Por: Antonio Mata
Sentado sob uma árvore, não dizia palavra. Apenas olhava para a cova rasa que recebeu o corpo daquele estranho, que passou a encarar como um amigo.
Muito embora pouco entendesse quanto às razões que o conduziram até ali, onde agora só havia uma sepultura. Jamais saberia por quê.
O séc. XVIII no seu transcurso, rumo ao séc. XIX, marca o nascimento de um profundo interesse no sentido de se conhecer mais o mundo em que se vivia. Era o despertar das ciências da natureza, e com ele um novo tipo de explorador.
Além da secular busca por fortuna em novas terras, brotava o interesse por mais e melhores conhecimentos que aguçavam as mentes no mundo europeu.
O mundo estava se tornando pequeno, e passou a atrair viajantes interessados em novos conhecimentos, cujo resultado era a expansão da ciência, mas também do comércio, e do poder. Para muitos poderia significar fama, dinheiro, e penetração nos círculos intelectuais da Europa.
Exploradores das terras do novo mundo, os novos eleitos. Quando retornavam de suas longas, demoradas, e perigosas viagens, eram cercados pelos demais, ávidos por saber de suas experiências.
As moças e rapazes, simplesmente os adoravam. Verdadeiros cosmonautas do passado.
Foi isso que tornou homens como James Cook, um verdadeiro herói, por sua contribuição a ampliação do conhecimento do mundo.
Outros homens, adentraram os grandes sertões americanos, no intuito de identificar plantas, animais, clima, aspectos da geologia e da geografia do lugar. Foi assim que a Europa conheceu e admirou Alexander von Humboldt, e sua exploração na América Latina.
A juventude acompanhava pelos jornais, sob a forma de folhetins, as grandes descobertas do novo mundo. Agora o exótico, surgia sob a forma de desenhos de animais com formas estranhas, como a preguiça, a anta, ou o tamanduá.
Aquarelas de todo tipo de plantas, aves e paisagens, mostravam as cores do novo mundo em livros que enchiam a imaginação. O novo mundo era habitado, e por seres particularmente diferentes. Já há tempos, a Igreja teve de intervir, e havia definido que se tratava de seres humanos.
Em meio a tantas pessoas interessadas em conhecer as novidades trazidas pelos livros e jornais, no primeiro quartel do séc. XIX, havia dois garotos, na faixa dos quinze anos, vivendo na Inglaterra. Um se chamava Charles Darwin. A sua história, aventuras e descobertas, estão contidas em mais de 160 anos de livros espalhados pelo mundo.
O outro garoto era George McCleary. Vivia em Worcester, no condado de Worcestershire, a quase setenta quilômetros de Shrewsbury, onde Darwin nasceu e vivia, no condado de Shropshire.
Em 1825, Darwin deixava sua cidade, aos dezesseis anos, para ingressar na universidade de Edimburgo, Escócia, onde estudaria naquele que era tido como o melhor curso de medicina do Reino Unido. Se bem que não foi isso que aconteceu, o garoto não queria estudar medicina. Darwin e McCleary nunca se conheceram, apenas tinham interesses, até certo ponto, afins.
Assim como Charles, George não perdia as publicações feitas nos jornais, atento aos folhetins. Era o sentido do novo que os atraía, a expectativa da aventura.
Adoravam aquelas poucas ilustrações do jornal, tudo em preto e branco, porém repleto de textos que detalhavam a flora, a fauna e a geologia observada pelos viajantes.
As ideias pipocavam na mente do jovem McCleary. No ano em que Darwin seguiu para a Universidade de Edimburgo, McCleary ingressou em um ateliê de desenho e pintura, aos 17 anos desejoso de aprender a fazer paisagens, retratar pessoas, e capturar os detalhes de plantas e animais em pranchas coloridas, algo que começou a dominar em pouco tempo.
Foi ainda em Worcester que tomou conhecimento de uma propriedade extensa nos arredores de Londres, mantida pela família real britânica, onde haviam construído instalações diversas para o trabalho com botânica e jardinagem.
O Kew Park, recebia plantas de todas as partes do mundo, o que incorria em ampliações das instalações, e é claro, a contratação de aprendizes que apoiavam o trabalho de iminentes botânicos que cuidavam das atividades na área.
Já aos 19 anos, sem maiores recursos por parte da família, reuniu suas economias e partiu para Londres. Queria conhecer e trabalhar naquele que seria o maior jardim botânico do mundo, os Reais Jardins Botânicos de Kew.
Na mente fértil do rapaz, sua jornada rumo ao novo mundo dava um novo passo. Conhecer aquilo que já existe, que já está ao seu alcance. Poder aperfeiçoar seus desenhos de botânica, e conhecer pessoas novas. Precisava superar a falta de recursos e a falta de formação regular.
George McCleary sempre foi um autodidata e prático, nunca chegando a ingressar em uma universidade. Foi o talento de George em seus desenhos e pinturas que lhe ofereceu a oportunidade de se sobressair e conseguir a tão desejada vaga em Kew Park. De fato, o seu primeiro emprego assalariado.
Lia muito e era meticuloso em seu trabalho, fosse plantando mudas, fosse desenhando e colorindo meticulosamente, espécies vegetais. Isto chamou a atenção de conhecido botânico a seu tempo, William T. Aiton, nada menos que o diretor do Kew Park. A sorte sorria para o rapaz.
Aprendeu a classificação de plantas e passou a acompanhar o trabalho de catalogação de novas espécies. Daquela época ficou seu registro, uma participação extensa na reprodução de estampas coloridas que, com o tempo, seria sistematizado e ficaria conhecido como Desenho e Ilustração Científica de Biologia.
O jovem e curioso, logo se interessaria também por plantas medicinais. McCleary abria seu caminho por onde fosse possível passar.
A vida era assim, acumular conhecimentos da forma que fosse possível, pois havia sabidamente, um grande vazio a ser preenchido. Naqueles idos do séc. XIX, a expressão mudar o mundo, não era algo em vão. Muitos sentiam o desejo forte de se projetar adiante.
Se de um lado muitos adotaram o ceticismo e o materialismo, na definição e ampliação das ciências nascentes, ouve igualmente aqueles que, fosse pelos riscos e esforços que teriam de demandar, fosse pela expressão de sua fé, adotaram uma ciência com Deus.
Ali a grandeza divina era expressa a cada descoberta, a cada entendimento. Como se mais uma parte do todo se desvendasse, um pouco de cada vez. George acreditava nisso. Queria conhecer a Deus, do seu modo.
Assim, certos indivíduos, portadores deste desejo forte de conhecer e descobrir, se lançaram pelas terras do mundo, em busca do seu quinhão de verdade.
Enquanto alguns encontravam a fama, e o reconhecimento que buscavam, outros pereciam pelo caminho. Então certos desbravadores retornavam para aurir o resultado de seu trabalho. Outros tiveram sua história registrada, ainda que perecessem nas novas terras. Porém, sua presença entre nós ficou registrada através dos livros publicados na Europa.
Entretanto, existem aqueles, que nunca viram a fama, o prestígio, ou o dinheiro, e que sequer, voltaram para casa. Simplesmente a história dos homens muito pouco registrou de suas andanças, seus feitos, e seus próprios escritos, motivo de tantos esforços.
Estes ilustres desconhecidos, nunca foram lidos ou lembrados por mais ninguém. Suas ideias e seus feitos, por significativos que fossem, pereceram com eles.
Novas terras
McCleary passa oito anos trabalhando em Kew Park, até 1835. Reúne suas economias, negocia ainda um pequeno empréstimo junto a um comerciante londrino, em troca da publicação e divulgação de seu trabalho.
Isto tinha a ver com as estampas feitas por George, que já estavam se tornando conhecidas. Sem dúvida, aquilo valia dinheiro. Se fossem colhidas no Novo Mundo, e enfocando novas espécies, valeriam mais ainda.
Definem o seu retorno para o primeiro semestre de 1838, como referência para a finalização do contrato. Trabalhos posteriores, seriam de propriedade do explorador e viajante McCleary.
Um amigo taxidermista, Romuald Davies, seria o seu único parceiro de jornada. A exemplo de Humboldt e depois von Martius, se define pela América Latina.
Aportariam em Cartagena das Índias, uma cidade fortificada criada pelos espanhóis, com acesso pelo mar do Caribe. Em vasta região, haviam fundado uma nova república conhecida como Grã-Colômbia, no rastro do enfraquecimento do império colonial espanhol na América. O começo do fim do Vice-Reino da Nova Granada.
Ingressaram no navio Chameleon, um brigue mercante de dois mastros e oito panos, partem do porto de Dover, rumo a Grã-Colômbia em 10 de março de 1836.
Observando a costa britânica, enquanto se afastavam do litoral, recostado na amurada, Romuald, estava incomodado com a dimensão dos planos de George. Resolve lhe fazer uma proposta bastante razoável.
— Estive pensando George. Nós não conhecemos aquelas terras, e de fato não sabemos o que vamos encontrar pela frente. Só por garantia, se algo sair errado e eu não puder voltar, deixe a parte que me cabe para minha mãe, em Londres. Podemos combinar assim? Dizia Romuald ao amigo.
— Mas claro que sim! Ora, deixe de pensar nesse tipo de coisas, seja mais otimista. Nós vamos voltar no primeiro semestre de 1838, e você será um viajante conhecido. Nunca irá ficar sem trabalho, terá seu próprio atelier e ainda dará aulas aos demais.
George entusiasmara-se com o trabalho de Humboldt, a ponto de querer se embrenhar pelas matas da América do Sul. Desejara participar de uma expedição científica, o que não se mostrou viável. Sempre esbarrara na presença de candidatos com formação acadêmica regular.
Suas prerrogativas o indicavam mais como um artista, e a Inglaterra estava cheia de artistas competentes ávidos por integrar uma expedição à América.
Tudo o que dispunha era de uma carta de apresentação oferecida por W.T. Aitan, salientando suas qualidades em botânica, desenho e pintura da natureza. McCleary julgou ser suficiente. Afinal, estava conduzindo uma pequena expedição privada, que apostava em resultados satisfatórios e impactantes.
Em Cartagena negocia o apoio de um guia e mais dois homens de apoio, além de duas mulas para a condução de víveres e do material disponível. Em três dias o trabalho começa com a equipe tomando o rumo da cidade de Santa Fé de Bogotá. McCleary não perde tempo, buscando e registrando em aquarela, plantas, animais, paisagens e tipos humanos.
Principalmente se percebia alguma formação nova, algo que não fosse de seu conhecimento, que não tenha visto em Kew Park, em livros, ou mesmo em jornais.
Em linha reta, são quase 400 quilômetros, até Bogotá, e tanto McCleary, quanto Davies estavam encantados com a jornada, que acabou se estendendo por três meses, com ambos se enchendo com amostras de animais, aquarelas e desenhos. Já em Bogotá, tomaram a decisão de guardar parte do material na cidade, para resgatarem no retorno.
Prosseguiram, rumando para a Amazônia colombiana, repleta de plantas, muitas espécies de animais e indígenas em estado natural, diferentemente das populações conhecidas até então, em boa parte já aculturadas, ainda que à força, pelos antigos senhores espanhóis.
Outros quatro meses se passaram com os expedicionários vagando pelo interior da Colômbia. Foi Romuald Davies quem tomou conhecimento de um grande rio que os levaria a adentrar a grande floresta, para além do território colombiano. As terras desconhecidas do Império do Brasil. A missão que Humboldt, ao seu tempo desejara fazer e fora impedido.
Quando McCleary soube da descoberta de Davies, sua mente viajou pelas matas do norte do Império do Brasil. A região que Humboldt, o seu herói, não pudera explorar. Evidentemente que não possuíam nenhum tipo de autorização para fazê-lo. Nos idos de agosto de 1836, adentrar as terras brasileiras não seria propriamente um problema.
Na pior das hipóteses, poderiam ser presos e ter seu material confiscado. Uma possibilidade real, porém, em rincões por demais distantes da civilização.
Davies ainda sugeriu que retornassem à Cartagena e ingressassem no Brasil a partir do porto de Belém do Pará, portanto com o conhecimento das autoridades brasileiras.
McCleary, obcecado pela ideia de fazer a exploração que Humboldt não pudera realizar, não estava nem um pouco interessado a contornar o norte sul-americano até Belém. Assim, McCleary convenceu Davies e resolveram assumir o risco, diferentemente de Humboldt, que desistira da empreitada.
Prosseguiram pelo rio Vaupés, o mesmo que corre para o Brasil, até encontrar as águas do rio Negro, um dos caminhos para se atingir a Amazônia central.
McCleary estava entusiasmado pela ideia. Um imprevisto, quase põe fim à sua empreitada. Davies contraiu malária durante a descida do Vaupés, pouco antes de encontrarem o rio Negro. Com a ajuda dos índios da região Davies escapou de morrer naqueles confins.
Retomada a expedição, prestes a atingir o Negro, novas baixas. Os dois guias nativos que os acompanhavam desde o início, abandonam o grupo enquanto dormiam, e provavelmente retornaram à Colômbia. McCleary e Davies ficaram sozinhos e em uma região, por si só, inóspita.
Decidem se deter por mais tempo na companhia dos indígenas que haviam prestado socorro a Davies. O propósito era conhecer sua língua e trocar informações. Foi com estes índios que McCleary tomou conhecimento da existência da língua geral, o wangatú, utilizado pelos índios dos antigos domínios coloniais portugueses.
A língua foi um golpe de mestre da administração colonial, capitaneado pelos jesuítas, que ensinavam aos índios. A padronização da língua facilitava os contatos e o controle das imensidões amazônicas.
Era também uma forma de identificar os limites coloniais portugueses, da feita que os índios eram considerados súditos do rei português.
Obteve rudimentos da língua enquanto se preparava para prosseguir viagem. Entendeu rapidamente que a língua geral era importante para identificar amigos e inimigos. Certamente seria útil se realmente quisesse enveredar pela Amazônia central.
Qualquer detalhe que pudesse oferecer auxílio, precisava ser considerado. Já descendo o Negro, sempre que possível, buscava encontrar falantes da língua geral. Até aquele momento o convívio com indígenas tinha sido extremamente pacífico.
Seu malote de desenhos e aquarelas continuava crescendo, e mesmo utilizando os dois lados da folha, o seu pequeno estoque de papel estava acabando. Já não havia mais lápis para desenhar, os poucos disponíveis foram deixados para fazer anotações, agora, sempre que possível, em síntese. É que os cadernos de anotações estavam igualmente no fim.
Fazia então algumas aplicações a carvão sobre folhas secas e aplicava fixador, a sopro. O problema todo era guardar sem danificar as folhas. Não podiam ser transportadas, pois rasgariam com o atrito, dentro das mochilas.
Desejoso de não deter o seu trabalho, passou a utilizar folhas extraídas do tronco de certas árvores, as quais abria, e mediante pressão fazia com que ficassem planas. Eram menos quebradiças que as folhas secas.
A despeito dos inconvenientes, pois tendiam a amarelar muito depressa e a aumentava o peso, foi assim que pôde continuar pintando, utilizando diversos produtos obtidos na natureza. Desde flores e folhas sovadas, até diversas colorações de argila.
Foi na busca de soluções para estas dificuldades, que McCleary tomou conhecimento de outras questões que aguçaram sua curiosidade.
Aprendendo mais sobre a língua geral, enquanto aprendia também a língua falada por cada grupo indígena visitado, McCleary, junto à fogueira, com seus novos amigos índios, pôde conhecer plantas que curavam muitas doenças. Este cenário lhe era novo. Nunca tinha se interessado muito a respeito.
Já imaginava formas de levar mudas para a Europa. O que na certa, não seria fácil. Mas, não foi só isso, descobrira algo sobre construções em pedra, escondidas em meio a floresta. Começou a realizar buscas, se afastando das margens do Negro e adentrando a mata, na companhia dos índios.
Na realidade, estavam soterradas e cobertas pela vegetação, como descobriria depois. O que pôde ver de fato foram pequenas partes. E informado pelos índios, ficou fácil entender que havia diversos estágios de soterramento, poucas construções estavam parcialmente visíveis.
Tratou de registrar em desenhos tudo o que estava encontrando, inclusive artefatos de pedra obtidos em pequenas escavações no local. Com a ajuda dos índios, limpava parte das construções, o suficiente para expor paredes, ou uma entrada.
George McCleary estava maravilhado com a grande quantidade de informações que estava obtendo. Entretanto, as dificuldades eram inegáveis. Em dado momento, os próprios índios desistiram de apoiá-lo, tentando desenterrar aquelas construções, pois não viam maior propósito nisso.
Neste clima de descobertas, McCleary e Davies adentraram o ano de 1838. Já era mês de junho, e o retorno a Londres, para o primeiro semestre daquele ano, já havia sido esquecida. Estavam dispostos a prosseguir com as explorações.
O que muito intrigava aos dois europeus era a falta de um elo entre a população da região e aquelas construções trabalhadas em pedra. Os índios de fato ignoravam a origem das construções.
Haviam colocados as mesmas em seu universo mítico, mas não identificavam a origem.
Entenderam então que uma grande civilização havia florescido na região, e depois, por alguma razão, foi totalmente esquecida.
Queria imensamente fazer escavações e encontrar mais coisas, mas não tinha nem o pessoal, nem o dinheiro para tal. Foi com grande pesar que desistiu. Porém, seus registros sob a forma de desenhos e aquarelas, constituíam ótima documentação, além da localização aproximada, a partir do rio Negro, pela sua margem direita, descendo o rio.
A primeira grande baixa da pequena expedição, se deu na primeira semana de dezembro de 1838. Davies contraíra malária. A cultura indígena preconiza a cura não apenas do corpo, mas do espírito também.
Buscaram retornar a aldeia para que Romuald Davies pudesse ser atendido pelo curandeiro local, conhecedor dos rituais, das rezas e cantos, que ministrados junto com cascas de cinchona, origem do quinino, poderiam curar Davies.
Recebeu doses sob a forma de chá, durante o caminho, porém não resistiu à doença. Não havia disponibilidade de quinino puro, talvez por isso Davies tenha falecido, antes de chegarem na aldeia e ser atendido pelo curandeiro.
Desolado, McCleary pensou em desistir e retornar à Europa com a carga que reunira, de escritos, anotações, descrições, desenhos e estampas coloridas em aquarelas. Uma documentação história fenomenal.
De certa forma, era certo que McCleary havia cumprido sua missão. O retorno seria mera consequência, e o fechamento com chave de ouro. Então poderia encaminhar para a mãe de Romuald Davies, seus ganhos com a expedição, conforme lhe havia sido solicitado pelo amigo.
Retornar não tinha de modo algum, nada a ver com uma derrota.
Só que não era isto propriamente, que emanava do espírito e do coração desbravador de McCleary. Haviam adentrado as terras do Império do Brasil, clandestinamente, e ele sabia disso desde o início.
Não estavam autorizados pelas autoridades do novo país a fazer explorações na região. Em que pese a dificuldade de se fazer a guarda das fronteiras, pouco definidas, tão distantes e perdidas em um oceano verde, McCleary não era nenhum tolo.
Até aquele momento tinha evitado contato com autoridades locais e confiado no apoio de seus amigo índios. Contudo, sabia que se fosse flagrado pelas autoridades brasileiras, poderia ter o material em sua posse confiscado, e atirado em uma prisão no meio do fim do mundo, onde os anos poderiam rolar, antes que algo pudesse acontecer.
George McCleary apostou. Reuniu seu material de registro disponível, e com a companhia de uma dúzia de índios decididos a ajudá-lo, partiu para mais uma expedição na busca das ruínas e identificação de suas posições da melhor forma que pudesse. A busca por plantas e conhecimentos de cura prosseguiam normalmente.
A expedição avançava, com McCleary, o aprendiz de W.T. Eaton, registrando todo tipo de novidade. Com quatro meses de andanças, em abril de 1839, ao atingirem uma elevação, puderam observar dois contornos bem definidos sob a forma de pirâmides, tudo encoberto pela floresta.
Sob a direção de McCleary, se aproximam do local. Torna-se possível notar a presença de outras construções próximas às pirâmides. Realiza desenhos e registros, após desnudar parcialmente, algumas construções em pedra.
Em seguida realizam o lento trabalho de desnudar um trecho, uma parte de uma das pirâmides. Procurava situar na folha de casca de árvore, a disposição dos prédios que haviam localizado por entre a grande floresta.
O trabalho teria sido impossível, não fosse pela presença dos índios.
Na segunda semana de junho de 1838, com diversos registros feitos, além da localização de seis prédios menores ao redor das duas grandes pirâmides, e coleta de artefatos menores, a expedição se decide pelo retorno. O trabalho, a missão de George McCleary estava concluído.
Daquilo que se buscou em todas as explorações feitas no mundo, quanto realmente chegou ao conhecimento da dita civilização? Jamais saberemos. O lastro de perdas, abandonos e roubos, é enorme. Calçaram as trilhas dos sertões percorridas por esta estirpe de viajantes, homens de valor que alargaram o horizonte das ciências nascentes, e do conhecimento do globo.
Precavido, McCleary havia trazido doses extras de cascas de cinchona, além de outros medicamentos e beberagens obtidos com o curandeiro da aldeia. Retornavam da missão exploratória, com George pensando em recolher e organizar seu material, deixado em diversos lugares, ante a impossibilidade de se transportar tudo.
Desciam um elevação em meio a floresta em um dia de muita chuva. McCleary e um de seus carregadores índios, escorregaram na vegetação úmida e foram ao chão, espalhando os cestos de cipó, onde transportavam parte das amostras recolhidas.
A queda foi mais engraçada que perigosa. Enquanto alguns, do alto da encosta, riam caçoando de George e do outro carregador, notaram que nenhum dos dois se movia, e permaneciam em silêncio, ainda que olhassem lentamente para cima.
Aguçaram a visão por um momento, buscando entender o estaria acontecendo com os homens logo abaixo da pequena encosta. Isto não levou muito tempo e muito menos se mostrou difícil de entender. Os dois homens haviam caído em cima de um ninho de cobras, junto de algumas das árvores.
Aparentemente, não haviam ferido nenhuma das serpentes, pois o ataque de retorno seria fatal. O susto oferecido por conta da queda, não parecia ter perturbado o serpentário, a ponto de enervar os animais, o que também poderia ter provocado um ataque e a morte dos dois.
A vida daqueles homens estava nas mãos dos demais índios da expedição, e de suas habilidades em lidar com o absolutamente inusitado. Curar uma picada, por si só, já é uma complicação, ainda que o curandeiro da aldeia pudesse ajudá-los. Todavia, a exemplo do que ocorrera com R. Davies, estavam ainda muito distantes da aldeia.
Então, valendo-se de toda sua experiência, três homens contornaram a área da queda e o ninho de cobras. Os demais permaneceram no alto da encosta em silêncio. Tocaram fogo em um dos cestos de cipó, e em parte dos papéis de George, pelo fato de estarem secos e por precisarem de chamas.
Reuniram folhas secas e úmidas, colocando por cima, torcendo para que a chuva não retornasse, e para que o pouco vento permanecesse direcionado para o lado do ninho de serpentes.
A ideia era simples e evidente, dando tudo certo, seria salvadora. Passaram-se pelo menos duas horas produzindo fumaça que fluía na direção do ninho e dos homens. Em um dado momento, as serpentes começaram a se incomodar e a deixar o local, se espalhando nas imediações da encosta.
Foi mais uma hora para que os homens pudessem se levantar e se afastar do local. Quando os idealizadores da façanha viram George e o companheiro se afastando do ninho de serpentes, sorriram com o sucesso da pequena, porém salvadora empreitada. Mais uma vez, McCleary recebia a ajuda de seus amigos, deixando de morrer de uma forma tão fatídica.
Já todos reunidos no alto da elevação, conversando com os demais, George soube como haviam realizado aquela missão de socorro.
— Nós tivemos que tocar fogo nas suas folhas secas, pois precisávamos fazer muita fumaça. Já as folhas grandes de árvore e aquelas de papel que você sempre guarda, fomos deixando para o final.
— Meu Deus! Vocês tocaram fogo em tudo?
Acabrunhado, Anori, que liderava o grupo indígena, respondeu:
— Tivemos de queimar muita coisa.
Outro índio salientou que ainda havia papel retirado dos cestos que foram queimados.
McCleary transtornado, desceu correndo a encosta e foi até o local onde os homens fizeram fogo, encontrando ainda restos fumegantes. Olhou ao redor e achou fácil, várias folhas de papel espalhadas que os índios, inteligentemente deixaram por último.
Recolheu o calhamaço restante, enrolou tudo e colocou debaixo do braço. Foi com grande alívio que George retornava para perto de seus amigos. Dos males o menor, o papel de melhor qualidade estava a salvo. O esforço não foi em vão, ainda existia muito material guardado.
Subia a encosta calmo e sorrindo. Todos sorriam naquele momento de descontração. Uma dor aguda, uma fisgada logo acima do calcanhar direito, provocou um grande susto em George. Era evidente demais, o explorador havia sido picado por uma serpente.
Os índios buscam pelo animal e então constatam o que de pior poderia ter acontecido. O corpo da serpente coberto por anéis avermelhados, brancos, pretos, e principalmente, os pequeninos dentes em formato de agulhas, na parte dianteira da boca. Não havia nenhum engano, George McCleary havia sido picado por uma coral verdadeira. Em poucas horas precisava encontrar socorro.
Depois de uma rápida orientação oferecida por Anori, fizeram uma maca utilizando cipós para transportar George. Ele não deveria mais caminhar. Passaram a oferecer muita água, enquanto buscavam retornar o mais rápido possível para a aldeia.
Anori olhava para os demais e sabia que as duas semanas que os separavam da aldeia, era distância demais, tempo demais, para poder socorrer George com melhores chances de sucesso. Anori apenas o fazia, por respeito ao amigo, contudo sabia que esta seria sua última missão.
Já era noite quando George, com o sistema neuromuscular comprometido, com insuficiência respiratória, abandonou seu corpo envenenado, rumo às imensidões do outro lado da vida. já não sentia mais nada. Apenas um torpor, como quem acorda e observa o próprio corpo sobre a maca improvisada.
Levou algum tempo até poder notar que não estava sozinho. Um grupo de índios estava com ele. Fizeram um sinal, como quem o chamava, George atendeu e se afastou do local na companhia deles.
Anori fez o sepultamento do amigo na manhã seguinte, e continuou transportando seus escritos, desenhos e pinturas até a aldeia. Faria a guarda do material por pelo menos um ano, até que resolveu encaminhar as caixas e alforges, cheias de amostras recolhidas no interior das ruínas e demais desenhos e pinturas, para a vila de Barcelos.
As autoridades locais não manifestaram nenhum interesse por aqueles objetos de índio e o material ficou esquecido em algum depósito. Asim, o volume, passaria três anos guardado em Barcelos. Em 1842, alguém lembrou daqueles objetos, e de que havia entre eles vários desenhos e um mapa em uma língua desconhecida.
Por fim, resolveram enviar as caixas e alforges, ou o que sobrou deles, atacados que foram por curiosos em busca de souvenirs, para a vila de Manaus. O volume foi então enviado para o forte de São José do Rio Negro, na realidade um fortim de barro e madeira que abrigava duas companhias de infantaria.
O que restou dos quatro anos de trabalho de George McClyre, foi entregue ao capitão Joaquim Gouveia, na ocasião comandante da fortificação. O militar recebeu então, uma única caixa contendo folhas secas rabiscadas, e já trituradas, tudo sem muito sentido.
Ainda alguns desenhos em cascas de árvores. O volume mais parecia um monturo de lixo, pedindo para ser incinerado. Que foi então a providência tomada pelo comandante, diante daquela inutilidade.
— Toquem fogo nisso tudo. Qual o propósito em se guardar toda essa imundície?
Um soldado se apressou em cumprir sua ordem e meteu fogo no caixote com tudo dentro. Ao remexer o monturo para o fogo atiçar mais rapidamente, apareceu algo que chamou a atenção de seu capitão. Era a extremidade do mapa que se encontrava dobrado, com indicações em inglês, o que chamou a atenção do comandante da guarnição.
— Apague, apague rápido! Puxe este papel para fora.
O soldado apagou o fogo e pôde então recuperar o mapa confeccionado por McClyre, ainda que chamuscado, contudo, bastante inteiro e legível.
O oficial pegou o mapa, e revirou o que sobrou dentro do caixote, à cata de mais alguma coisa de real significância.
Tornou a rever os desenhos em casacas de árvore, agora bem chamuscados.
O mapa mostrava o local onde haveria uma cidadela dominada por três pirâmides bem visíveis. As pirâmides tinham sido desenhadas em cascas de árvore por McClyre, envoltas pela vegetação, além do trecho desmatado coma ajuda dos índios.
Duas preocupações se somaram na mente de Gouveia.
As construções pareciam estar relativamente próximas do rio Negro, e para além da vila de Barcelos. O oficial sabia que se tratava de uma antiga rota de penetração de estrangeiros que buscavam o rio Amazonas e o interior da região.
Em outro nível, as ruínas poderiam significar uma nova onda de estrangeiros interessados em penetrar a região a partir do rio Orinoco e do canal de Cassiquiare, assim pensava o capitão Gouveia. Para aquelas bandas, só havia o sertão. Entendia que o mapa poderia muito bem, ser mais perigoso do que parecia no início. Poderia atrair homens em busca de riquezas, toda sorte de caçadores de tesouros.
Com tais preocupações em mente, reuniu o mapa e demais desenhos remanescentes e os enviou para o comandante militar da área, na cidade de Belém, província do Grão Pará. Junto enviava uma carta com sua exposição de motivos.
Por ordem do então coronel José Fragoso, comandante da guarnição de Belém e região, no sentido de se obter mais informações, montou-se uma pequena expedição que saiu em busca das ruínas indicadas no mapa.
Um grupo de dez militares e vinte índios, então subiu o rio Amazonas e adentrou o rio Negro, buscando localizar o sítio. Após cinco meses de expedição, retornaram à sede, comunicando não terem localizado nada que pudesse minimamente se parecer com as ruínas de uma cidade, ou com pirâmides.
O comunicado selou as preocupações do capitão Gouveia e do comandante Fragoso. A própria equipe, ao retornar, passando pelo forte São José, deu conhecimento ao capitão de que as possíveis ruínas não haviam sido encontradas. Dessa forma, o caso foi dado por encerrado. O mapa, assim como os desenhos foram guardados em Belém, como uma curiosodade até 1865.
Naquele ano foi enviado ao sul do país, o 1° Corpo de Voluntários da Pátria, que seguiria para a guerra contra o Paraguai, tendo um de seus oficiais sido encarregado de conduzir o mapa e os desenhos para o ministério da Guerra, na capital do Império do Brasil, assim como o ofício dando ciência das providências tomadas e de seu resultado.
O mapa foi tratado pelo comando, apenas como uma curiosidade histórica, pelo fato de ter sido confeccionado por um estrangeiro, um invasor, e, portanto, sem autorização para fazer explorações na região. E isto foi tudo.
Como a expedição enviada anos antes, não localizou as supostas ruínas indicadas no desenho, e como na capital do império, estivessem às voltas com um cenário de guerra, pois o exército paraguaio havia invadido o Mato Grosso e o Rio Grande do Sul, o material não despertou maiores interesses da parte do então Ministro da Guerra, José Antonio Saraiva.
De qualquer maneira, houve uma recomendação formal no
sentido de se ampliar as guarnições militares e policiais na região do rio Negro.
O mapa acabou sendo encaminhado para o Serviço de Documentação do Exército. Metido em algum arquivo, o mapa de McCleary acabou esquecido. Os desenhos feitos em cascas de árvores nunca mais foram vistos.
Terminava assim, de forma anônima e inglória, uma das mais interessantes expedições de caráter científico-documental, já realizadas na Amazônia e na bacia do rio Negro. O material que havia ficado em Bogotá, acabou sendo vendido em feiras como uma curiosidade artística e durante muito tempo, os desenhos e pinturas, emoldurados, serviram para adornar as casas das famílias do lugar.
Hoje, muito pouco se sabe do trabalho da dupla de exploradores e da passagem de George McCleary e Romuald Davies pela Amazônia brasileira. Uma parte ficou sob a forma de lenda. Fragmentos daquilo que um dia aconteceu. Quanto ao mapa desenhado por McCleary, provavelmente continua em algum arquivo, no palácio Duque de Caxias, no Rio de Janeiro.
FIM