Imagem: Wikimedia Commons - Rept0n1x
Por: Antonio Mata
Demorou um bocado, e estava particularmente satisfeito, bem mais que isso. Vitor, por demais desligado daquelas ideias, e por isso mesmo muito pouco interessado, finalmente concordou em acompanhá-lo na viagem, ainda que meio a contragosto, por acreditar ser tudo aquilo uma grande bobagem.
Dizia não querer enterrar uma semana naquela aventura de um bando de velhos, quanto mais quinze dias. Era só nostalgia, não via mais nada naquela história. Nada que valesse o esforço.
História, fama, sucesso, a fantasia e o drama invisível de uma década, estavam todos reunidos. Nem tudo Vitor sabia. Nem tudo, mesmo querendo, teria condições de saber. Não era só ele. Do muito que foi e se fez, pouco realmente se sabia. Por alguma circunstância inusitada da vida, Vitor já era esperado. Alguém, talvez quisesse lhe contar.
Enquanto isso, Vitor virava bicho, aos poucos.
Por que não enterrar a doideira toda? Seria muito mais fácil, mais barato, e de quebra, o deixava livre para fazer o que realmente quisesse da vida. Tem ideia melhor? Pensava, o aborrecido Vitor consigo mesmo.
Intimamente encarava tudo como uma grande babaquice. O adjetivo também era dele. Só ficava quieto para não pegar pesado demais, e depois aparecer como um encrenqueiro. Afinal, poderia sobrar para ele também.
O que não lhe faltava era tio coroa para querer dar lição de moral. Se entendiam que tinha de ser desse jeito, ótimo, então poderiam ir todos juntos, ao passo que ele, ficaria em paz aqui no Brasil mesmo. Quando sugeriu tal coisa, não apareceu ninguém. Não tinha jeito não, era Vitor e Amaral.
Sem saída, abdicou de vez dos próprios planos, e decidiu acompanhá-lo, assim se livrava de qualquer acusação, por ser egoísta, injusto e personalista. Não era nenhum pateta e sabia que os passos seguintes dependiam de estar muito bem relacionado com a trupe de idosos saudosistas da família.
Entretanto, só não queriam arrastar os pés do Brasil. Menos um, o seu pai. Na hora do ver para crer, o bando de velhos se desfez, largando Amaral sozinho na história. Com Vitor se tornando a ótima e a única companhia.
Afinal, o que ele mesmo tinha em mente fazer, e vinha matutando há algum tempo, não era barato e nem era perto. Muito menos, era o tipo da coisa agradável e fácil de se convencer, não podia esquecer, de jeito nenhum, as concepções urbanas da família. Um tipo de gente que só conseguia andar, se fosse em cima do asfalto, com prédios em volta.
Seria horrível, pensava. Porém, se ao final pudesse obter o seu intento, teria valido imensamente a pena.
— Está bem, eu vou. Ele iria ficar meio sem graça se tivesse que ir sozinho, não é? Prosseguiu Vitor:
— A gente vai lá, faz umas fotos e volta para casa. Todo mundo feliz e em poucos dias.
Não era bem isso que seu pai pensava.
— Não esqueça que são quinze dias. Deixe que vou cuidar de tudo, quando tiver as passagens e hospedagem, já te aviso. Quando terminar você vai entender por que tanta gente relembra aqueles tempos. Era um misto de mudança, vontade de viver e qualidade musical, tudo misturado. Não tornou a acontecer, não daquele modo e com tanta gente envolvida com a música. Lamento pela sua incompreensão, meu filho, mas aquilo foi único.
Vitor, na janela da sala, resmungava em voz baixa:
— Meu Deus do céu. Será que vou ter que ouvir isso tudo de novo? Santa babaquice!
Tia Marta, integrante da trupe dos coroas, o viu balbuciando suas injúrias, e aproveitando que Amaral havia se afastado, achou, por bem intervir, procurando apenas sossegá-lo.
— Se acalme, Vitor. Você quer realmente fazer isso? Está disposto mesmo a ir com seu pai? Não está parecendo.
— Naquela viagem besta para Liverpool? É..., vou sim.
— Não precisa dar chilique, se sentindo obrigado. Você mesmo já não tinha outra coisa em mente? Então, apenas ponha em ordem. Vá com ele agora e de certa forma, depois será a sua vez. — Marta continuou.
— É lógico que ele vai perceber que o que você está propondo é um acordo. Não é lá muito bom fazer isso não. Se é que importa saber, isto soa mal, parece que você está barganhando com seu pai. Mas, enfim, não é uma certeza, mas é bem provável que ele vá aceitar. Ainda assim, vê se você mesmo não estraga tudo.
Foi obrigado a reconhecer que tia Marta tinha razão.
— É, pelo menos faz sentido. Acha que ele vai realmente aceitar?
— Se posso insistir em favor dele, acho que posso fazer o mesmo por você. Não é mesmo? Marta prosseguiu.
— O que você pretendia fazer exatamente, Vitor?
— Também queria viajar, só que do meu jeito. Não quero ficar enfiado em cidade nenhuma. Também não ligo para essa história de nostalgia. Ficar relembrando coisas velhas, passadas, isso é uma grande bobagem.
— São memórias da juventude dele, não da sua. Quer apenas conhecer um dos nascedouros da cultura pop do seu tempo, só isso. Para você pode não ter valor, ser uma babaquice, como você mesmo diz. Mas, quando Lennon afirmou que o sonho havia terminado, Amaral tinha a sua idade. É o tempo dele, não é o seu. Já a sua própria história, esta você continua escrevendo, ou ainda vai escrever.
Marta procurava esclarecer as coisas, buscando oferecer algum detalhe que Vitor, talvez não tivesse prestado atenção. Quem está dentro de determinado momento da história, só muito depois é que poderá reconhecê-lo com mais facilidade. Depois que alguém pensar e o escrever.
— Enfim, para onde você mesmo gostaria de ir exatamente, qual o lugar?
— Bom..., não é um lugar só.
— Ah, não? Está pensando em dar a volta ao mundo, ou qualquer coisa assim?
— Claro que não. — Fez um pouco de suspense, e uma certa cara de satisfação, antes de expor seus propósitos originais, olhando lá fora pela janela.
— Quero chegar na Chapada Diamantina, na Bahia. Depois, no Monte Roraima. Então, quero chegar em Yosemite, em Sierra Nevada, na Califórnia.
— Só isso? Faz ideia de quanto custa? Não seria melhor ir a um lugar de cada vez, igual todo mundo faz? Do Rio para a Bahia. Do Rio para Roraima. Do Rio para os EUA. Não fica melhor assim? Está tudo meio longe, não acha?
— Só depois é que vou contar pra ele, agora não. Deixa ir para Liverpool primeiro. Ele não quer gastar dinheiro viajando? Então, vamos gastar dinheiro viajando. Aí quero ver o que ele vai dizer.
O que Amaral propunha era apenas uma viagem sentimental a um momento de sua juventude, um projeto já antigo. Nunca tinha posto os pés na Europa. Encasquetou-se com a ideia de conhecer Liverpool. Não era afeto a tais viagens e muito menos a gastar em demasia, como Vitor acreditava. Caberia a seu filho compreender, mais do que reclamar.
Era saudoso da música dos anos 60 e elegeu Liverpool como o foco primeiro de sua viagem sentimental. Depois cuidaria do resto. Insistia com o filho para o acompanhar, afirmando que, ao final, acabaria gostando também. Só não contava com a resistência de Vitor.
Na data estabelecida, do Aeroporto Internacional Tom Jobim, no Rio de Janeiro, embarcaram para um voo de 11 horas até o aeroporto de Heathrow, em Londres. No mesmo dia seguiram de trem, da estação de Euston, em Londres, para Liverpool, estação de Lime Street. Em pouco mais de duas horas estavam em Liverpool. Hospedaram-se em hotel mais ou menos central, em relação a cidade.
Na manhã seguinte começava a turnê sentimental de Amaral, com seu filho desmotivado a tiracolo. Sentia que o garoto tinha virado uma espécie de mala sem alça da viagem, mas afinal de contas, foi por insistência dele mesmo. Estava disposto a sensibilizar o filho para não azedar o passeio.
Preferiu fazer seu próprio itinerário, dispensando pacotes oferecidos no local. Não estava interessado em saber se iria andar muito ou andar pouco, ver muito ou ver pouco. Queria circular, como a gente comum costuma fazer pelas ruas da cidade. Pegaria um ônibus, se fosse o caso.
Não queria grandes restaurantes, nem saber quais eram os mais frequentados. Queria a comida comum da gente simples de Liverpool. Tudo bem, não iria andar sem lenço nem documento, mas o espírito era este. Fazia parte.
Deixaram o hotel a pé e seguiram pela Mount Pleseant Street, depois até a Brownlow Hill St, dobrando à esquerda com o Chiken Bazooka, um restaurante, logo na esquina. Daí era descer a Renshaw St, à direita; prosseguindo pela Ranelagh St. A ideia de Amaral, uns mil e poucos metros depois, era chegar na Water Front, às margens do rio Mersey.
Subindo por uma avenida que margeia o canal, encontram-se nas imediações vários pontos de referência para o saudoso Amaral explorar, homenagens prestadas pela cidade ao seu quarteto.
Vários museus ligados à música e história da cidade; o Yellow Submarine, um jardim temático; o Cavern Club, The Grapes. Este último, menos conhecido, antecede o início da fama no Cavern, como ponto de encontro, onde serviam bebidas alcoólicas. Pode parecer esquisito, mas era verdade, na caverna não tinha cerveja, só no Grapes.
— Pai, a gente tá andando pra caramba.
— Tenha calma, não vamos ver tudo em um dia só. É a graça de se andar a pé. Você não precisa ter pressa.
Amaral visitou os museus e os jardins próximos, consumindo a manhã em suas andanças. Se deu conta de uma coisa: pontos que queria conhecer haviam ficado para trás, como as casas onde residiram antes da fama. Um problema do próprio Amaral, o planejador daquele dia de visitações. Cedeu às falas de seu filho e à tarde, foram de ônibus, pela Smithdown Road, até as imediações das antigas residências.
O que viram foram casas modestas. Chamam de casa tipo apartamento. Menos de cinco metros de frente com dois pavimentos. Habitações dos trabalhadores de Liverpool. Menos Lennon, que residiu na casa dos tios, onde havia mais espaço. Algumas se tornaram museus muito disputados, exigindo marcar as visitas com bastante antecedência.
— Nossa, a casa de George Harrison! Isso é demais! Pai fotografa tudo, sabe lá Deus quando poderá voltar. — Era o Vitor cutucando o pai com vara curta.
Onde residiu Ringo, uma das casas geminadas mais modestas, vive outra família que acabou por se acostumar com a frente da casa sempre cheia de gente, e não eram parentes nem amigos.
A uns 400 metros da casa de Lennon (Mandips), ficava o Strawberry Field, um orfanato onde a tia Mimi, de John, o levava para brincar nos jardins do local. Na ocasião encontraram tudo abandonado, meio coberto pelo mato. É um troço meio esquisito, mas as pessoas fotografavam o gradil vermelho do portão, só por causa da música.
Gente simples, coisas simples, o imaginário de Amaral ia de encontro às suas próprias origens em um subúrbio do Rio. As ruas estreitas de Liverpool, com os carros colocando duas rodas sobre a calçada, estacionados lá, por falta de garagens. Coisas que existem em um monte de lugares.
— Aqui tem tantos tijolinhos que às vezes a rua parece ficar toda vermelha. É estranho, parece coisa de pobre. Podiam fazer de outra forma. — Dizia Vitor.
— Meu filho, na volta, quando o avião estiver prestes a pousar no Rio de Janeiro, preste atenção nos tijolões que fazem os morros da cidade ficarem todos vermelhos. É estranho, parece coisa de pobre. Podiam fazer de outra forma. — Dizia Amaral.
— Já dá para voltar para o hotel? Já estou de saco cheio.
Para a amolação de Vitor, seu pai ainda avançou mais algumas ruas. Só queria andar pela cidade, enquanto pensava em si, e no Rio que um dia também conheceu.
— Oh, não, eu não acredito no que vejo! Olha só aquela placa, é Penny Lane! Céus! Fotografa pai, fotografa!
Os ouvidos do pai estavam tapados para as idiotices do filho. Se fosse prestar atenção, Vitor acabaria sofrendo as consequências no meio da rua, ali em Penny Lane mesmo.
A despeito do sarcasmo de Vitor, caminhou calmamente até se aproximar da rotatória, onde o garoto Paul se sentava sob o abrigo do ponto de ônibus, e de lá fazia suas observações do que se passava ao redor. O barbeiro, o bombeiro próximo ao quartel, a Fire Station. O banqueiro em seu carro.
Coisas que qualquer garoto, em qualquer lugar do mundo, poderia observar. Já transformar isto em uma poesia, e em música de sucesso, era outra história.
Amolado e cansado de ficar olhando placas na rua e a casa dos outros, Vitor estava a ponto de abandonar seu pai pelo meio do caminho e retornar para o hotel sozinho, nem que fosse a pé.
Olhava para o tempo, quando então se deu conta de que um velho, um ancião desconhecido, o chamava do outro lado da rua, quase em frente de uma daquelas casas de tijolinhos vermelhos.
Vitor atravessa e vai até ele.
— Hi, can I help you?
— Olá, eu falo a sua língua.
— Ah, legal. Também veio conhecer onde aqueles caras moravam?
— Nem tanto.
— Ah, então é o Cavern Club?
— Nem tanto.
— Os museus, o Water Front?
— Nem tanto.
— Entendi, resolveu arrancar as grades de Strawberry Field e levar para o Brasil. Acertei?
O ancião não se perturbou. Olhando o rapaz de forma simpática, respondeu:
— Nem tanto.
Vitor agora estava intrigado com aquele coroa antipático. Quer dizer, tão antipático quanto ele próprio, pela ação do efeito espelho. Assim pensava e erradamente. O ancião estava apenas sendo tolerante.
— Dessa vez eu mereço, era só o que me faltava. Encontrei um velho maluco em Liverpool, falando em português no meio da rua. E que deve saber de tudo, um pouco...
Olhava para a cara do velho com ar de deboche. Que resolve cutucá-lo também, retribuindo o ar de deboche. Espelho é para essas coisas.
— Nem tanto...
— É, eu mereço.
Ao que o ancião respondeu:
— Que te importa isso? Não veio aqui apenas porque precisa propor um acordo, do qual não tem nenhuma certeza do resultado? O que pensa que está fazendo, pretende disparar a garrucha velha no seu próprio pé? Barganhando com seu pai, ao invés de jogar limpo com ele. Quem você pensa que é?
Pego de surpresa, ficou desconcertado com a fala do ancião, que o encarava com seriedade. O velho falava como se soubesse de antemão, dos planos que tinha em mente realizar. Sabia que sem o apoio de seu pai, mal conseguiria se afastar de casa. O velho, então insistiu.
— O que sabe sobre a geração do seu pai, a juventude daqueles idos dos 60 e início de 70, seus propósitos e sua música? O que foi que já te contaram?
— É, realmente não sei grande coisa. Só acho que o tempo passou e que são até saudosistas demais. O mundo gira, sabia?
— Nem sempre a realidade é aquilo que supomos ser. O que chamamos de realidade, o que chamamos de vida, pode ser um fenômeno particularmente maior e bem mais pujante nas suas manifestações. Tanto naquilo que você pode ver, como naquilo que você não consegue ver. Ainda assim, quem sabe um dia...
Quanto mais o ancião falava, parecia menos entender, porém, aquela conversa aparentemente sem razão de ser, agora o prendia. Como poderia algo significar mais coisas? Isso não é nenhum bicho de sete cabeças, mas ali em Liverpool, falando do passado? Já haviam etiquetado tudo, a cidade fazia parte do circuito turístico. O que foi que aquele velho viu que ninguém mais pôde ver? Agora estava ficando intrigado.
O velho sentiu que o havia fisgado em sua curiosidade e então, prosseguiu.
— A sucessão dos eventos é a história. Quando a sucessão das ações humanas se torna nefasta, há de se tomar providências. Você, meu amigo é livre para acertar ou errar, contudo, se o acúmulo de erros for grande demais, em algum momento acabará sendo detido. — Parou por um instante, para então concluir:
— Será detido, antes que possa, por simples ignorância, imaturidade, ou a soma dos dois, atingir quem não tem nada a ver com isso. É o limite do seu próprio poder de decisão. Para isto contribui o fato de estarmos todos interligados. Se é que você me entende Vitor.
— Acho que sim. Mas, o que isso tem a ver comigo, com meu pai e com o que ocorreu naquela época, o que ela tem de tão especial? O que uma coisa tem a ver com a outra?
— O que tem a ver? Tudo Vitor, tem a ver com tudo. Com a geração de seu pai, com o que fizeram as gerações anteriores, e com o que fará amanhã, a sua geração. Uma está sutilmente ligada a outra. Estamos todos interligados. Mesmo que, momentaneamente, uns pareçam ter ido embora. Na realidade, apenas mudaram de dimensão. Ou você pensava que a vida era um fenômeno finito, no estilo, morreu enterra?
O velho só fazia pergunta difícil. Enquanto Vitor se embasbacava e precisava de mais algumas respostas. O ar de deboche já havia desaparecido do seu rosto.
— Nunca pensei muito nisso. Tudo bem, ainda assim achava um desperdício se aprender tanta coisa para depois ser enterrado e se perder tudo. Como se a pessoa não valesse mais nada.
— Nada se perde meu amigo, e todos têm valor, do último aborígene ao maior homem de ciência. Tudo o que você aprende lhe confere mais vida. Todo conhecimento que te faz melhor, e que te leva a compartilhar com os demais, te faz evoluir. O fenômeno da vida faz somente sentido se for para compartilhar e evoluir, meu amigo. Avançar sempre, evoluir sempre.
O ancião, muito lúcido, deteve-se mais uma vez.
— Você pode parar para um café, ou até mesmo tirar férias, mas terá de voltar e cuidar de viver e de evoluir Vitor. Digo-lhe mais, quem abandona esta busca, depois se arrepende.
Aquela conversa no meio da rua assumia contornos inesperados de algo sutilmente benfazejo. Aquele tipo de conversa da qual você não quer mais sair, não quer mais que acabe. E a cada consideração, um novo entendimento. Uma nova faceta daquele velho fenômeno da vida se fazia presente. O rapaz cedeu e baixou a guarda de vez.
Não teria como disputar o que quer que fosse. Não com aquele ancião, de olhar tão firme quanto honesto.
Abandonou aquele ar de quem sabe das coisas, e então preferiu ouvir mais. Estava como que hipnotizado, tomado por aquela figura singular, ali mesmo na sua frente. Já não ouvia o ruído dos automóveis, ou pessoas passando. Curioso, fez o caminho inverso de Paul, desfez-se da rua, desfez-se da rotatória, do banqueiro e de Liverpool. Só conseguia prestar atenção no ancião.
— Por favor, me conte mais, eu preciso saber.
Um pescador de homens.
Tudo o que precisa é de uma mente sadia disposta a ouvi-lo. A verdade precisa ser oferecida, e com ela as conexões, as ligações. Então iniciou uma história incomum e original para o curioso e atento Vitor.
— Muito antes do término a Segunda Guerra Mundial, já se sabia que os artefatos atômicos seriam do conhecimento dos homens. Muito antes do século XX. Contudo, com a guerra, a Terra entrou em compasso de espera, em vigilância permanente por parte das Potestades Celestiais, também conhecidas como Anjos do Senhor, ou como você quiser chamar. Pois isso, é o que menos importa — O velho tornou a se deter.
— Os governantes dos povos da Terra, dali em diante, viveriam entre a loucura e a razão. Adentrariam o limiar mais alto do seu direito de escolha, ou livre arbítrio. Caso tomassem a decisão de uma guerra termonuclear, muito do planejamento da linha do tempo terrestre, isto que vocês chamam de futuro, estaria irremediavelmente prejudicada, para não dizer perdida.
A conversa assumia ares inesperados, mais uma vez. Vitor era só ouvidos, e a boca semiaberta. Seu interlocutor prosseguiu:
— A perda para a humanidade seria trágica, avassaladora. Exigindo milênios adicionais, somente para a correção do erro cometido. E com ele, sofrimentos desmedidos para todos. Muitos iriam simplesmente enlouquecer. O Governador deste mundo não podia deixar que sua própria obra se perdesse tão facilmente. O grande Autor, o Planejador de todas as ações que dizem respeito a evolução da Terra. Você sabe de quem eu falo Vitor?
Como um menino flagrado falando e pensando bobagens, Vitor lembra de certas lições na presença de sua mãe. Então, contrito e tolo oferece uma resposta.
— Jesus.
— O próprio, meu amigo Vitor. Não iria esperar que as coisas simplesmente acontecessem. Já havia um planejamento montado com milenar antecedência.
— Por favor, continue, estou lhe ouvindo.
O ancião prosseguiu.
— Pois bem, era preciso aliviar a pressão sobre as mentes humanas, submetidas a uma carga vibratória de baixíssima qualidade, que envolve permanentemente este mundo. A atitude belicosa dos povos mais avançados em conhecimento, aliada às péssimas vibrações mentais em todo planeta, mais uma vez faziam soprar os ventos da guerra. Só que dessa vez, seria uma guerra de extermínio. — E continuou.
— As Potestades Celestiais, antevendo o perigo, sabendo que os meios de comunicação no mundo já estariam suficientemente desenvolvidos, puseram em prática o planejamento já delineado. Providenciaram, de antemão, uma seleção de novos habitantes para o cenário terrestre. — Tornou a se deter.
— Estes novos habitantes, entre as convocações para a guerra, nos povos do hemisfério norte, e as bombas caindo por sobre a Europa, chegaram à Terra, em um cenário de conflito. Nova parada, e continuou.
— Nasceram entre nós e cresceram naquele cenário pelas décadas seguintes, sem entender muito bem o que ali se passava. Para muitos europeus e norte-americanos, não passavam de uma geração de alienados. Gente que não lutou pelo pão que comia.
— O que não se sabia, é que não era este o seu papel. Não eram políticos, nem militares, nem empreendedores. Contudo, pregariam a paz, a concórdia e o amor. Era esta a sua missão. Eram poetas, músicos, artistas, que com sua arte capturariam as mentes humanas, em particular da juventude. E assim foi feito.
A radiodifusão, a televisão, o cinema e a indústria fonográfica levariam sua arte, e particularmente suas canções, a todos os recantos de um mundo doentio, desejoso de respirar um ar diferente. Este ar, esta brisa suave em meio ao negro nevoeiro, foi por eles oferecida.
Se viram em um mundo que lhes era um tanto quanto estranho, onde muita gente mandava e esperava ser obedecida. Até o errado era tido como certo, a mentira, muitas vezes apregoada à conta de verdade.
Muitos enxergaram nas drogas uma rota de fuga. Se para muita gente não valiam o que comiam, aquele mundo por vez, o que tinha de belo, tinha de nefasto.
Antes a rebeldia por uma causa justa do que virar bucha de canhão, como já havia acontecido no passado. Era a causa da paz e do amor, entendida que foi, de diversas formas. Desde serem jovens sem causa, até defensores das ideologias dos próprios homens, ao invés de pensamentos mais elevados. Não sabiam, ninguém percebeu, nem eles próprios. Defendiam a causa do Cristo. Por perdidos que estivessem, por limitados que fossem. Até hoje, pouco se soube sobre eles e sua luta.
O velho prosseguiu.
— Era importante que os arranjos fossem envolventes, e não apenas a letra, já que não podiam ficar restritos aos povos de língua inglesa. Porém, seriam os principais produtores, mas também grandes consumidores, pois o principal alvo estava com aqueles povos de mentalidade belicista. O arrefecimento precisava se dar principalmente nestes povos, onde estavam os principais detentores de poder. Contudo, era verdade que nasceram em diversos povos. Com o seu povo também, Vitor.
— Entenda que o movimento só pôde crescer onde havia liberdade de expressão. Liberdade Vitor, é para isto, para atuar positivamente, conduzir à evolução e não à destruição.
— Tempos depois, haveria quem os chamasse de índigos. Não são superiores a ninguém, nem mais inteligentes, nem mais capazes, também não eram todos que possuíam tais talentos. Entretanto, seu elo comum é que adoravam a música. Capazes de enxergar poesia nos fatos comuns do cotidiano. Por isso foram convocados a exercer este papel, os arrefecedores, os moderadores de um clima de tensão em um mundo espiritualmente doente.
— Por tudo isso, era de se imaginar que deixassem marcas profundas por entre seus contemporâneos e além. A geração de seu pai ficou como que ancorada naquelas canções, e trataram de assegurar a propagação. O bem, quando oferecido aos demais, perdura. Não se diz que o sol brilha para todos? É isso mesmo, a Luz Divina também. Assim, pouco depois você pôde chegar ao mundo e os seus filhos poderão também, todos igualmente interligados. Uma geração prepara o terreno para a próxima. O respeito aos pais, exigido no decálogo, também significa isto.
Vitor não sabia o que pensar, quanto mais o que dizer. Se sentia um mísero rato na presença de um felino que não está interessado em maltratá-lo. Apenas fala, apenas explica.
Quem poderia sequer desconfiar que a arte, conduzida sob a forma de poesia e música, poderia atuar de forma tão profunda no seio de uma humanidade tão doentia e perturbada?
A partir de canções, de música popular, assegurou-se a manutenção e a continuação da vida daqueles que estavam a caminho do autoextermínio, pela repetição do Carma, que motivou sua vinda para este mundo.
Foi assim, sob o mais absoluto silêncio que a mão do Cristo esteve sobre eles o tempo todo. Já os abusos, os excessos com drogas e a libertinagem no sexo, foi a contribuição das mentes humanas.
Jim Morrison, Janis Joplin e Hendrix, para citar alguns daqueles mais lembrados, foram as baixas de uma luta que mal vislumbraram a existência. Bastava que adormecessem para serem lembrados do compromisso. Com o tempo, envolvidos pelo cenário espiritual deplorável do mundo que habitavam, sucumbiram, não ouviam mais. Deixando a vida na matéria de forma tão prematura, restou-lhes o choro e o ranger de dentes. Perderam a vida, se diria depois.
Quando se deram conta do ocorrido, o susto, o desespero e o remorso foram maiores, pois deixaram passar a oportunidade de servir em um dos momentos mais críticos da humanidade. Estavam aqui para isto. Pediram para fazer isto. Ninguém nunca foi obrigado. Era evolução, era meritório, condição de melhoria para todos. Atuar positiva e voluntariamente sobre um mundo diferente.
O advento do rockn’roll, fazia reforçar no cenário musical do mundo um estilo forte, capaz de capitalizar e capturar as mentes mais rebeldes para a música, desmobilizando-as de um cenário perigoso que insistia em envolver a Terra, sob o nome de Guerra Fria. Este embate foi enfrentado silenciosamente, porém não apoiado nas armas destruidoras dos homens, mas nas armas singelas e pacíficas do Cristo.
O rock na sua poesia, ou na sua rudeza quase insana, foi instrumento da Luz que arrastou multidões para os eventos musicais. O rock and roll, tanto quanto seus gêneros formadores, não nasceram nas estradas da Terra, mas são filhos das estradas do Céu. Aqui apenas receberam uma conformação terrestre que o caracteriza. Música fala de humanidade, sentimento e momento vivido. A música circula pelas estradas do Céu, rumo a outras estrelas. Basta dizer onde precisa chegar.
De fato, em qualquer lugar onde houvesse uma vitrola, um violão ou uma guitarra, os arrefecedores da alma estariam lá, subtraindo das guerras a sua matéria-prima humana, a rebeldia das mentes doentias e belicosas.
De outra forma, estariam livres para serem cooptadas e pôr em prática toda a sua capacidade destrutiva, bem mais do que a história registrou. A incentivou a paz e a juventude atendeu.
Vitor buscava se localizar dentro daquele cenário.
— Mas veja, a música também enveredou por outros caminhos. O que dizer do rock horror, e do heavy metal?
— Ah, sim, o horror e o heavy. Qual será a afinidade espiritual dos homens da Terra? Com os sentimentos do Cristo ou com as perturbações da sombra? Os cadáveres, os fantasmas e os morcegos saíram de onde tinham de sair. De onde você pensa que vêm as companhias espirituais daqueles que adentram estes espetáculos? A resposta é fácil. — O velho prosseguiu.
— Estes gêneros musicais afins são apenas substratos humanos surgidos à margem do plano original. Também não são os únicos. Mais uma vez, pode não parecer, mas a música fez a sua parte.
— Deixe-os hipnotizados diante da banda que toca. Melhor do que se matarem nas ruas. Ao final, suados, cansados e drogados, vão voltar para suas casas. É a Lei da Afinidade em ação Vitor. É evidente que nem todos agem da mesma forma, apenas apreciam a música. Que, na opinião deles, é boa.
Então continuou.
— Você certamente já viu certos bonecos de brinquedo que enfeitam os quartos das crianças, não é mesmo? Pois bem, o que você acha de Chuck, o boneco assassino? Foi oferecido como brinquedo. Ele veio de mentes superiores ou de mentes perturbadas? Com a música fizeram o mesmo. Você sempre estará livre para decidir que tipo de letra, qual ritmo e que tipo de música pretende fazer.
Vitor abaixou a cabeça e ficava rindo e sacudindo a cabeça, meio abobado, enquanto procurava encaixar aquele pacote de ideias, novinhas em folha. Cheio de perguntas, tornou a indagar.
— Mas, veja só, e as guerras? Ocorreram várias guerras. — Dizia o rapaz.
— As guerras Vitor, sempre as guerras. A tragédia do Vietnã, o genocídio inominável de Biafra, a guerra entre árabes e israelenses. Também a invasão da Tchecoslováquia. Com os mísseis de Cuba estivemos brincando de roleta russa, a um passo do fim. Estes e tantos outros conflitos deixaram os homens no seu limite de decisão. Ou será que não?
E continuou.
— Deveria então existir um raio misterioso para destruir seres infantis incapazes de se entender e decidir, o que acha? Como evoluir se forem incapazes de amadurecer? Logo, esta é a parte que lhes cabe Vitor, não é mesmo? Aliviar a pressão é uma coisa, interferir no livre arbítrio dos homens, é outra.
— Por Deus, Vitor! O que se deve fazer do Conhece-te a ti mesmo? Deve então ser enterrado?
Uma angústia e uma verdade. Inegavelmente, aquele ancião esteve aqui, viveu aqui e sofreu aqui. Estava em seus olhos, carregava em seu espírito. Agora Vitor se sentia estranhamente próximo e estranhamente inútil.
— Compreendo, você tem razão. De alguma forma é preciso valorizar a vida que se tem para poder decidir corretamente. — Concluiu Vitor.
— Pois bem, meu amigo. Já que é preciso viver, amadurecer e decidir, não se esqueça que as grandes decisões começam com as pequenas. Os pequenos exercícios que a vida oferece, e que muitas vezes, teimosamente não queremos atender.
O rapaz sorria e já compreendia o recado. Olhou para o seu pai que continuava de pé, procurando alguma coisa em seu mapa.
— Venha comigo, preciso que conheça meu pai. Ele vai adorar ouvir tudo isso. — Passou a chamar por seu pai que ainda estava do outro lado da rua.
— Pai, olhe aqui, pai!
Andava e prestava atenção ao seu lado direito, para não perder o ancião de vista.
— Vamos, ele precisa conhecê-lo.
— Estou indo.
— Pai, veja quem está aqui! — E continuava.
— Aposto que ele não faz a menor ideia a respeito de todas estas coisas. Ele vai ficar de boca aberta. Venha, vamos logo. — Dizia Vitor, já por demais afoito e entusiasmado. Sempre olhando para sua direita.
— Não grite, estou indo.
— Ele está aqui vamos, venha. Tornava a dizer ao ancião para acompanhá-lo.
— Pai, veja quem eu encontrei!
Amaral, que até então verificava seu mapa, levantou a cabeça para ver seu filho que o chamava o tempo todo.
— Aconteceu alguma coisa? O que havia de tão bom do outro lado da rua para você fazer tanto barulho?
— É ele, pai, é ele! Dizia, enquanto apontava para a sua direita.
Amaral olhava para o seu filho com simpatia.
— Ele quem meu filho?
Vitor virou-se, deu uma volta completa, e nada do ancião. Evaporou-se no ar, desapareceu, sumiu.
— Não pode ser pai, ele estava aqui do meu lado. Um velho, um ancião, que me contou coisas de que eu nunca ouvi falar.
Fosse o que fosse que tivesse acontecido naqueles um ou dois minutos, enquanto Vitor estivera do outro lado da rua, Amaral não estava disposto a liquidar com a empolgação do rapaz.
— Tudo bem, mas você ainda pode me contar. Não é mesmo?
— Claro, eu conto sim. Só queria que ele estivesse aqui. Foi uma conversa e tanto, só não quero esquecer os detalhes. Olha, queria dizer mais uma coisa.
— Sim, pode sim.
Vitor, meio sem graça, mas lúcido o suficiente para compreender o quanto havia se tornado antipático e grosseiro, decidiu acabar com aquela onda de antipatia.
— Pai, me desculpe, eu sei que fui estupido. É verdade, a gente às vezes não sabe o que faz.
Amaral abraçou seu filho, selando de vez aquela nova etapa, e deixando as mágoas para o passado. Até porque, nessa nova fase, Vitor agora falava sem parar e quer entornar tudo de uma vez só. Se fazia preciso que o interrompesse por vezes, para que ele mesmo pudesse compreender tudo aquilo que o filho, meio afobado, dizia.
Desciam Penny Lane, com Vitor falando pelos cotovelos, preocupado em não deixar passar nada. Mas na mente de Amaral, tudo estava em paz. Já compreendia que havia um fato novo ali. Aquele ancião, por desconhecido que fosse, havia trazido seu filho de volta. Só isso, era o suficiente para encher Amaral de alegria.
Linha do tempo; guerras; arrefecimento; paz; amor; poesia; índigos; estradas do Céu; música e vida. Meu Deus! Muita coisa para se contar!
The great entertainers, é assim que os artistas são chamados pela mídia. O teatro e a música acrescidos dos avanços tecnológicos.
Foi este somatório que permitiu a grande divulgação do fenômeno cultural dos anos 60. É bem verdade ainda, que os lobos sob a pele do cordeiro, logo se apresentariam para fomentar direcionamentos e orientações, sobre algo que nunca souberam realmente do que se tratava.
O planejamento do Governador do Mundo, providenciou os atores que fariam a história da década. Cenário este descortinado, principalmente por Elvis Presley, pouco antes.
Se neste lado da vida o movimento cultural seria um grande sucesso, não se pode dizer o mesmo do cenário espiritual. Elvis deixaria o plano físico da vida, prematuramente e em condições deploráveis. Angustiado, deprimido e só, tornou-se um suicida empurrado pelo uso excessivo de medicamentos.
Não estava sozinho na sanha do abuso de químicos. Antes dele, o negrume de suas próprias mentes seria visitado por Jimi Hendrix, Janis Joplin, e Jim Morrison, nomes que circularam na mídia da época. Todos estes abandonaram prematuramente suas experiências de vida, o que lhes foi muito pesaroso, ao se darem conta da verdade e da natureza da missão. Não se tratava de seres excepcionais. Eram apenas pessoas que se expressavam musicalmente.
Tudo acabou em momentos de insanidade, desespero e choro compulsivo. Adentraram o mundo físico como verdadeiros cavaleiros andantes, amparados nas melhores inspirações e esperanças de servir ao Criador, ao Mestre e à Terra, decididos daquilo que pretendiam ser. Não foi bem o que aconteceu.
John Lennon teve sorte um pouco melhor. Deixou a vida tridimensional, na hora que era para sair. Ainda que pelas mãos de um desequilibrado. Viveu momentos de perturbação, contudo, tão logo se recuperou, fez o que precisava ser feito.
Personalidade carismática que era, integrando caravanas de resgate, na companhia de contemporâneos seus, já recuperados, e de espíritos mais avançados, adentrou os umbrais da Terra para recolher a juventude falida que se amontoava na escuridão e no lamaçal de suas próprias mentes.
Nos jornais e revistas daquela década, ecoava o orgulho criminoso do planeta de humanidade corrompida: Deus está morto. Lennon, de joelhos e em prantos, assistia o resultado do deboche, da incoerência e da cegueira espiritual. Milhares de espíritos de homens e mulheres, em andrajos e enlouquecidos, perambulavam pela escuridão.
Que incontáveis erros foram praticados, isto é inegável. Estavam todos expostos às mesmas vicissitudes e contradições da época, que perduram até hoje. Entretanto, foram homens e mulheres comuns que desceram às plagas terrestres, com o propósito de servir. Que, no entanto, eram portadores de específico talento.
Iriam contribuir, para mitigar as dores e angústias da escuridão, aliviando as mentes com poesia e música, afastando-as das guerras. Muitos sucumbiriam na exposição às viciações, desregramentos, violências e os tantos conflitos da Terra, descaracterizando seu próprio trabalho e propósito.
Ainda assim, isto não desabona a coragem, determinação e o heroísmo juvenil que marcou sua preparação e sua chegada no mundo de ilusões. Naquele momento, ao aceitarem o desafio de trazerem alento a um mundo doentio, eram os enviados do Céu.
FIM