Imagem: DebbieEM por Pixabay
Por: Antonio Mata
O barco corria a todo pano para escapar do cerco. Não havia lei nem comiseração. Aliás, tais ausências haviam sido defendidas por eles mesmos em sucessivos encontros e pilhagens. O mar não costuma deixar testemunhas.
De nome sugestivo, “Sem cativos”, o navio negreiro capturado, no interesse de sua velocidade e do grande compartimento de carga. Um terço dos escravos já haviam morrido por conta do barco insalubre e dos maus tratos.
Adaptaram o navio para receber canhões leves. Tendo sido retiradas todas as tábuas internas onde acorrentavam os escravos deitados, da África até a América. Tão logo se fez possível, o “Sem cativos” foi posto ao mar para pilhar ouros navios que circulavam na região.
O “Sem cativos” já havia pilhado considerável quantidade de objetos em ouro, retirados de um galeão espanhol, que em seguida pode prosseguir, mas sem a sua carga. Então retornaram a Port Royal para vender a carga.
Assim, com os porões vazios, suas chances de fuga eram significativas. Apenas a natureza não colaborou.
Só conseguiam avistar um galeão pesado, totalmente armado e lento. Se fosse assim seria ótimo. Entretanto, desconfiavam da presença de um segundo navio, igualmente bem armado. Um nevoeiro repentino dificultava encontrá-lo, e então decidir logo o que fazer.
De olhos bem abertos a tripulação vasculhava os arredores, enquanto o nevoeiro lentamente se levantava. De resto, foi possível visualizar o segundo navio espanhol a uns mil metros, no máximo. Com o primeiro a 1,5 km. Os navios espanhóis fechavam a bombordo e estibordo, ainda que fossem mais lentos.
Logo ao norte, a uns 7 km atrás, estava Port Royal, na ilha da Jamaica. A cidade dos piratas, repleta de bandidos, prostitutas, receptadores de escravos e mercadorias pilhadas no mar. O motivo da existência de Port Royal: carregamentos de ouro e prata.
Decidem prosseguir para o sul, para o mar aberto. Já haviam descarregado e apostavam na sua velocidade e na baixa pontaria dos canhões da época. Característica esta, compensada pela fileira de canhões. A dificuldade era a pequena distância, o que favorecia os espanhóis.
Começaram a afunilar, na direção do negreiro pirata. O mesmo avançava, buscando sair da armadilha, quando sucedeu a primeira carga de 12 canhões, lançando projéteis, bolas de ferro fundido de 16kg, cada.
A primeira saraivada de balas passou por sobre as cabeças dos tripulantes do “Sem cativos”. De antemão, já haviam entendido que a notícia não era das melhores.
A segunda linha de tiro baixou ligeiramente seus canhões, enquanto o segundo navio espanhol se preparava para disparar. O momento era crítico.
Prescot, um velho pirata, acostumado à vida de pilhagens e mortes sobre o mar, estava junto ao depósito de víveres, quando a segunda salva se deu. Oito dos doze projeteis, bolas de ferro fundido, atingiram o navio arrebentando seu costado.
Um deles varou o depósito, fazendo com que parte do barco se deslocasse, como peças que se desencaixavam. A salva de tiros seguinte, arrancou Prescot, levando junto os pedaços do que sobrou do depósito.
O homem havia ficado preso a uma estrutura de ferro que o arrastou para o fundo como um tijolo, sem que Prescot conseguisse tempo para se soltar.
Viu os pedaços do navio e pedaços de corpos humanos ao redor. Depois, viu a água acima escurecer cada vez mais, a despeito de seus esforços inúteis, até que começou a sufocar.
Na superfície, pedaços de madeira e alguns homens que haviam se agarrado a eles eram identificados e recebiam fogo de espingardas, disparados da amurada dos navios que se aproximavam. Era um navio pirata a menos a infestar o mar do Caribe. Todos devem morrer.
Fim de história para incontáveis morticínios da Terra. Início do padecimento de muitos e do resgate de poucos. Não de piratas, a condição individual de matadores, não lhes permite o desligamento do corpo físico com facilidade.
Eram homens envoltos em vibrações densas, fruto de suas próprias mentes tomadas de pensamentos negativados. Isto é o que os retinha em seus corpos. Agora, transformados em sede de seus maiores e repetitivos sofrimentos.
Prescot, terá de vivenciar todo o seu desligamento e retomada da vida espiritual no fundo do mar, a mais de 500 metros de profundidade. A dor constante nos ouvidos, fruto da pressão, o desespero do afogamento, estes os últimos registros mentais de sua existência corpórea que se perdia. Corria o ano de 1685.
Entre as impressões desesperadas do mar, o afundamento, o afogamento, o frio e a dor forte na cabeça, Prescot viveu por 338 anos. Viveu, sim, retido ao leito do mar, preso aos entulhos e imobilizado no mesmo lugar.
Não existe outro pensamento, outra possibilidade que possa ajudá-lo. Apenas a dor constante e infindável, de um animal acuado em sua própria armadilha.
Até que o lampejo de Deus, manifestou-se na mente do homem desesperado. Em meio a escuridão e ao frio reinantes, vislumbrou uma luz suave que se projetava de cima.
A peça metálica e um pedaço de corrente que o retinham foram retirados e pode ver à sua frente, uma água viva enorme, multicolorida e fosforescente. Como nunca vira antes. Teve medo de tocar no animal.
— Prescot, não se preocupe, ela não vai lhe machucar.
— Vai queimar minhas mãos! Vai queimar meus braços! Não posso fazer isso!
— Ela está aqui somente com o propósito de lhe ajudar a sair daqui. Depois irá embora, só isso.
Ouvindo a voz que o orientava tão tranquilamente, Prescot muniu-se de coragem, apoiou-se na água viva gigante e colorida. Então, começou a subir lentamente, até chegar na superfície.
A vida! O fenômeno da vida! As ondas encrespadas do mar; a espuma; o vento; o céu azul.
Tudo tão familiar e agora, incomparavelmente tão belo. Prescot, achando tudo tão fantástico como em um sonho bom, viu a aproximação de duas pessoas que pensou serem anjos, tão diferentes lhes pareceram.
Estes não tocavam nas águas. Isto lhe fez lembrar antiga lição dos tempos de criança. Algo já há muito perdido, nas reviravoltas de sua própria vida.
Apenas lhes estenderam as mãos e o tiraram dali, em um movimento suave de ascensão. Sem se dar conta do ocorrido, em uma velocidade que desconhecia totalmente, estava em um hospital onde era atendido e posto a descansar.
Sem ter noção do tempo decorrido, acordou e viu-se em uma sala simples, na companhia de várias pessoas que recebiam os pacientes daquele hospital, onde podiam contar suas histórias de dor, angústia e solidão.
Deu-se conta de que não apenas ele que tinha vivenciado grandes e incompreensíveis dificuldades. Outros internos também falavam, chorosamente dos conflitos e horrores em suas vidas.
Notou então que procuravam lhes mostrar que, diferente do que pensavam, estavam vivos e a caminho da recuperação plena. Ainda que, por hora, não entendesse com clareza, depois se propuseram a esclarecer a todos.
De forma gentil, alguém lhe dizia:
— Deus existe; o Cristo de Deus existe; Maria Santíssima existe. Não tornes a esquecer.
Pode então retornar à sua enfermaria. Prescot agora sabia que estava entre amigos. Que a vida já não era mais algo que pudesse se acabar. Ele próprio era a testemunha disso. E tudo se resumia nisso, Prescot viu a Luz.