Por: Antonio Mata.
O burburinho intenso, um vozerio interminável e intenso, misturado com gritos e gemidos. Uma discussão que nunca termina, uma dor que nunca passa.
Bobagem pensar em um propósito. Simplesmente não havia. Não em mentes tomadas pelo horror e pela dor. Ninguém se entendia. Na noite mais escura que o breu. Lá fora é noite. Onde será dia?
Somente algo que penetrasse naquelas almas doentias, poderia lhes dar sentido. Algum propósito. Fazer o quê, lembrar do quê?
Tudo muito desconexo e distante. Falavam ao léu, de qualquer coisa. Gemiam e gritavam assim. Literalmente, às paredes. De vez em quando, uma fagulha, quase nada.
Um fiapo de lembrança, um pensamento que dava ares de prender a atenção dos estropiados. Talvez crescesse, talvez se apagasse em seguida. Iria concorrer com o barulho reinante.
Contudo, nas cabeças recostadas na parede da gruta, na pedra úmida, às vezes surgia um alento em meio a confusão. A fagulha tinha anseios de incendiar.
— Lembrei, lembrei! Eu lembrei, lembrei sim! É hoje, é hoje!
Foi o suficiente.
— É hoje o dia da nossa morte!
— É hoje o dia da desgraça! De se viver aqui, nessa perdição!
— É hoje, é hoje! O dia da lama, do frio, da cabeça doída e da imundície que está em todo lugar! É hoje, eh, eh, eh...
Os lamentos se multiplicavam e rapidamente estavam enquadrados no burburinho e da gritaria reinante, sem que ninguém entendesse mais nada. A fagulha, que custara tanto a surgir, parecia lentamente se apagar.
— Escutem, escutem! É hoje, escutem! Parem de falar!
— É só você que fala? É só você que fala? É só você que fala?
Outro mais adiante, gritava.
— Já falou demais! Já falou demais! Agora tem que ouvir!
— Escutem vocês, é hoje o dia!
— É hoje, hoje o quê? Para fazer o quê? A gente vai sair daqui desse inferno? É para sair, vamos sair?
— É hoje, é Hoje, é hoje! — Vozes incontáveis, dentro e fora da gruta, gritavam. Repetiam como um lamento que avançava como uma onda. Uma brincadeira de péssimo gosto, entre choros e urros de desespero. A turba indigente, interagia na escuridão.
Desistiu de ter atenção e balbuciava para si.
— Acontecia assim. Eu me lembro. Era criança ainda, eu me lembro. A noite de Natal. A casa enfeitada, as pessoas reunidas. Minha família era muito grande. Ainda me lembro.
A lembrança clara de algo que lhe fora marcante na vida, fez com que novas lembranças e sentimentos lhe invadissem. Esqueceu momentaneamente a escuridão, as vozes, a gruta. A água fétida e fria que não parava de escorrer. Pôs as mãos nos ouvidos para aproveitar melhor aquele sentimento de quietude.
Depois de anos a fio, acalmou-se pensando nas lições simples que recebera de sua mãe e de como aquele dia, ela considerava especial. A primeira a querer reunir a todos. Deprimido, a cabeça doía por demais. Encolheu-se e se pôs a chorar.
— Como pude esquecer, como pude? — Perguntava a si próprio.
De cabeça-baixa e olhos fechados, custou a perceber a luz que invadia a gruta, mostrando seus infelizes inquilinos e toda a sujeira reinante por entre a lama.
— Mariano, Mariano. Levante-se, viemos lhe buscar. Não pensava que era o único a se lembrar dessas noites, não é mesmo?
Ainda transtornado, Mariano colocou-se de pé. Perguntava de seu visitante.
— Então é isso mesmo. É noite de Natal. Hoje é a véspera do dia 24 de dezembro. Não é?
— De fato, Mariano, hoje é o dia 17 de julho.
Mariano não entendeu.
— Não poderia ser pelo menos novembro? Perguntava desolado.
— Não se preocupe. Logo será novembro, depois dezembro. Foi tua lembrança que nos trouxe até aqui. Vamos embora, ainda há bastante tempo para rever muita gente. Quem sabe, não consegue reuni-los para o Natal?
Deixou a gruta por entre as luzes de sua escolta luminosa. Ainda não era véspera de Natal, mas por hora, não tinha tanta importância. Estava abatido, mas satisfeito do mesmo jeito.