Foto: Hans
Por: Antonio Mata
Reuniu em um recipiente, tudo o que havia sido obtido. Derramou mercúrio por sobre o minério bruto para obter a amálgama.
Acendeu o pequeno maçarico, e aqueceu a mistura até 356 graus Celsius, o suficiente para evaporar o mercúrio e liberar o ouro do grosso das impurezas. Após a purificação com o mercúrio transformado em vapor, as pepitas, agora brilhantes, foram todas colocadas em uma balança de bolso.
A confusão mental havia se estabelecido. No pátio ajardinado, assistentes empurravam pessoas em suas cadeiras de roda, ou as deixavam no jardim. Aquilo era um hospital? Que diabos estava fazendo ali, como foi parar lá dentro?
Levantou a cabeça e prestou atenção, logo adiante. Olhou para o céu, e depois para as flores, para o barranco, para a mata? Olhava para onde, afinal? Lembrava do que, afinal? Ora, havia um rio e muita areia e cascalho, muita argila. Sacudia aquilo tudo sem parar. Para quê mesmo?
Os olhos dos homens se arregalaram, prestando atenção nos dígitos que surgiam na tela de cristal líquido. Então era isso, haviam obtido 178 gramas de ouro.
— Vejam só, mais de cem gramas de ouro, e estamos aqui a menos de duas semanas. — Dizia o branquelo Samuel, por detrás do bigode saliente que quase escondia sua boca.
— Que espetáculo, hein? Para quem veio se meter nesse inferno só pensando em pescar, quem diria que acabaríamos assim, e ainda se faria tanto. Só isso daí já dá para pagar uns dois meses de exploração. — Ria à toa, mostrando os dentes estragados de tanto açúcar, o alegre Ronaldson, por conta do feito meio que inesperado, meio na orelha.
— Ou mais ainda, talvez mais ainda. Vamos ter que levantar toda a situação, e organizar um acampamento que mereça esse nome, para que possamos permanecer e trabalhar com segurança. É pessoal, parece que a gente deu um jeito na vida. — Era a vez de Samuel comemorar.
— Tá certo, agora é alguém retornar para a civilização, vender o ouro e preparar a empreitada toda. Vamos tratar de escrever a história do resto de nossas vidas.
Era Lúcio, quem concluía aquela conversa. O terceiro integrante daquela expedição de amadores. Mais parecendo aquela história do sujeito que chutou uma pedra, saiu xingando todo mundo, para depois descobrir que era um diamante.
Residentes em Goiânia, Samuel era servidor público. Havia conhecido Ronaldson e Lúcio nos tempos de escola. Ambos eram operários em uma fábrica de alimentos.
A ideia de seguir para o interior, não era propriamente nova. Surgiu aos poucos, ao longo de pelo menos dois anos. O propósito era a pesca esportiva, um assunto do qual muito pouco sabiam. Ainda que o assunto fosse lembrado com frequência por Lúcio, a ponto de se tornar chato.
Nos tempos de adolescente, o mulato, alto e forte era bom zagueiro. Sonhava com os campos de futebol do sudeste, e poder jogar no Maracanã, para que toda cidade de Goiânia pudesse assistir. Sonho de garoto é assim mesmo, com a mesma facilidade com que veio, se foi. As necessidades da família eram bem mais urgentes. Tornou-se técnico em caldeiras, e a exemplo de seu pai, foi trabalhar na indústria.
Lúcio se informava através de sites de pesca na Internet. Não conhecia o material; nem peixes; nem técnicas; nem coisa alguma. Porém, com o tempo foi reunindo relatos e dicas de pescadores profissionais. Aos poucos foi convencendo os amigos de que aquilo poderia muito bem fazer muito sentido.
Foi Samuel que, lendo sobre a Amazônia, em um dos muitos sites e blogs que tratam do assunto, começou a se interessar pelo tal de ouro de aluvião. Uma característica da região, trazer ouro rio abaixo pela força das águas, e depositá-lo onde a natureza melhor lhe aprouvesse, ao longo do tempo.
Isto pode muito bem, estar acontecendo, desde o início do soerguimento da Cadeia dos Andes, a uns 65 milhões de anos passados. Tudo muito misturado com sedimentos trazidos pela chuva, camada após camada, ano após ano.
Aquele tipo de pessoa que “vai na onda”, Ronaldson não tinha preferências. Sério candidato a diabetes, pelo gosto excessivo por doces, gostava dos amigos e aceitava de bom grado as propostas dos demais.
Quando concluiu a escola básica, amargou três anos de desemprego. Foi Samuel que o ajudou a se interessar e a ingressar nos ofícios de indústria. Dependesse do pensamento do próprio Ronaldson, chegaria aos 40 anos, desempregado e vivendo na casa dos pais, sem enxergar nisso nada que se pudesse chamar de problema.
O grupo de amigos interessava-se cada vez mais pelas histórias de Lúcio, e começaram a levar a sério, a ideia de participarem de uma excursão de pesca. Combinaram começar pelo Araguaia, por ser mais perto. Foi um sucesso e todos gostaram da iniciativa.
Se a excursão no rio Araguaia foi conduzida por especialistas, ofertadores de pacotes comerciais, gente da área do turismo ecológico e turismo de aventura, conhecedores da região e do apoio necessário. Isso não se poderia dizer da empreitada amazônica.
Era o próprio Samuel que continuava matutando, com aquela história de seguirem para Rondônia, atrás de ouro. Se acertassem a mão, os pés e o leme também, poderiam encontrar o vil metal. “Tanta gente conseguia fazê-lo”, argumentava Samuel.
Finalmente, decidiram acompanhar Samuel e descer o rio Madeira, adentrando o estado do Amazonas, em pequeno barco motor, que lhes permitisse explorar os rios que desembocavam do lado esquerdo, na montante do rio. Nesta faixa de água, poderiam subir e adentrar os rios menores a norte.
Samuel acreditava que dessa forma, se atenderia melhor a todos. O caminho já havia sido feito incontáveis vezes, na cabeça dele e em cima de um mapa desatualizado. O que por si só, não dizia praticamente nada. Se o ouro existia, até aquele momento, era só em sua cabeça.
Desde que o mundo é mundo que as pessoas comuns viajam para conhecer algo, porém o desejo de retornar ao local, é algo particular e muito pessoal. O retorno não é só uma questão de vontade, mas de inspiração, oportunidade e propósitos. É o exercício da busca, e o ser humano, um buscador, um explorador por excelência.
Reuniram suas economias e partiram rumo a Porto Velho, de onde desceriam o rio Madeira. Colheram as informações que fossem possíveis, mas o que importava mesmo era a intuição. É ela que haveria de guiar ao sucesso, ou à falência. Estavam dispostos a explorar pelo menos três, ou quatro rios menores da margem esquerda.
Samuel acreditava ser este o caminho natural das águas, por efeito da gravidade, com o Madeira descendo calmamente de sudoeste, nas cabeceiras do grande rio, rumo a nordeste, na Amazônia central, até encontrar o rio Amazonas. Entendia que este era o sentido da sedimentação que estava sendo trazida do sopé dos Andes.
O aspirante a explorador em tempo de férias, se apresentou de corpo e alma, na busca do tão sonhado “caminho do ouro”.
Se iniciava a excursão que marcaria de modo profundo, a vida dos três amigos pescadores amadores, agora com ares de exploradores. A grande pátria das águas não costuma entregar seus segredos, sem mais, nem por quê. Com o tempo, todos saberiam disso com muita clareza.
O barco conduzia pequena canoa de alumínio, que se mostraria muito acertado, na hora de se subir pelo número crescente de pequenos igarapés, que desaguavam no rio, afluente do grande Madeira. De qualquer modo acabavam se tornando, por demais rasos. Porém, não era a preocupação principal, e sim a formação dos seus sedimentos.
Samuel soubera que a região do Madeira que estava buscando, geologicamente, havia se formado no Pleistoceno, entre 2,5 milhões de anos e 11 mil anos, trazendo ouro em seus sedimentos. Pensava ser um bom começo.
Agora, se o ouro foi depositado a 2,5 milhões de anos, ou a 25 mil anos, e onde foi depositado, esta resposta a Deus pertence. É mais otimista acreditar que continua depositando até hoje. Para quê serve mesmo uma bomba de sucção?
Se houve tanto trabalho para colocá-lo lá naquele lugar, nada mais natural do que querer buscá-lo, assim pensava Samuel, buscando uma autorização quase divina para fazê-lo.
Vamos por partes. A última glaciação empurrou os solos de ótima qualidade, do atual Canadá, para dentro das fronteiras do atual Estados Unidos da América, criando toda a pujança agrícola norte-americana.
Um vulcão trouxe à superfície, enormes quantidades de diamantes na região de Kimberley, no Cabo Setentrional, na África do Sul, fazendo a riqueza sul-africana.
A formação da cordilheira andina, empurrou muito ouro de aluvião para a Amazônia brasileira. Talvez assim fique mais fácil entender o que se passava na cabeça de prego do Samuel. Era doideira, mas tinha respaldo na geologia. Quem não se lembra de Serra Pelada? Começa como doideira, até o dia em que dá certo.
Explorar os afluentes da margem esquerda? Aí vai chute; doideira; burrice; inspiração. Pode ser até mesmo a combinação dos quatro.
Escolhera o início da exploração a partir de 16 de dezembro, justamente para aproveitar o período em que o rio não está tão cheio na região, cujo clímax se dá em abril, e assim poder observar mais e melhor. Trabalhariam em igarapés, os canais menores de modo que a profundidade não o preocupava.
Apostava e contava com isso, pois também era bem verdade que a maior coluna d’água no Madeira, dificultaria o rastreamento do leito do rio. Não teriam o dinheiro, e nem os equipamentos para fazê-lo.
Saindo de Porto Velho, desceu a embarcação rumo a Humaitá, a primeira parada dos exploradores. Samuel sabia que teria que contar, acima de tudo com sua própria intuição, além de um punhado de informações que obtivera. Não se acha a localização do ouro nos jornais. Quando surge a notícia, é porque um monte de gente já chegou até lá, e já estão garimpando.
Fosse por ganância ou por burrice, o fato é que Samuel queria seu próprio leito de lavra. Não queria ficar para trás, nem chegar depois dos demais.
Ao longo do dia, passando lentamente, não encontrou nada no trecho percorrido que justificasse maiores esforços. Prosseguiriam pelo Madeira, pela extremidade esquerda do canal.
Foi logo após a localidade conhecida como Índio Brasil, e antes de chegar a São Domingos. Qualquer coisa em torno de 220 a 280Km de distância de Humaitá. Se a intuição de Samuel prestava para alguma coisa, nem ele sabia, mas foi por ali que suas orelhas começaram a tremer. Era chegada a hora de adentrar os pequenos canais.
Em uma imensidão de água e selva, supunha separar uma faixa de 60km, aproximadamente, e apenas a margem esquerda. As melhores esperanças de Samuel e seus exploradores, não davam espaço para dúvidas, era simples assim, ou dava tudo certo, ou dava tudo muito errado.
Somente com imagens óticas de satélite para se guiar, e nenhum tipo de mapeamento mais apropriado, realizou explorações em três canais distintos, nada encontrando. A floresta encobre os pequenos igarapés.
O lugar era cheio de lagos em forma de meia lua, antigos meandros, curvas do Madeira que com o tempo mudava seu leito de lugar. Cada curva, cada lago, cada igarapé conduziam os sonhos e as ilusões de riqueza de Samuel e seu grupo. Estes meandros, antigos caminhos do madeira, podiam muito bem possuir ouro. Assim rezava o Manual do escoteiro mirim da cabeça do Samuel.
Naquele monte de ilusões, só uma coisa poderia fazer sentido, e ainda assim muito vagamente. Achar um paleocanal, um canal antigo, vindo dos Andes, que estava soterrado, e que com o tempo foi trazido à luz pelo próprio vai e vem das águas. E tinha ainda que achar o ouro naquele trecho.
— Samuel, e agora como vai ser? Não estamos achando nada, e já cobrimos o terceiro canal como você queria. Entrar pela mata para chegar nos lagos, nem pensar, isso aqui é um inferno de tão perigoso.
Samuel sabia da preocupação honesta de Lúcio e Ronaldson. Estes lagos costumam ter muitos jacarés, e toda sorte de bichos dos quais só conheciam pela Internet. Ninguém ali conhecia a floresta. Aquilo poderia não dar em nada, e de qualquer modo, nada de novo teria acontecido.
A maioria destas incursões, não encontra coisa alguma mesmo. Entretanto, entendia que ainda era cedo para desistir. Insistiu junto aos demais para percorrerem mais um canal.
— E aí gente, vão arregar logo agora? Vamos continuar por mais um canal, só mais um para adentrar. Já estamos aqui, é só bamburrar mais um pouco.
Ainda que a contragosto, pois aquilo tudo estava ficando bem cansativo, perigoso; cheio de jacarés; sucuris e de mosquitos; porém os demais acabaram concordando.
Adentraram mais um canal e percorreram cerca de 8Km. Iniciaram a coletar amostras do leito, que eram então garimpadas à mão e bateia. As amostras de areia, cascalho e argila estavam se amontoando, sem sucesso, e com os homens resmungando. Quando de repente, aconteceu.
Certos caboclos dizem assim, “veio do nada”. Ora, como pode ter vindo do nada, se estavam procurando? Excesso de entusiasmo.
Um brilho ínfimo, na realidade meio fosco, era visível do fundo da bateia, no meio da areia e barro, nas mãos de Samuel.
Meneou cuidadosamente a bateia, até escorrer toda areia e argila. Lá estavam aquelas três pedrinhas. Parecendo mais exatamente, três ciscos de tão pequeninas que eram. Para o risonho Samuel, pareciam três tijolos, tamanha a sua satisfação.
— Olha aqui, olha aqui, eu falei! Olha aqui!
Lúcio e Ronaldson se amontoaram junto à bateia para ver o ouro de aluvião. O motivo de incontáveis aventureiros se meterem rios adentro, por anos a fio, atrás do vil metal. Todos comemoravam, então.
— Agora deu para entender que não podemos parar? É preciso prosseguir e subir mais sedimento. Vamos recolher mais e ver até onde se pode chegar, e então iremos embora. Só não vai ser de mãos abanando.
— Mãos à obra Samuel, a gente tá contigo.
Dia após dia, até quase esgotar seus mantimentos, recolheram os sedimentos do raso igarapé. No ponto da lavra, só havia uma coluna com menos de dois metros de água. Um mergulho rápido para encher a lata a ser puxada para dentro do barco, e retornar em seguida. Os grânulos microscópicos começaram a se misturar com pepitas de um, dois, e até três milímetros.
Foi assim dessa forma rudimentar que Samuel, Lúcio e Ronaldson, adentraram pela primeira vez, a vida de garimpeiros.
Os grânulos de ouro estavam sobre a balança de bolso. Os olhos dos homens se arregalaram, prestando atenção nos dígitos que surgiam na tela de cristal líquido. Então era isso, haviam obtido 178 gramas de ouro.
Por orientação de Samuel, fariam um pequeno flutuante junto ao barco, para receber equipamentos e maior quantidade de sedimentos. Ficaria preso em tambores vazios, que Samuel traria até o local. No barco, Samuel ficou encarregado de retornar a Porto Velho e vender o ouro, adquirir víveres e os equipamentos, e então retornar à lavra do ouro. Precisou de três dias para ir e voltar com os suprimentos.
Trazia consigo um motor estacionário; uma bomba de sucção; os tambores; lona; uma motosserra, combustível, mantimentos e miudezas. Por hora seria o suficiente.
Em Porto Velho, notificara as famílias quanto a mudança de planos. A viagem que seria voltada para a pescaria havia ficado para trás. Haviam encontrado coisa melhor. Samuel não entrou em detalhes, mas assegurou que voltariam melhor do que estavam quando da partida. Era a realização de seu sonho, uma lavra sem concorrência e desconhecida.
Ronaldson, gostava de pegar a canoa e percorrer as áreas adjacentes na busca de alguns pescados para melhorar a alimentação à base de enlatados e grãos. Eventualmente conseguia pegar alguma coisa.
Noite alta, os três homens, depois de um dia extenso de trabalho, haviam adormecido rapidamente. Foi por volta de uma hora da madrugada que um barulho chamou a atenção de Lúcio. Como se um tronco solto, uma tora, estivesse se chocando com o casco do barco, ancorado no raso igarapé. Como o som cessou, não deu maior atenção e retornou a dormir.
Já às 05:30h, levantaram-se logo, para aproveitar a luz do dia e retomar os mergulhos, acionando a cascalheira. A lavagem do sedimento estava se mostrando promissora, era preciso aproveitar ao máximo os mergulhos.
— Lúcio é sua vez de descer e pegar cascalho hoje. Eu mesmo já mergulhei que chegue. Dizia Ronaldson ao companheiro. Naquele dia Ronaldson e Samuel ficariam na lavagem dos sedimentos na cascalheira, onde o ouro aparecia.
Seis meses se passaram, e os antigos 178 gramas de ouro haviam se transformado, rápida e gradativamente em 280 gramas diárias, em média. A notícia aguçava a ganância dos homens. Estavam se tornando ricos a olhos vistos. Os 48 quilos em ouro granulado atestavam isto. Um carregamento em torno dos 12 milhões de reais. Os homens queriam mais.
Trabalho monótono sobre o barco, trabalho monótono abaixo do barco. Operar a mangueira da bomba de sucção aprofundava o canal e exigia o uso de máscara de mergulho e tubo de oxigênio para a respiração.
Não demorou, e o canal estava sendo alargado, e a água que logo no início se apresentava na cor de chá, agora assumiu o amarelão das argilas postas em agitação no processo de sucção do leito. O mergulhador passou a não avistar mais nada, era simplesmente manejar e aspirar o tempo todo.
Foi no período da tarde quando Ronaldson, na canoa, se afastou da área de garimpo, na expectativa de encontrar algo para pescar. Fora das águas amareladas pelo turbilhonamento da argila, o leito, a apenas dois metros de profundidade, se tornava-se visível mais uma vez.
Atento à pesca, não foi difícil a Ronaldson, notar uma sombra escura que passava por debaixo da canoa, calmamente, como quem passeia pelas águas. Só um detalhe, apenas um detalhe, foi o suficiente para apavorar Ronaldson. O tamanho do peixe que vagava por ali.
Deslocou-se lentamente e retornou à balsa, onde o serviço prosseguia com Samuel sozinho na cascalheira.
— Ronaldson, acho bom você parar com essa história de pescaria, pois tem muito serviço aqui para se fazer.
— Samuel, você não sabe o que foi que eu vi. Era um peixe enorme, assustador de tão grande.
— Devia ter pescado ele. Disse Samuel.
— Não é brincadeira, é um peixe, um bicho enorme, pude ver quando passou por debaixo da canoa.
— Olha, esquece isso e vem cuidar do serviço, homem.
— Samuel! Era Ronaldson, já gritando, o que era incomum.
— Eu estou dizendo que vi um monstro do tamanho da canoa! O Lúcio está lá debaixo d’água. Entendeu agora?
O grito de Ronaldson trouxe Samuel à razão, fosse o que fosse, era preciso averiguar. Foi obrigado a chamar Lúcio de volta, um tanto quanto a contragosto, pois a cascalheira teria que parar.
Diante da narrativa do amigo, Lúcio lembrou do que vinha notando à noite.
— Tem alguma coisa que fica se chocando com o barco e a balsa durante a noite, só não consegui descobrir o que é.
Lúcio e Ronaldson estavam visivelmente impressionados com as suas observações sobre aquele rio, e não eram nada boas. Isto preocupava Samuel. Achava que precisava demovê-los daquelas ideias a respeito de monstros do rio. Aquele tipo de coisa que se mostrava na tv e na Internet, estava fazendo a cabeça de seus dois exploradores.
— Lúcio, Ronaldson, vamos aliviar a tensão e pensar só um pouco. Vejam só, nós estamos aqui a mais de seis meses, e estamos fazendo muito dinheiro vivo. Se esse monstro quisesse pegar alguém, ora, ele teve seis meses para fazê-lo. Deu para entender? Ele não pegou ninguém, logo o problema dele, não é conosco. Já se vão seis meses que tem sempre alguém debaixo d’água, e nada aconteceu. É só isso.
Os dois amigos ficaram cismados com aquela situação. Porém, as considerações de Samuel era bem sensatas. Todos queriam pegar mais ouro, e até ali tinham trabalhado sem problemas. Só havia uma questão em aberto. Foi Lúcio quem a levantou.
— Samuel, e se esse bicho só resolveu aparecer agora?
— Ora Lúcio, você mesmo disse que ouvira as pancadas no barco. E isto já faz uns dois meses, esqueceu?
— Eu sei, eu lembro Samuel. Só que as pancadas ocorriam sempre à noite. Ronaldson viu o bicho de dia. Outra coisa, ele é do tamanho da canoa. Isto quer dizer que possui pelo menos quatro metros, ou mais.
— Nunca vi um peixe tão grande.Completou Agora era a vez de Samuel entender que a contra-argumentação de Lúcio era bem verdadeira. O monstro de Ronaldson estava circulando durante o dia, momento em que sempre havia alguém debaixo d’água.
— Está bem, eu estou entendendo vocês dois. Vamos fazer o seguinte. Esta semana eu fico no mergulho, combinado assim? Vocês vão ver que não vai acontecer nada. Outra coisa, nós ficaremos aqui por mais trinta dias e depois vamos embora. O que acham?
Lúcio e Ronaldson se entreolharam. Consideravam uma precipitação de Samuel, tanto querer mergulhar, como prosseguir por mais trinta dias.
A verdade é que cada um possuía o seu quinhão de razão. A resposta não seria dada assim tão fácil. Porém, havia um fator de preponderância, aquele que inibe o homem sensato e o empurra, rumo ao precipício, à ganância.
Sim, o risco era real, mas a proposta de Samuel tinha lá suas vantagens. Acrescentaria mais uns nove quilos de ouro ao carregamento, pela média, e ainda Samuel se apresentava para ficar na sucção do leito do rio. Os dois acabaram cedendo.
Samuel passou a primeira semana cuidando de empunhar a mangueira de sucção. Naquele barro amarelo diluído na água, não era possível enxergar quase nada. Por muito favor, o mergulhador enxergaria uns 50 ou 60 centímetros.
O canal havia se tornado cor de argila, amarela quase vermelha. Fosse o que fosse agora teria liberdade para circular sem ser visto. Samuel muito pouco se importava com a crendice dos amigos, até porque, a semana terminou sem nenhum maior incidente que comprometesse a garimpagem.
Chegava a vez de Lúcio substituir a Samuel na sucção do leito. Naquela manhã, colocou o traje de neoprene e desceu para o trabalho. Os dias se seguiam sem nenhuma anormalidade.
Em uma certa manhã, estava trabalhando, e já próximo de completar a sua semana, quando, ao subir o suficiente para por os olhos fora d’água, por trás da máscara, pode ver com clareza uma nadadeira dorsal se deslocar em velocidade, na direção de quem deixa o canal. Olhou adiante, e a pouco mais de cinquenta metros, pôde avistar Ronaldson, de pé sobre sua canoa, fazendo o quê, só ele sabia.
Lúcio sentiu o perigo, e se pôs a gritar a pleno pulmões.
— Ronaldson, cuidado, cuidado! Tem uma coisa indo para o seu lado, cuidado!
Ronaldson ouviu, e sorriu. Talvez por se julgar seguro sobre a canoa. O receio de Lúcio se mostrou bem verdadeiro.
O peixe enorme se chocou contra a canoa. Foi a conta, Ronaldson balançou desequilibrado e estatelou-se dentro d’água. Como o canal era raso, apoiou-se facilmente no fundo e impulsionou o corpo para cima, na direção da canoa. Logo estaria em segurança.
Lúcio pôde enxergar o episódio que rapidamente se sucedeu, enquanto Ronaldson procurava apoiar as duas mãos e jogar o corpo para dentro da canoa e para a segurança.
Quando conseguiu jogar o corpo para o alto e para a frente apoiado nas mãos. Uma bocarra se abriu e o pegou pelas pernas. A boca enorme de um peixe gigante. Ronaldson não teve tempo sequer de gritar. Tentou se agarrar na beira da canoa, porém foi tudo inútil. E tudo muito rápido, em dois segundos, a cena se completou, e Ronaldson se perdeu, à luz do dia.
Virou-se apenas a tempo de ver Samuel de pé sobre a balsa. Agora os dois amigos, perplexos, se encaravam. Finalmente, Ronaldson tinha razão.
Pelo resto do dia, os dois homens se viram transtornados. Não se falavam, nem faziam coisa alguma. Finalmente, já à noite, Lúcio tomou a iniciativa de buscar esclarecer as coisas.
— Então Samuel, o que pretende fazer? ainda faltam cinco dias para completar o mês. Vai prosseguir, vai abandonar? Você é quem sabe, faça o que achar melhor.
— É sim, faltam somente cinco dias. Em todo caso, veja que o peixe monstro não deve voltar mais.
Lúcio estava pensativo com os últimos acontecimentos.
— Tem uma coisa que não entendi. Por que ele passou por mim e não me atacou?
— Talvez, pela presença da mangueira de sucção nas suas mãos. Ou por conta do barulho, ou pelos dois. Eu não sei.
Talvez Samuel tivesse razão, quanto a este aspecto, que poderia muito bem oferecer proteção ao mergulhador. O que não se queria comentar, era de fato o obvio. Ronaldson havia sido devorado, e isto certamente afastaria o monstro por algum tempo. Provavelmente, mais de cinco dias? Quem sabe?
A ganância, sempre presente, sempre decidindo a sorte dos pobres homens, por inteligentes que se possam considerar.
Os homens resolveram prosseguir e completar o mês estipulado.
Motor ligado, bomba ligada, afinal era só mais um pouco. Gozavam de uma relativa segurança, por conta da morte de Ronaldson, e poderiam sair dali para a riqueza. Se aproximavam dos 50 quilos de ouro, e dos 14 milhões de reais. Para um servidor público que vivia com 5700 reais, e um operário que ganhava 3800 reais, quanta diferença. Faziam planos de fazer uma doação à família do amigo. Plano este que nunca será cumprido, nem por Lúcio, nem por Samuel.
O trabalho prosseguia conforme previsto e não havia mais o que se temer. Era tudo certo e líquido, completar o mês e voltar para a civilização, longe das cobras, dos jacarés e daquele troço. Afinal, o que era aquilo?
Remexendo algumas coisas na memória, conversas que teve com homens da região, Lúcio enfim descobriu, e dizia a Samuel.
— É a pirarara. Um peixe enorme que habita estas águas. Só conheciam um exemplar de três metros, que fora capturado. Este aqui tinha mais de quatro, e ninguém o pegou ainda. São peixes de águas profundas. Não sei o que fazem aqui.
Parou um instante para pensar.
— Esse peixe só abita os canais profundos. É por isso que sabe pouco sobre eles. Não sei o que o bicho está fazendo aqui.
Samuel olhava para o amigo, e dizia.
— Monstros do rio, é assim que os chamariam na TV. E prosseguiu.
— Fica frio Lúcio, ele já fez o que queria. Vamos pegar o ouro logo, e vamos embora.
Completar o serviço e tomar o rumo de Porto Velho. De lá embarcar de volta à civilização, longe de monstros do rio e de toda sorte de dificuldades que a selva possa oferecer. Os dois homens exaustos de um dia de muito trabalho, caíram no sono imediatamente.
Com o dia raiando, não se deram ao trabalho de levantar-se tão cedo. Foi quando Lúcio, ainda dormitando, teve a atenção despertada por um ruído oco, diferente do marulhar das águas contra o barco. O suficiente para acordar e lembrar rapidamente daquele som conhecido.
— Samuel, acorda. Acorda Samuel!
O amigo acorda assustado com a fala de Lúcio.
— Que foi isso? O que foi que houve?
— Tornei a escutar aquelas batidas no casco do barco, e não era o barulho das águas. Tem algo dentro do canal tocando no barco.
— Como Lúcio, como? Você mesmo viu o bicho levar o Ronaldson. Fica frio cara, você mesmo viu.
Lúcio já de pé, prestava atenção no amarelão das águas em volta da embarcação e do flutuante. Haviam escavado em um formato de oval irregular, durante o processo de sucção do leito do igarapé.
Aquele ponto do canal, agora tinha mais de 70 metros de largura, por mais de 150 metros de comprimento, com uma profundidade próxima de 3 metros. A sucção havia avançado na direção das terras ao redor do igarapé. A cratera, agora era visível de cima, e a língua de água amarela, havia substituído as águas pretas da decomposição vegetal. A extração fora denunciada por si só.
— Cara se o seu problema é não querer descer, deixa que eu mesmo faço isso sozinho. Já fiz antes, faço de novo.
Samuel comeu alguns biscoitos, e já foi tratando de pegar os equipamentos para mais um mergulho, sem dizer mais nada. Em seguida, ligou as máquinas e saltou nas águas turvas.
Sugou as terras ao redor por todo o dia, e no dia seguinte também. Queria provar ao amigo que aquela história de pancada no barco era só cagaço. Que ali já não havia mais bicho nenhum. Ao que parecia, Samuel tinha razão.
No terceiro dia, Lúcio, desmoralizado nas suas convicções, apanha o equipamento de mergulho e se prepara para descer.
— Hoje vai ser o meu dia de bamburrar. Já estamos acabando mesmo.
— Assim é que se fala amigão. Vai descendo que eu já te ajudo. Vou deixar tudo ligado e vamos já bamburrar.
Lúcio mergulha nas águas barrentas e fica ao lado do flutuante, aguardando Samuel ligar o motor estacionário e acionar o compressor.
— E aí, vai ligar ou não vai?
— Peraí que esse troço não tá querendo pegar, peraí um pouco.
Lúcio aguarda pela solução do problema.
Como Samuel demorasse a colocar o motor em movimento, virou-se no intuito de avisar ao amigo para sair da água e aguardar pela conclusão do reparo.
De pé no flutuante, o que Samuel viu, a uma visada por cima da cabeça de Lúcio, foi um marulhar diferente das águas, uma ondulação que se encaminhava na direção do amigo.
Quando baixou a vista, já encontrou os olhos de Lúcio, atentos à expressão de terror nos olhos de Samuel. Ninguém possuía mais dúvidas. Se o demônio que levou Ronaldson não voltou, era evidente que existia outro.
O que se seguiu naqueles poucos segundos foi traumático e horripilante. Digno do melhor dos filmes de suspense e terror, só que agora era real.
Samuel saltou buscando alcançar as mãos do amigo e puxá-lo de dentro d’água. Segurou com força.
Alguma coisa abocanhou Lúcio na altura da cintura.
— Socorro, Samuel! Socorro, socorro! Me tira daqui!
A força do monstro, tracionando no sentido contrário, puxou Samuel para dentro do canal barrento. Segurando em uma das mãos de Lúcio, Samuel parecia um peixe fisgado em uma grande isca, e foi então arrastado.
Até que o movimento cessou.
Foi arrastado dez metros, foram vinte? Difícil saber, subiu à tona segurando a mão do amigo. Puxou-o pelo braço, só para ver o rosto de pavor e sem vida de Lúcio. Pôde ver que segurava apenas uma parte do tronco do amigo, até a cabeça.
Regressa ao barco em estado de choque. Se encolhe na balsa e lá permanece. Algum tempo depois, solta a embarcação que estava presa à balsa, e manobra no sentido de deixar o canal.
Quando retorna ao Madeira, inicia uma curva à direita para tomar o rumo de Humaitá e Porto Velho. É quando dá de frente com quatro barcos no sentido contrário.
— E aí parceiro! É aqui o caminho do ouro?
Samuel avança em silêncio.
— Ei louro, fala aí cara. É o caminho do ouro? Grita outro.
Samuel avança tal e qual um boneco atrelado ao timão.
— Deixa pra lá, cara! A gente já encontrou, ô babaca!
— Queria só pra você, né louro fino? Agora tá fumado! Vem um monte de gente pra cá, seu babaca! Gritava outro.
As quatro embarcações adentraram o canal amarelado que denunciava tudo.
Samuel seguiu seu caminho e voltou para Goiânia. Traumatizado, é a condição de quem sofreu um trauma. Não tem nada a ver com burrice. É claro que os 52 quilos de ouro estavam com ele. É óbvio que os transformou em 14 milhões de reais.
Endrigo, pai de Samuel, recebeu o filho e o ajudou nas operações de venda do metal, tendo tudo sido depositado em conta bancária no nome de Samuel. O problema é que seis meses depois, Samuel não conseguia retornar de sua depressão, por mais que se buscasse apoio psicológico e médico psiquiátrico. Nunca contou a ninguém como os amigos morreram.
Ante às cobranças das famílias de Ronaldosn e Lúcio, Endrigo achou por bem, de posse de um laudo médico, obter na justiça que o filho fosse considerado incapaz de exercer os atos da vida civil, tornando-se Endrigo o curador de Samuel. Os valores em conta bancária, foram então divididos em três partes iguais.
Quando completou o primeiro ano sem nenhuma melhoria no quadro de saúde mental do filho, Endrigo, aconselhado pelo médico, internou seu filho em uma casa de repouso, de tal forma que pudesse receber cuidados especiais permanentes.
A internação foi o ato final dos anos de aventura de Samuel. A mente, agora confusa, a fala com frequência desconexa. Os pensamentos chegavam para depois partir, para então retornarem novamente, com as mesmas dúvidas, as mesmas perguntas e angústias. Sempre o mesmo silêncio.
Cenas de monstros povoavam sua mente, em ataques súbitos de pânico, onde era contido à custa de fortes doses de sedativos injetados às pressas.
— Fica na canoa, fica na canoa! Tem que ficar na canoa! Lúcio sai, sai daí depressa! Sobe na balsa, sobe no balsa!
Endrigo e Laura, seus pais, assistiam aquele drama íntimo, aos prantos, incapazes de ajudar.
Havia o dinheiro. Lembrava de uma alta soma em dinheiro. Para quê mesmo? Onde estava todo aquele dinheiro? Já não havia conexão entre as ideias. Ou, já não existia o interesse, em que elas se conectassem novamente.
Ao lado da cama de Samuel, amarrado pelos pulsos, de modo a deter sua agitação, até que adormecesse, dois homens estavam de cabeça baixa.
Duas figuras tristes e chorosas que faziam companhia ao interno da casa de repouso, sem que nenhum dos presentes pudessem vê-los, ou notar sua dor. Estavam culpando Samuel, o idealizador da empreitada? Estavam lá, solidários em sua loucura? Amigo, até debaixo d’água. Não é assim que dizem?
Haviam subtraído à floresta, aquilo que mais desejavam, e depois transformado em dinheiro. Afinal, dinheiro é bom, difícil de se obter, e todos querem. Não é mesmo?