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terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

Quando a família cresceu

                                                                           

                                                                                                                                             Foto: Blaz Erzetic

Por: Antonio Mata

Os pés doíam, e as costas também, era tarde, já beirando a meia noite quando conseguiu pôr os pés dentro de casa. Repositor de supermercado não casava bem com a vida que tinha imaginado, mas se casou com a vida que podia ter.

Aposentado, com os filhos já fora de casa e cuidando de suas vidas, viu-se no compromisso de complementar a aposentadoria ínfima à qual fez jus. História comum de uma vida comum, entrava devagar e em silêncio, apenas por hábito, já que Maíra dormia como pedra.

O banho era rápido, a refeição simples já tinha sido feita no local de trabalho. Cai pesadamente na cama, lembrando um antigo desenho do pato Donald. A mesma cara, o mesmo sono, os mesmos gestos, era tudo igual. Se fosse só pela lembrança, já estaria tudo muito bem.

Em certas ocasiões, certos dias ou noites, surgem situações com aquele jeitão de cenário inesperado, imprevisto, típico de enredo de desenho animado, ou mesmo de comédia pastelão. Vai acontecer alguma coisa. Tem-se a viva impressão de que o capeta o escolheu a dedo.

 

Quando a família cresceu.

O casal prosseguia com a conversa agitada, repleta de detalhes e pormenores, afinal, era preciso dar um jeito naquilo, antes que tudo ficasse ainda pior. Pelo menos era o que a patroazinha imaginava, enquanto cobrava respostas e soluções de seu companheiro de infortúnio.

— Tem que fazer alguma coisa. Tem que acabar com isso, está ficando tudo muito difícil, complicado demais, amontoado demais. Daqui a pouco não teremos nem mais como conversar, já que dormir, em breve será impossível.

Prosseguia, incomodada e cheia de argumentos. Para tudo e para todos, era um matraquear, uma espécie de piado, um sonido. Uma cachoeira de alegações, saídas a jato, da bica de um filtro de barro. Uma parte se entendia, a outra, era uma espécie de ultrassom. Aquele tipo de conversa onde a giripoca pia e ninguém escuta.

Havia se mostrado silencioso até então. Pouco afeto às discussões, apenas deixava a cachoeira passar. Depois de muito escutar, fosse por estar tomado pelo empuxo da compreensão, ou mesmo por puro cinismo de quem não ouviu nada, de voz mansa, quase um sussurro, se pôs a falar.

— Você tem razão, é isso mesmo, tem razão, você acertou de novo. Analisou, avaliou, dissertou e acertou.

Com os olhos esbugalhados com aquela vozinha doentia e irritante, vociferou como quem exige respostas.

— E então, e aí, e agora?! Vai fazer o quê?! Já pode dizer, já entendeu tudo, quer que eu desenhe?!

A cara da patroazinha era de um negrume total. Mais olhos do que face. Boquinha arregalada e cheia de dentes, igual filme de terror. Ou aparecia uma resposta, ou iria morrer naquele dia.

Tentando sustentar a integralidade do momento, e a física também, prefere esclarecer as coisas e acrescentar algo, qualquer coisa que pudesse ao menos sugerir uma providência. Vamos aos fatos, ele também não sabia o que fazer.

— A família cresceu e todos fizeram crescer as suas famílias. É simples assim. E completou aquela argumentação mais ou menos óbvia.

— Acho que será preciso chamar algumas famílias para que possam se mudar. É melhor que se mudem.

— Como vai fazer com que se mudem? Indagava ela.

— Como? Conversando com todos. Exatamente como fizemos aqui. Conversando, sensibilizando a todos, até acharmos uma resposta.

— É bom você começar logo com isso. Frisava ela.

— É verdade, tem razão mais uma vez. Vamos cuidar logo.

— Que tal agora?

— Agora? Mas assim tão..., de repente?

— Sim, agora, já. Entendeu? Precisa repetir?

Dessa vez, era sério. Não havia enrolação que o ajudasse.

Saiu se espremendo por entre os demais, meio que passando por cima, pelos lados, pelos cantos, buscando os cabeças daquela situação, os autores daquela muvuca. Os fazedores de prole.

A coisa que mais detestava na vida. Ter que se dirigir àquele bando de preguiçosos, só tinha come e dorme. A soneca no escuro e a barriga cheia, era o lema daquela muvuca. Nem se deram conta do que estava acontecendo ali dentro.

Também pudera, quando não estão dormindo, estão passeando no escuro. Talvez ainda apreciassem o barulho repentino, só que cada vez mais infernal. Sabia dessa? Gritaria em ultrassom é para enlouquecer.

E ainda achou de se agarrar com aquela nanica criadora de caso. É bem-feito, podia muito bem-estar dormindo, tal e qual os demais, se não fosse tão burro.

Aproximou-se do primeiro, buscando ir direto ao assunto.

— Pois é, é isso mesmo que você tem visto. Está tudo muito cheio, e precisamos fazer alguma coisa, antes que comece a faltar comida para todos.

— É sim tem razão, precisa acontecer algo. É melhor que se mudem.

Ficou muito satisfeito com a conclusão, e completou logo a sua fala.

— Que bom que compreendes. Então..., estaria disposto a se mudar?

— Quem, eu? Gostaria, mas agora não posso, tenho muitos filhos pequenos e preciso pensar neles primeiro.

Meio desalentado, seguiu adiante, tornando a expor a situação crítica em que viviam, e nova resposta.

— Se mudar, você diz se mudar daqui? Ir para outro lugar? Um lugar diferente, você diz?

— Sim isso mesmo, é preciso se mudar, sair daqui. Está ficando muito cheio.

— Nossa, assim tão de repente. E logo agora que o mais novo acabou de chegar.

 E assim prosseguiu, um a um, sem encontrar ninguém disposto a abandonar a muvuca velha.

Cabisbaixo, retornou para seu canto, passando por cima de todo mundo, enquanto um e outro desajeitado, acabava mergulhando de cabeça. Foi então recebido pela patroa que o aguardava, invertida, porém mais acordada do que nunca.

— E então, o que foi resolvido? O que disseram?

— É..., foram todos postos a par da situação, que beira a falta do que comer, inclusive.

— Sim, e daí?

— Bem, e daí é que se comprometeram a analisar em profundidade a questão, de modo a se resolver tudo de uma vez por todas. É assim, uma decisão final está a caminho.

— Uma decisão final? Daquele bando de vagabundos? Eu vou aguardar para ver.

— Você não perde por esperar. Quando começarem a sair, você ainda vai me dar razão.

Olhando com desdém para aquele ardiloso e mentiroso, achou melhor guardar tudo para o próximo round. Afinal, não seria de uma vez por todas?

Ledo engano, a muvuca estava tão cheia e tão apertada que sobreveio uma daquelas discussões infernais, que culminou em uma grande briga. Imagine só uma briga, uma gritaria em ultrassom. Dá até para dormir feito pedra.

 

Calma que o sono já vem.

Tombado sobre a cama, esticou o corpo e já sabia de antemão, que em minutos estaria desligado de tudo e de todos.

Coisa de poucos minutos, para quem tem facilidade para dormir, ainda mais se estiver cansado. Passou o primeiro, passou o segundo, ao término do terceiro minuto, aconteceu.

Tum!

Abriu os olhos instantaneamente. Prestou atenção naquele som estranho, e aguardou. Três ou quatro minutos depois, desistiu, pois concluiu que não havia nada com o que se  incomodar. Fechou os olhos mais uma vez. Um, dois, não mais que três minutos se completaram.

Tum!

Arregalou os olhos, já mais desconfiado. Busca identificar de onde vem aquele maldito som. Nada aconteceu, nem uma única pista. Começou a ficar preocupado. Em uma época de tantos assaltos, todo cuidado é pouco.

Tum!

Bateu de novo! Agora foi um barulho propositado. Estão querendo testá-lo, pensou. Estão batendo de propósito para atormentá-lo e testar sua paciência e atenção, de tal modo que, quando adormecer, vão querer entrar sem que esboce reação.

Querem então pegar algo lá fora? Querem invadir sua casa? Qual será o motivo? Enquanto pensava em algo concreto que o ajudasse a esclarecer aquilo,

Tum!

Saltou da cama, esbravejando se levantou, pensou em apanhar uma arma, se dando conta de que nunca teve arma de fogo na vida. Procurou um porrete, um cabo de pau, encontrou de fato um guarda-chuva. Armou-se com ele e saiu do quarto gritando.

— Quem está aí? Aparece seu covarde! Aparece que hoje é seu dia de encontrar o cão!

Não sabia de onde tirou aquele brado, mas agora precisava ser assim, tinha que demonstrar coragem ante o desconhecido.

Tum!

— Aparece pra eu te ver nojento!

Estava tão nervoso e angustiado que esqueceu de acender a luz. Foi quando conseguiu distinguir, tal e qual passos, como se alguém tivesse escorregado por cima do forro da casa.

Como que é mesmo essa história? Pelo telhado! Havia alguém em cima do telhado! Então era este o plano do bandido!

— Desce daí nojento, seja homem pelo menos uma vez na vida!

— Haaagh!, haaagh!

Tomado de desespero e fúria, igual a um cão medroso, que morde sem convicção, mas morde. Fez menção de correr, tropeçando nos móveis da sala, até achar uma vassoura na entrada da cozinha, com a qual alcançava o forro da casa e tum, tum, tum! Mais uma, mais duas, mais três! Tum, tum, tum!

Bateu, bateu, bateu no forro com aquele cabo, até sentir que algo havia caído. Exausto e sem fôlego, parou. Foi quando lembrou de acender a luz.

A luz inundou a pequena sala, podendo então divisar aquela nuvem escura. Havia uma espécie de pó meio marrom, meio cinza. Aquele troço entrava no nariz e tocava na garganta. Prestou atenção no forro, e o que viu foi dois pedaços no chão, cheios daquele troço escuro por cima. Na extensão da sala, por todos os cantos, o forro estava todo marcado das pancadas que fez com o cabo da vassoura, isto quando não estava quebrado, ou perfurado. É verdade, foi uma noite de fúria.

Prestou atenção nos passos se arrastando por sobre o forro, que agora eram muitos. Por mais que tentasse, não conseguia divisar direito, envolvido que estava naquela imundície, que embaçava até os olhos. Só conseguia ouvir aquele som arrastado.

Dali a pouco, silenciou. Ficou aguardando mais uma vez, e nada aconteceu. Se deu conta de que não havia ladrão nenhum. Estava em uma condição deplorável, exausto de tanto se debater com o forro da sala. Foi ao banheiro, jogou água no rosto e voltou à sala. O local estava um chiqueiro.

Largou aquilo tudo, colocou o guarda-chuva bem ao lado da cama, apagou a luz, atirou-se na cama se estirando mais uma vez e fechando os olhos. Fosse o que fosse, só iria cuidar daquilo na manhã seguinte. Finalmente, um pouco de paz.

Tum!

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