Por: Antonio Mata
Dos arbustos ao derredor não seria possível deduzir coisa alguma. Do céu cinzento, obscurecido em pleno dia, menos ainda. É assim, é estação, é passageiro, é só esse dia? Não há como saber.
Mas, como é um dia?
Vegetação onde o verde não dominava, de aspecto seco em vários tons de marrom. Mas não estava particularmente seco ou quente. Nem o solo estorricado. Talvez fosse sua tonalidade natural.
Uma observação, de fato provocada por um odor, criou ao menos um quê de grosseira identidade. Foi o inesperado cheiro fétido de carniça no ar, trazido pelo vento.
É que esse detalhe ensejou certa movimentação. Então, passos sucessivos e rastejantes lhes deixou à mostra. Atentos, foram atraídos por aquele cheiro nauseabundo e acorriam até ele como se fosse uma iguaria fina.
A carcaça de um animal, maior que um bezerro, menor que um boi. Mas impossível de se identificar. Logo recebeu a visita dos famintos por aqueles despojos.
Uma carcaça já roída, restos deixados por outro animal. Algum caçador e comedor de carne fresca. Estes que chegavam, tal como os conhecidos urubus, vieram fazer a limpeza final.
A cena deixava antever que estavam apenas escondidos nos arbustos por perto, só esperando a sua vez. Surgiram três deles e atacavam os despojos.
Se aproximaram e apenas catavam parte da carne ainda existente. Quebravam os ossos nas articulações e deixavam de lado. Como se fossem transportá-los para mais além.
O que era aquilo mesmo?
Entre um pedaço de carne e outro, um deles se erguia. Ficava apoiado nas patas traseiras e na calda musculosa e extensa. Como se estivesse de prontidão por alguns minutos. Quando um se abaixava para recomeçar a comer, outro fazia o mesmo. Sempre havia um deles montando guarda.
O que estivesse na guarda, já indicava o pedaço arrancado da carcaça que não queria que mexessem, no que era atendido pelos demais. O vigilante precisava ser respeitado.
Simples de observar aqueles bichos, mas complicado para desvendar. É preciso gente qualificada, conhecedora do princípio das coisas. O universo Divino só pode ser desvendado aos poucos. O viajante observador, levado àquele mundo diferente, se apresentava imperceptível aos animais.
Podia então se aproximar ficando a um metro dos bichos, sem cheiro, ruídos e invisível a estes. O sonho de um biólogo. Daqueles que, após formados, perguntam, afinal o que fazer com a biologia?
É bem verdade que os animais cheiravam a pura carniça. Essa parte o viajante observador não tinha como evitar. Ossos do ofício de quem, em um tempo distante, se aventurou na descoberta dos domínios da vida. As ciências da Terra não constituem um fim por si só, mas o começo.
A configuração geral indicaria tratar-se de lagartos. Já que estes também podem comer carniça e a feição de lagartos lhes era comum. Parecidos com os Dragões de Comodo e do mesmo tamanho. Ainda que tivessem o focinho bem mais curto.
Os olhos grandes, esbugalhados e uma crista de um palmo, que começava na cabeça e seguia até a cauda. Dentes bem salientes para arrancar nacos de carne e trituradores para mastigar os ossos. Os tons pardos os escondiam na paisagem ao redor.
O que poderiam ter a ponto de serem tão diferentes de simples répteis? Bem visível era o formato de suas patas dianteiras. Na verdade, lembravam mãos. Mesmo com as calosidades, pois eram utilizadas para se locomover e não só para segurar objetos. Aliás, eram hábeis em segurar e virar a carcaça. Assim, comiam com a ajuda das mãos.
Ao viajante observador fora permitido acompanhar mais um pouco aqueles animais, e assim o fez. Adentraram floresta próxima carregando pedaços de carcaça. Mais adiante, pôde observar construções arredondas. Dava para notar serem feitas com galhos em sua estrutura e depois preenchiam com argila. Algo muito conhecido pelo viajante.
De formato arredondado, tinham pouco mais de um metro de altura, com pequena abertura de acesso. Lembrava a toca de um animal, só que era construída por eles próprios. O viajante contou pelo menos uma dúzia daquelas tocas. Cada uma parecendo abrigar um grupo familiar. Uma pequena comunidade organizada a partir de suas habilidades manuais e para obter alimento.
Animais menores receberam os despojos remanescentes e passaram a se alimentar deles. A carne restante, depois os tendões, cartilagens e ossos moles. Finalmente, se não ainda saciados, roíam os ossos mais duros até não ficar quase nada.
Como as tocas eram baixas, pareciam ser apenas lugar para se recolher e dormir. Notou que, fora delas, tanto adotavam posição ereta, apoiada na cauda, como rastejando sobre quatro patas. Também pôde delinear uma forma rudimentar de comunicação por grunhidos.
Contudo, sua maior surpresa, foi ver um deles atritando com habilidade dois pedaços de madeira seca. Em dado momento, a chama se fez. Aqueles seres sabiam como fazer o fogo.
De repente, na mente do viajante observador tudo pareceu misturado. Abaixou a cabeça e achou engraçado. Aqueles comedores de carniça eram seres inteligentes, ainda que primitivos. Mereceriam um estudo de arqueologia.
Consciente dos processos evolutivos, tanto físicos quanto espirituais, indagava de si mesmo. Que tipos de espíritos habitariam aqueles corpos que pareciam vivenciar a aurora de uma humanidade, tão desconhecida quanto distante?
Olhando para aquelas tocas arredondadas e meio que amontoadas, onde seres estranhos possuíam relações familiares e alguma técnica de sobrevivência, pensava.
A resposta não lhe foi difícil.
Os corrompidos, os entregues ao banditismo mal disfarçado. Os sorridentes frequentadores dos salões do mundo. Iludidos no seu senso de riqueza, obtida às custas da rapinagem, do abuso e do sacrifício dos demais.
Era o resultado final de um banimento que havia se iniciado há muito tempo antes. Coagidos a recomeçar dolorosamente, entre passos amargos, toda a jornada evolutiva, desde os primórdios.
Deus é amor, mas Deus também é justiça.