificada no frio.

— Essa bicha de rua, toda suja, ainda vai querer morrer perto da minha porta — Dizia para si mesma.

— Será que não acha outro lugar, longe daqui? — Só uma especulação e ela sabia disso. Petrificou foi ali.

Voltou para dentro de casa. Fez menção de fechar a porta. Contudo, se deteve. Queria e não queria. Se justificava e depois criticava, desfazia. A mão na maçaneta esperava para ver quem iria vencer. O ego ou a eternidade.

A porta se abriu e então, tornou a sair. Foi até a cadelinha suja e remelenta que era só barriga. Se acercou do animal e a trouxe consigo para casa.

Alimentou o animal, ofereceu os primeiros cuidados e lhe arranjou um lugar para se acomodar. No dia seguinte conseguiria apoio mais adequado e artigos de asseio e alimentação animal.

Os dias seguiram seu curso. A cadelinha, assistida, alimentada e tratada, pôde receber seus filhotes em segurança. Ao final, limpa e bem cuidada, mostrou-se um animal bonito. Assim, não seria difícil conseguir cuidadores para os filhotes. Bem cuidado, até vira-lata fica bonito.

Tornou-se Susy e passou a aguardar sua protetora nos finais de tarde, sentada em frente de casa. Já pressentia a aproximação do ônibus, o que aumentava a sua expectativa.

Lá apontava ela, entre muitas dúvidas, pensativa e refratária. Descia a rua, dessa vez sem pressa, já voltava para casa. Poucos metros mais, antes da noite.

No caminho, a sede, a fome, o frio, acompanhavam o cansaço. Foi só mais um dia. Nada diferente de outros dias para a criança que subia a rua. Em desalento, levantou a cabeça devagar.

Pôde ver o garoto de relance, a tempo de contorná-lo, sem ter que passar por cima dele. Isso é o que dá andar por aí de cabeça baixa. O menino, de olhar vazio, as pernas finas de cabelos meio em pé. Contornou o garoto e seguiu seu caminho.

Em casa, Suzy, eufórica, já a aguardava com a alegria habitual. Havia se acostumado com a presença e a alegria da cadelinha. Entrou e fechou a porta.

Três minutos, mais um, mais dois. Agarrada pelo pescoço, a porta se abriu mais uma vez. Saiu rápido e correu enquanto subia a rua. Já após a esquina ele apareceu, sujo e com frio. A eternidade estava logo ali.

Go Back

Comment