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histórias, crônicas e contos

Pepe e o muro

                                                               

                                                                                                                           Imagem: Wikimedia Commons - Pextrel

Por: Antonio Mata

Logo nos primeiros dias, beneficiou-se da presença, da atenção e de todos aqueles mimos e brincadeiras que as pessoas, costumeiramente gostam de oferecer. Como quem festeja a chegada de um novo morador.

Amélia e Couto, já há algum tempo se preocupavam com certas presenças imprevistas e indesejáveis no quintal de casa. É bem verdade que podiam ser visitantes que não oferecessem perigo algum, como os gatos do vizinho.

Durante a noite, aqui e ali, surgia uma mucura procurando o que comer. Nesse caso, bastava não deixar nenhum alimento exposto e nem acumular lixo. Já era o suficiente.

Contudo, havia aqueles que tinham interesse em pular o muro no meio da noite, ou mesmo de dia, para bisbilhotar e verificar a segurança da casa. Era quando mudava de figura. Aquele cão robusto, de pelagem marrom escuro, não estava ali de graça.

Tendo de permanecer fora de casa o dia todo, a trabalho, o casal necessitava de um cão para vigiar o quintal e a casa. Foi assim que Pepe, um vira-lata muito bem-apanhado, entrou na história e, ainda que de modo distante, na vida de Amélia e Couto.

O animal já tinha mais de um ano e vinha de um sítio, onde gozava da companhia de mais três cães. Com a mudança de moradia, Pepe se viu longe de seus parceiros. Talvez tenha sido este o seu primeiro baque, além do fato de ter de substituir os limites do sítio, pelos exíguos limites do quintal dos Couto.

Naquele primeiro ano, ainda havia uma certa boa vontade em interagir com o ansioso Pepe, ante à presença já bem reconhecida e bem-vinda do casal, logo no início da noite quando retornavam para casa. Contudo, o cansaço, a rotina, aquela mesmice que afasta toda boa vontade, acabou por afastar o casal de Pepe.

Já não havia mais brincadeiras quando da chegada. O gesto mecânico de colocar água e comida se repetia, sem maiores interesses. Pepe, o guardião robusto, vigilante e alegre, havia se tornado invisível. Assim a vida seguiu, sem maiores alentos ao longo de seu segundo ano.

O terceiro ano avançava, com Pepe retido no quintal. Até que em certa noite, ouviu um som inabitual.

— Ei, o que você faz aí toda noite?

— O quê?

— Você aí, como você faz para viver aí dentro?

— Aí dentro? Ora, estou no meu quintal. E você, o que faz em cima do muro?

— Embaixo é que não haveria de ser. Não me diga que você não sabe para que serve um muro?

— Claro que eu sei. Serve para separar quem está dentro e quem está fora.

— Não tem resposta melhor? Você está dentro ou está fora?

— Resposta melhor? É claro que eu estou dentro!

— E o seu vizinho, está dentro ou está fora?

— É lógico que está fora! Pare com essa besteira! Afinal, o que você faz em cima do muro?

— Um muro é uma via, um lugar para se passar, um caminho elevado. Posso ir para qualquer lugar. Basta ter um muro, uma pista. Não fosse por ele, eu não teria como circular com segurança no meio de tantos bichos que existem aqui. Inclusive você. Pensa que não sei? Fora disso, um muro não serve para mais nada.

Parou e pensou mais um pouco.

— Pensando melhor, ele impede que você corra atrás de mim. Assim eu vivo mais sossegada.

— Sossegada? Quem é você?

— Quem sou eu? Ora, uma mucura.

— Pare com isso, mucuras não falam!

— Cachorro vira-lata também não.

Pepe, todo eriçado com aquele insulto, latia e saltava com toda sua força procurando alcançar o bicho em cima do muro, inutilmente. Este seguiu adiante, pela sua pista e sumiu de vista.

— Se aparecer novamente, vai ver só uma coisa. Nem que eu me torne um caçador de mucuras!

O tempo fez a sua parte e tratou de passar. Pepe nunca pegou mucura nenhuma, nem gato. Passarinho nem pensar. Tornou-se obeso e lento. Passou a falar consigo mesmo, com ou sem mucura, ou gato, ou outro bicho qualquer para lhe ouvir.

Começou a comer as próprias fezes e a andar em círculos. Estava se tornando neurótico.

Foi no quinto ano, após falar até com o próprio muro que Pepe teve um infarto. Quando Amélia e Couto chegaram, apenas notaram que ele não apareceu para mendigar atenção, como de costume. Couto encontrou Pepe, caído junto ao muro, lugar de sua última e solitária conversa.

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