Foto: Ashim D'Silva
Por: Antonio Mata
Assim que o portão se abriu, desandou a correr. Desceu a calçada rapidamente; subiu a escadaria do beco. Pegou à direita na rua logo acima e correu até chegar no box de Deolinda, no mercado municipal. Ela ainda não estava lá.
Estava subindo a escadaria do beco rumo ao box. Palito permanecia no local até sua dona chegar e abrir o box para mais um dia de trabalho.
Era um mestiço de Pinscher com outro cão desconhecido, por conta de uma doação de uma tia de Deolinda que o havia encontrado perdido na rua.
Há pouco mais de dois anos, Palito estava com a família de Deolinda. Laura sua mãe, Arnaldo seu filho mais novo e Márcia, sua companheira, que também compartilhava o mesmo teto.
O cãozinho, abertamente querido pela família, era o xodó de Deolinda. Pedia a todos que tomassem um especial cuidado com o pequeno Palito.
Fosse pela sua fragilidade, fosse pela sua agilidade que surpreendia a todos pela facilidade com que escapava de casa, correndo para o box de Deolinda.
O pequenino Palito tinha um certo censo de disciplina e de ordem. Já pela manhã, se levantava com o propósito de, primeiro, seguir sua dona até o box do mercado do lugar.
Cumpria o seu sentido de ordem, mas fazendo isso no estilo Pinscher, correndo na frente dos demais. Por outro lado, só corria para o box de Deolinda, sempre para este mesmo lugar. Era o seu sentido de disciplina.
Já era conhecido dos moradores das ruas próximas e também dos demais trabalhadores e proprietários do mercado municipal. Estes se acostumaram a ver o cachorro todas as manhãs no momento de abertura dos boxes para mais um dia de trabalho.
Era manhã chuvosa naquele dia nebuloso, frio e cinzento. Deolinda abre o portão para tomar o rumo habitual. Pequenino, ligeiro e pretinho, fez-se somatório de todas as fatalidades que a vida pode oferecer sob a forma da partícula condicional “se”.
Se não estivesse chovendo, se as chuvas do Norte não fossem tão fortes, se não fosse tão escuro, se a pista não estivesse molhada, se não corresse tanto, se Deolinda não fosse desatenta, se não fosse nada disso...
Na correria desabalada, ao cruzar para o outro lado da rua, nem Palito viu o carro que se aproximava, nem o motorista avistou o bichinho preto e serelepe que passava. Foi tudo muito rápido.
Não sentiu que as rodas passavam por cima do gracioso amor de Deolinda, nem entendeu quanto ao petardo destruidor que disparara no coração da feirante.
Tão rápido, mas também muito preciso. Míseros centímetros deixariam o pequenino e assustado debaixo do carro, mas fora das rodas. O carro continuava e o cãozinho prosseguia.
A cena que se seguiu, tão humana quanto triste, falava da fragilidade do ser e de sua falibilidade. O grito, o pavor, seu filho esmagado. As forças lhe faltaram.
De joelhos no chão e na chuva. O lamento, o choro incessante. As pessoas correndo até Deolinda sem entender. Foi uma queda, foi um bandido, um meliante qualquer?
Na confusão daquele sinistro, quem prestou alguma atenção naquele corpinho molhado, cor de asfalto, e sangue espalhado pela chuva?
A senhora feirante, abandonou momentaneamente a realidade, a feira, a casa, tudo. Encolhida sobre a cama, deprimida e presa na sua mono ideia, era inconsolável, só enxergava a perda de seu pequeno filho postiço.
Assim permaneceu por três dias de silêncio e angústia, sarando lentamente sua dor. Outro cãozinho? Comprar um filhote? Aceitar um de presente?
Assim sugeriam os amigos mais próximos, sem se dar conta de que há tempo para tudo, até para recomeçar. Algumas coisas só o tempo há de sarar e resolver.
Porém, havia as obrigações da casa, as contas de todo mês. Estas não esperam nem os deprimidos, nem os sãos. Na semana seguinte retomou a rotina corriqueira do box, na venda de legumes e hortaliças.
Permitiu que a rotina seguisse, o que quer que pensasse em fazer não traria mais o Palitinho de volta. Era preciso aceitar. Foi mais um revés em sua vida, mas também não seria o último, certamente haveria outros.
Noite quente de verão, todos já dormiam. Arnaldo e Márcia sobre o piso cerâmico do quarto tentando escapar do calor que ventilador nenhum atendia.
No outro quarto, Deolinda junto de sua mãe, começa a ouvir um som por demais conhecido. Imaginou estar sonhando, virou-se na cama e não deu maior atenção.
O som prossegue, só que agora agudo e desagradável. E está mais próximo. Sente vivamente duas patinhas em suas costas, e acorda de vez.
Olha na direção da pressão sobre seu corpo e não acredita, nem no que vê, nem na barulhada dos latidos agudos. Era Palito em um desespero que Deolinda simplesmente não compreendia.
Saltou de cima da cama de Deolinda, correu até a porta, como quem espera que seja aberta. A feirante de pé e ainda sem entender coisa alguma, se levanta e abre a porta. Palito corre na direção da porta da sala. Ao ser aberta, agora é o portão.
Deolinda abre e o cãozinho sai em correria na direção do mercado municipal. Deolinda de camisolão, mais por alucinação do que por razão, corre atrás dele no afim de recuperá-lo, pois assim acreditava naquele momento, que já não parecia mais um sonho.
Estava sim, de camisolão no meio da rua e no meio da madrugada atrás de um cachorro que havia morrido há mais de uma semana antes. Ia ser difícil de explicar aquela situação, mas não importava e nem pensava nisso.
Queria seu Palitinho de volta. Desceu a calçada rapidamente. Subiu a escadaria do beco, pegou à direita na rua logo acima e correu ofegante até chegar próximo do mercado municipal.
O que viu foi assustador, não dava mais para procurar seu Palitinho. Um incêndio se adensava no mercado municipal com os dois grandes cadeados trancados pelo lado de fora. Deolinda se pôs a gritar:
— Fogo, fogo gente, é fogo, o mercado está pegando fogo!
Prosseguia gritando até que a vizinhança acordou e corria até a rua tomando ciência do desastre iminente.
Era preciso ser rápido. Corriam atrás de tudo que pudesse carregar água, enquanto acionavam os bombeiros e traziam as chaves do mercado.
Adentraram o local rapidamente, buscaram os extintores do estabelecimento, enquanto outros conectavam mangueiras de jardim nas muitas torneiras do mercado e outros tantos enchiam baldes.
Deram conta de que não conseguiriam apagar as chamas, mas poderiam detê-las por algum tempo, até a chegada da guarnição de bombeiros.
O intuito deu certo, rapidamente a equipe de profissionais do fogo acionou mangueiras de alta pressão conectadas ao seu próprio carro tanque, e a guarnição entrou em ação.
Com trabalho disciplinado debelaram o foco do incêndio em tempo útil salvando mercadorias e boxes obtidos a duras penas por pequenos comerciantes do lugar.
Perdas poucas, em vistas ao que poderia ter acontecido. Circuito elétrico, ou gambiarra elétrica, um velho e antigo coadjuvante dos incêndios urbanos.
Passado o episódio, Deolinda já em casa, pois já havia deixado de ser a única mulher de camisolão na rua, procurou tomar um banho e conferir o restante nas conversas da manhã que não tardaria a chegar.
Quando do banho, se deu conta de como tudo havia começado e lamentou não ter encontrado mais o Palito, se é que aquilo era possível. Retornou ao quartou e então, na penumbra pôde prestar atenção na bolinha preta amontoada no pé de sua cama.
O pretinho dormia o sono dos justos, e dos heróis. Entre a comoção e a surpresa, Deolinda deitou-se devagar para não ter de acordar seu filho querido. De uma forma que só Deus explica, pensava ela emocionada, o seu pretinho havia voltado.