Foto: Wikimedia Commons
Por: Antonio Mata
Estavam todos reunidos na beira do campo, aguardando o momento por demais esperado daquela manhã. Alguns já calçavam seus meiões e chuteiras. Calções e camisas, já chegaram vestidos por debaixo das roupas.
Enquanto aguardavam a chegada do olheiro, uns e outros brincavam de linha de passe, só para aliviar a tensão. Chegaram sós, não era permitido o acesso de terceiros, mesmo que fossem familiares.
De fato, já haviam sofrido uma espécie de pré-seleção, motivo da presença somente daquele grupo exclusivo. Estavam no campo naquele dia e hora, a convite. Chegava a hora de serem observados mais a fundo.
O olheiro chega, faz uma apresentação rápida, avisa a todos da importância daquela manhã para suas vidas, pede cordialidade no desenvolvimento da partida de observação.
Avisa que o uso de jogadas que possam machucar, será reprimido com a exclusão do candidato. Era o seu primeiro encontro com aquele grupo de pré-seleção. Afinal o encontro visava selecionar aprendizes para ingresso no time de juniores de importante time carioca. A porta de entrada para o futebol amador, e finalmente o futebol profissional.
Prática corrente ou não, o fato é que o aspirante a qualquer posição defensiva, vai ter que entrar decidido e deter as jogadas. Seja por inabilidade ou por malícia, ele correrá o risco de bater no oponente.
Desde que não seja um carrinho acintoso por detrás, o mais provável é que cumpra todo o jogo de observação. Se for eficiente em matar a jogada, o olheiro vai continuar observando seu desempenho. Sabe que terá de selecionar um grupo para um novo jogo.
A mocidade do Rio de Janeiro mandava representantes de todos os seus recantos. Rio, Campos, Nova Iguaçu, São Gonçalo, Teresópolis, Niterói, e por aí vai.
Definidos os dois times, inicia-se a peleja. Em lances curtos, bola rolando, os garotos procuram se localizar em campo, apesar da tensão daquele encontro.
— Entrem para jogar a bola de vocês, como estão acostumados a fazer. Faz de conta que eu não estou aqui. — Dizia o olheiro.
Alguns responderam com um sorriso irônico, no estilo “me engana que eu gosto”. Tinha gente que não iria conseguir dissociar uma coisa da outra de jeito nenhum. O que é uma pena.
Aquela peneirada não estava ali à toa. Era sabido que naquele grupo poderiam despontar rapazes de personalidade, desenvoltura e trato com a bola.
Um e outro era oriundo de uma escolinha de futebol. A maioria vinha dos campeonatos de pelada, após as tais observações preliminares. Havia quem trouxesse algo para comer, ou algum dinheiro. E aqueles de estilo convencional. Cara, coragem, barriga vazia, e por muito favor, o dinheiro do ônibus para casa.
Faziam um espectro das relações familiares. Chegavam sob as bençãos do pai, da mãe, do tio, da tia, do avô, da avó e dos amigos também. Até a outra ponta, onde sequer sabiam onde estava ou o que poderia estar fazendo.
O corpo esquenta, começam a focar no jogo e as habilidades pessoais vão lentamente ganhando forma. A peleja ganha força e vai ficando interessante de assistir. Posicionamento, velocidade, domínio de bola, tudo conta. O olheiro sabe que dali, só vai tirar uns dois ou três, talvez nem isso.
Com vinte ou vinte e cinco minutos de observação, um dos presentes desponta na partida e começa a chamar a atenção. Bom posicionamento, boa velocidade, cabeça erguida prestando atenção em tudo. Lançamentos longos, fazia sempre de pé esquerdo e com precisão.
— Uai, quem é esse garoto, foi você que trouxe? Perguntava o olheiro.
— Não, foi o Dionízio. Veio lá de Conceição de Macabu. Meio longe, mas ele quis vir assim mesmo.
— O que é que ele está fazendo de calças compridas? Lá em Conceição, não tem calção não?
— Não faço ideia. Dionízio mandou o garoto vir, e ele taí. Disse que ele era muito bom nas cobranças de bola parada, principalmente na linha da grande área.
Deixou completar os primeiros trinta minutos, enquanto observava mais alguns garotos. O que o intrigava de fato, era o jogador mais habilidoso presente. Era aquele mesmo, de chuteiras e calças compridas. Por qual razão, ainda não havia entendido.
Concluídos os trinta minutos, chamou-o até ele.
— E aí, qual seu nome rapaz?
— Juliano Souza. — Magro, alto e meio esbaforido, respondia ao olheiro. O tipo de adolescente que se encontraria em qualquer lugar do Rio de Janeiro ou do país.
— Olha só, tenho duas coisas para te dizer. Uma conclusão, e uma pergunta. Para um instante e arremata.
— Você se posiciona bem, domina bem a bola, é bom com a perna esquerda, o que já é um bom começo. Me contaram que você é batedor de faltas, ótimo. Depois vamos cuidar disso. — Tornou a parar, e então completou com a interrogação que o incomodava, desde o início.
— Só não sei Juliano, o que você faz dentro de campo de calças compridas. É evidente que isso te atrapalha. Como foi que você fez para trazer as chuteiras e não trazer o calção, esqueceu?
O rapaz, ainda esbaforido, parecia pego em um flagrante com ares de coisa idiota, mal pensada, coisa meio inocente, de menino. Mais exatamente de quem já advinha que as coisas têm hora, e assumia que a sua tinha chegado.
Olha para um lado, baixa o rosto, nega qualquer coisa que ninguém sabe o que é, meneando a cabeça. Parecia acuado, sem saída, do que propriamente, o olheiro não sabia.
— Fala homem, você está sendo avaliado, sabia?
— Sabia, sabia sim...
As lágrimas começaram a rolar pelo rosto bronzeado. Um rosto comum, cara de gente do Brasil. Explica que seu sonho, desde criança era jogar futebol. Que chegou a frequentar escolinha, ingressou no time de sua cidade. Foi logo que se destacou diante dos colegas e amigos. Então, aos quatorze anos aconteceu o inesperado, o impensável. Ele conta:
— Houve um acidente. Estava correndo, tropecei e caí na direção da estrada. Um caminhão passou por cima de minha perna. Precisei usar uma perna mecânica.
O trabalho do olheiro acabou ali, o devaneio de Juliano, aos dezessete anos, também.